31 anos do Massacre do Carandiru: a violência estatal que continua a assolar o povo negro, pobre e periférico

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

Texto por: Mayra Balan, Thainá Barroso, Carolina Dutra e Isadora Meier

 

O Massacre do Carandiru ocorreu em 2 de outubro de 1992, quando a Polícia Militar do Estado de São Paulo invadiu a Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru. A invasão resultou na morte de ao menos 111 pessoas presas, em uma das ações mais violentas da história prisional brasileira. 

O Padre Chico Reardon, coordenador da Pastoral Carcerária Nacional à época e que esteve presente na ocasião do Massacre, relatou considerações em um diário publicado no livro “Testemunho de um Oblato no Extinto Carandiru”. Entre as suas reflexões, ele discorre sobre como a PCr testemunhou os horrores que ocorreram no dia 2 de outubro e pôde dar algum apoio aos sobreviventes:

“ (…) membros da Pastoral Carcerária viram os corpos de presos crivados de balas e facadas, conversaram com os sobreviventes, quase todos machucados de uma ou outra maneira pela tropa da PM na invasão

Entretanto, é importante ressaltar que o Massacre não foi um evento isolado ou mesmo uma tragédia – não foi uma fatalidade, um acidente, uma calamidade não evitável pelo Governo.

Na realidade, os acontecimentos de outubro de 1992 e as violências praticadas pela Polícia Militar contra as pessoas presas na Casa de Detenção de São Paulo – violências estas que até hoje ecoam nos/nas familiares, amigos/as e sobreviventes do massacre, sob a forma de tentativas de invisibilização de suas dores, são demonstrações da própria ideologia do Estado.

Essas violências foram resultado direto de políticas públicas punitivistas, violentas e criminalizadoras, que, diferentemente de seus objetivos declarados de “combater o crime”, trazem para si a função real de criminalizar e neutralizar pessoas mais vulneráveis socialmente: usualmente oriundas da periferia, pobres, negras, indígenas e periféricas.

De fato, é algo que se repete continuamente na história do Brasil. Desde antes de 1992 e mesmo depois, pessoas dentro e fora de unidades prisionais vêm sofrendo com chacinas movidas pelo Estado.

Em 2006, São Paulo viveu um dos mais brutais episódios de violência do estado, no qual em apenas nove dias mais de 564 pessoas foram mortas, em ataques que ficaram conhecidos como “crimes de maio”. No ano de 2015, ocorreu um dos maiores massacres do Ceará, em bairros da Grande Messejana em Fortaleza, que vitimou 11 pessoas após uma força tarefa policial na região. Já em 2017, cerca de 55 pessoas foram mortas dentro do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ), em Manaus. Por sua vez, em 2019, ocorreu o Massacre de Altamira: mais de 62 pessoas foram mortas no Centro de Recuperação Regional de Altamira/PA, o qual estava superlotado e em condições ‘péssimas’, conforme relatório do CNJ após inspeção.

Em 2021, em plena pandemia, ocorreu a operação mais letal da história do Rio de Janeiro, na comunidade do Jacarezinho, na zona norte da cidade, que vitimou ao menos 28 pessoas. Um pouco mais de um ano depois, o massacre na Vila Cruzeiro, frequentemente referido como a chacina do Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, decorreu de uma operação integrada envolvendo o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, e resultou no assassinato de 23 pessoas.

O ano de 2023, até agora, está sendo marcado por uma série de episódios de violência estatal, sendo a chacina ocorrida no Guarujá, litoral de São Paulo, um dos mais explícitos. Iniciada em 28 de julho de 2023, após a notícia da morte do soldado Patrick Bastos Reis, a chamada “Operação Escudo” teve início sob o pretexto de identificar e prender indivíduos suspeitos pela morte do policial. Contudo, uma vez instituída, os objetivos fundamentais da ação policial passaram a ser a neutralização e o encarceramento da população periférica que ali reside.

A primeira fase da chacina teve duração de 40 dias e, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, acarretou um total de 28 mortes e 958 prisões – dentre as quais apenas 382 eram de pessoas supostamente procuradas pela justiça. A “Operação Escudo”, por sua vez, teve uma segunda etapa iniciada 3 dias após seu encerramento, culminando em 2 novas mortes e 7 pessoas feridas na Baixada Santista.

Essa situação não se diferencia dos outros estados do país. Na Bahia, por exemplo, a Operação Paz na Estrada do Cumbe, em Acajutiba, pela Polícia Militar, culminou na morte de cinco pessoas; após essa operação, chegou a 50 o número de mortes no estado causadas pela PM somente durante o mês de setembro de 2023. 

Tal cenário de recorrentes chacinas e massacres, ao redor de todo o país, dentro e fora das unidades prisionais, possui, sem dúvidas, um elemento recorrente: eles atingem, em geral, grupos e comunidades pobres e já marginalizados.

Os horrores do Carandiru, que hoje completam 31 anos, não se distanciam dos horrores das chacinas do Guarujá, da Baixada Santista ou da Bahia. Todos esses atos demonstram claramente a política de violência estatal que se guia por lentes racistas e classistas: o conceito de necropolítica (ou “política da morte”, trabalhada inicialmente pelo filósofo camaronês Achille Mbembe) traz a ideia de que certas vidas – justamente em razão de critérios sociais e raciais – são consideradas “descartáveis” ou “matáveis” dentro de sistemas de poder.

Tal conjuntura também está profundamente entrelaçada com a realidade das prisões brasileiras, que são frequentemente superlotadas, insalubres e palco de constantes agressões físicas e verbais, torturas, entre outras violações de direitos humanos e fundamentais. O sistema carcerário, não por acaso, também possui a sua população majoritariamente formada por pessoas jovens, advindas de bairros periféricos, negras ou pardas e hipossuficientes financeiramente.

