Heidi Cerneka: “No Quênia, é fácil o homem jogar a culpa de um crime em cima da mulher”

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Por José Coutinho Júnior

Heidi Ann Cerneka é natural dos Estados Unidos e veio ao Brasil em 1997 para trabalhar com mulheres em situação de vulnerabilidade. Ela conheceu a Pastoral Carcerária, e até 2014, trabalhou com a questão da mulher presa no país.

Ela voltou para casa em 2014, se graduou em direito, passando no exame da ordem, e depois seguiu viagem para o Quênia, onde ficou um ano realizando um trabalho de assistência jurídica às presas do país, e também entendendo mais sobre a realidade e sistema carcerário de lá.

“Fui para lá porque a gente sempre fala que existem questões universais relacionadas às mulheres encarceradas. Já visitei prisões na Bolívia, Argentina, Peru, EUA, Brasil, Tailândia e Nigéria. A questão econômica, a falta de oportunidade de trabalho, ser mãe solteira com pouca oportunidade de trabalho, são temas que sempre aparecem quando conversamos com as mulheres presas. Eu queria comprovar essas questões, e pensei que morando um período em um país no outro lado do mundo, daria mais legitimidade para falar sobre as mulheres encarceradas numa maneira mais global”.

Heidi visitou o Brasil no final de 2018 e conversou com o site da Pastoral Carcerária sobre a sua experiência no Quênia, as diferenças e similaridades entre o sistema carcerário e as mulheres presas do país e do Brasil, além das peculiaridades culturais e políticas que aprisionam as mulheres quenianas. Confira:

Por que você decidiu ir para o Quênia?

Fui para lá porque a gente sempre fala que existem questões universais relacionadas às mulheres encarceradas. Já visitei prisões na Bolívia, Argentina, Peru, EUA, Brasil, Tailândia e Nigéria. A questão econômica, a falta de oportunidade de trabalho, ser mãe solteira com pouca oportunidade de trabalho, são temas que sempre aparecem quando conversamos com as mulheres presas. Eu queria comprovar essas questões, e pensei que morando um período em um país no outro lado do mundo, daria mais legitimidade para falar sobre as mulheres encarceradas numa maneira mais global.

E você conseguiu comprovar que as questões se repetem, ou existem diferenças?

Ainda estou separando as informações. O que eu sei é que tem coisas que sem dúvida se repetem. Não tem a questão do racismo, como vemos aqui, por exemplo, mas as mulheres quase todas eram pobres, de pouca escolaridade, quase 70% tinham até a escola primária completa, muitas menos, e a maioria das mulheres são mães. Mas o motivo delas serem presas são um pouco diferentes.

No Quênia, a maioria das mulheres vai presa por conta da fabricação e venda de um álcool caseiro. Não é muito diferente de vender droga aqui. É uma substância que o governo não tem controle, e é muito perigoso, tem gente que morre tomando esse álcool.

É uma questão de saúde que o governo não controla, e uma questão de impostos também, que o governo quer controlar. 70% das mulheres acabam sendo presas por causa desse álcool. Elas não ficam tanto tempo como em outros crimes, e lá também não tem tanto a questão de drogas narcóticas, que nas Américas é a questão principal.

O que não muda, no geral, é essa questão econômica. As mulheres acabam entrando nisso por falta de oportunidade, por falta de estrutura social para ajudar, por ser mãe e precisar do dinheiro para cuidar dos filhos, isso é que eu percebi.

Você fez visitas nas prisões pela Pastoral Carcerária de lá, ou por outras organizações?

As duas coisas. Uma vez por semana ia pela Pastoral, mas a Pastoral lá é diferente, eles são funcionários do sistema prisional, pagos. E um dia por semana eu entrava por uma ONG.

Uma questão grave no Quênia é que não existe defensoria pública, então os presos e presas mais pobres tem que fazer autodefesa, o que é difícil para pessoas que nem terminaram o ensino fundamental.

Essa ONG dava treinamento para os presos sobre alguns conceitos de processo, e esses presos acabam virando “meio advogados”, que tem treinamento, conhecimento para mexer, fazer pedidos de reparação e dar orientação aos outros presos.

Um grupo de presas com o qual essa ONG trabalhava ajudava as outras a preparar para a audiência, ou preparar e escrever sua apelação. Fiquei interessada nisso para entender como funciona essa coisa de sentar com uma mulher que sabe que vai sozinha para uma audiência, e dizer para ela “você foi acusada de que? Quem são as pessoas que vão testemunhar contra? Tem alguém que pode testemunhar a seu favor? Quais são suas opções?”.

Como são as prisões lá, se comparadas com as do Brasil? Tem as mesmas questões que a gente vê aqui, de torturas, violência, superlotação?