A negligência para com esse cenário, inclusive, foi objeto, em 2023, do Relatório de Mutirão Processual Penal do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na medida em que foi apontada a enorme subnotificação ou ausência de dados sobre a identidade étnico-racial das pessoas que respondem a processos criminais ou de execução penal. Entre as pessoas presas provisoriamente há mais de um ano e as gestantes, mães e mulheres responsáveis por crianças e pessoas com deficiência que estavam em prisão cautelar, apenas 12% dos casos apontavam alguma identificação étnico-racial. Já entre as pessoas em cumprimento de regime prisional mais gravoso que a condenação e/ou diverso do aberto a situação torna-se ainda mais gravosa, visto que apenas 5% dos casos analisados apresentaram esse perfil.

O cenário das prisões, ainda, é marcado por “massacres silenciosos”, notadamente em razão das estruturas precárias de higiene, alimentação e até mesmo de acesso à água potável. À título de exemplo, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, no seu Relatório anual de 2022, traçou considerações sobre o sistema prisional brasileiro.

Esse plano de fundo é agravado pela ausência ou precariedade do atendimento médico e a frequente insuficiência no fornecimento de medicamentos. Tal panorama facilita a disseminação e o agravamento de doenças que dificilmente acometem – e muito menos conduzem a óbito – pessoas que estão em liberdade. Por exemplo, segundo dados do Ministério da Saúde, obtidos pela Uol com fontes ligadas ao Departamento Penitenciário Nacional, “pessoas privadas de liberdade têm, em média, chance 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose”. No Rio de Janeiro, por exemplo, entre os anos 2015 e 2017, nas 58 unidades penitenciárias do Estado, 517 pessoas presas morreram em decorrência de diversas doenças tratáveis, como tuberculose, hanseníase e até mesmo por infecções de pele.

Essas violências – sejam elas típicas ou estruturais – atestam a lógica de que algumas vidas, para o Estado, são tratadas como se menos valiosas fossem, e de que a eliminação de certos grupos ou pessoas seria tolerável ou até desejável para a “ordem” ou “segurança”. 

Todavia, enquanto há políticas de morte e de neutralização de pessoas – seja através de chacinas e massacres, ou através da realidade torturante do cárcere -, deve haver luta contra esse terrorismo do Estado. E é esse o compromisso que faz a Pastoral Carcerária. No meio de tantas vozes discriminatórias, ignorantes e violentas, que insistem em conferir desvalor às existências das pessoas presas, os agentes da PCr assumem a missão profética de combater desde episódios como o Carandiru, até a própria vivência agonizante das prisões.

Em 31 anos desde o Massacre de 1992, o eco daqueles gritos e o lamento das vidas perdidas permanecem uma cicatriz aberta na memória brasileira. Lembrar é resistir: resistir à tentativa de apagamento e à repetição sistemática de atrocidades por parte do Estado. A memória é uma ferramenta política, uma forma de contestação que desafia o punitivismo entranhado em nossas instituições.

A fala do Papa Francisco, em seu discurso na Sessão Conclusiva dos “Rencontres Méditerranéennes”, em Marselha, na França, aponta para a necessidade de se lembrar daqueles que vivem à margem da sociedade:

“O verdadeiro mal social não é tanto o crescimento dos problemas, como sobretudo a diminuição do cuidado que se lhes presta. Hoje, quem se faz próximo dos jovens abandonados a si mesmos, presa fácil da criminalidade e da prostituição? Quem se responsabiliza por eles? Quem se faz próximo das pessoas escravizadas por um trabalho que deveria torná-las mais livres? Quem cuida das famílias amedrontadas, com medo do futuro e de trazer ao mundo novas criaturas? Quem presta ouvidos ao gemido dos idosos abandonados que, em vez de serem valorizados, acabam estacionados, com a perspectiva falsamente dignificante duma morte doce, quando, na realidade, é mais salgada que as águas do mar? Quem pensa nos bebês não nascidos, recusados em nome dum falso direito ao progresso, que é, ao contrário, um retrocesso nas necessidades do indivíduo? o verdadeiro mal social não é tanto o crescimento dos problemas, como sobretudo a diminuição do cuidado que se lhes presta”.

É imprescindível uma ruptura com esse modelo de encarceramento que perpetua o ciclo de violência estatal. Nesse cenário, a Pastoral Carcerária luta incansavelmente por um mundo sem cárceres. Concluir que o caminho a se seguir é o da memória e o da reforma radical é honrar a vida das vítimas, do Carandiru e de todas as chacinas subsequentes.

Como Pastoral Carcerária, diante da política de morte em voga e com a intenção de construir um “Mundo sem Cárceres”, seguimos as diretrizes do Papa Francisco em Marselha: “Continuai adiante, com coragem! Sede mar de bem, para fazer frente às pobrezas de hoje com uma sinergia solidária; sede porto acolhedor, para abraçar quem procura um futuro melhor; sede farol de paz, para atravessar, através da cultura do encontro, os tenebrosos abismos da violência e da guerra”.

 

Fontes:
http://estaticog1.globo.com/2019/07/29/doc1.pdf

https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2023/08/relatorio_anual_2022_mnpct.pdf

https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes-por-doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm

Francisco Papa, SESSÃO CONCLUSIVA DOS “RENCONTRES MÉDITERRANÉENNES” DISCURSO DO SANTO PADRE “Palais du Pharo”, Marselha Sábado, 23 de setembro de 2023

Volatr ao topo