Infelizmente só consegui ir a três presídios (duas penitenciárias femininas e uma masculina), e eram as penitenciárias de segurança máxima, que acho que eram menos ruins que os presídios locais, então não sinto que posso falar sobre o sistema do Quênia como um todo.

Na prisão feminina onde ia toda semana, não achei que estava superlotado. As presas falaram que apanhavam, e existe na lei e código de execução penal um artigo dizendo que é legal punir fisicamente as presas, quando elas são pegas com drogas, celulares, elas vão para castigo e apanham.

Então existe tortura e violência, mas não sei se na escala que vemos aqui no Brasil.

Você teve contatos com os familiares de presas e presos?

A penitenciária de segurança máxima era muito parecida com a de Santana (SP) antes de construir outros presídios: tinha mulheres de muitos lugares, e às vezes a gente falava com as famílias para ajudar nos processos delas.

Tinha uma mulher que a gente visitava, mesmo quando ela foi solta, para ver os filhos, conheci uma mulher que tinha o filho preso e acompanhamos a mãe do lado de fora. As familiares que conheci e são da cidade vivem na favela, que não tem esgoto ou qualquer tipo de estrutura.

O machismo é algo que atinge as mulheres no mundo todo. Você acompanhou casos de mulheres que foram presas por conta de situações machistas?

Falei com muitas mulheres presas por conta disso. Lá a violência doméstica é quase normal. Vi muitos casos de mulheres que mataram o marido depois de apanhar muito. Os homens podem ter mais de uma esposa, então às vezes era questão de ciúme.

A maioria delas era vítima de violência, e as mulheres não tem tanto poder no país. A Constituição do país é de 2010, e concede direitos iguais a homens e mulheres. Mas na prática não é assim. A verdade é que a terra é do homem.

Então por exemplo, uma mulher casa e o marido dela morre. O irmão do marido vai entrar para pegar a terra, e a única maneira que a mulher pode ficar muitas vezes é casando com o irmão. Ou ela casa com o irmão, ou pega os filhos e vai para a favela.

Tem muitos casos das mulheres não conseguirem serem donas da terra. Tem essa cultura dos filhos homens serem criados para a família, e as mulheres são criadas para dar para os outros: ainda tem a cultura do dote, por exemplo.

Um amigo que fiz lá ficou 12 anos presos, por engano; ele saiu, conseguiu comprovar que era inocente, e ele está quase 10 anos com essa mulher, tem dois filhos com ela, mas ele não conhece os pais dela, porque se ele for visitar os pais, tem que levar o dinheiro do dote, que ele não tem. Então tem muitas dessas questões culturais.

Uma mulher me disse que o marido e o pai que fizeram o crime e se juntaram para prendê-la. É muito fácil para o homem jogar a culpa em cima da mulher, ainda mais sem defensoria pública e formas de provar que não foi ela.

Conheci muitas mulheres que trabalhavam como domésticas, nas casas das patroas. E elas foram acusadas de assédio sexual do filho do dono da casa, ou roubo da casa, algumas realmente confessaram roubar porque a patroa não pagava, elas fizeram a denúncia oficial, mas é a palavra da patroa contra da doméstica, e as domésticas acabaram presas.

Muitas mulheres vão presas por crimes não violentos, por não agiram como o “papel social da mulher” manda.

A mulher não tem como brigar pela terra então, no caso do marido morrer por exemplo?

Ela pode brigar, mas na maioria das vezes não tem dinheiro para lutar, e tem os “caciques” da cidade, que decidem a favor dos homens.

O país não ter Defensoria Pública não traz vários tipos de problemas? Como pessoas presas injustamente, presos provisórios que não são julgados…

Eles só fornecem um advogado para quem é acusado de homicídio. O Quênia tem pena de morte, mas não aplica desde 1980. As pessoas ainda são condenadas à morte, mesmo que a pena não seja executada, é uma prisão perpétua.

Vi muitas pessoas que foram presas porque outras pessoas queriam as terras delas. A terra lá é algo muito valioso, ainda mais sendo de tribo, na área rural, é importante ter a terra.

Um amigo estava brigando porque a polícia do distrito dele queria construir a estação de polícia em cima do terreno do pai dele. Ele ficou brigando e de repente foi preso com mais três pessoas, acusado de homicídio e assalto à mão armada. Ele tem certeza que foi a polícia que fez isso, para que ele parasse de brigar pela terra dele.

Esse tipo de coisa acontece porque não tem defensor público. É difícil juntar provas e mostrar que uma acusação é falsa se você está dentro da cadeia.

Como é a questão da saúde para as mulheres dentro dos presídios?

Elas falam que é horrível. Não me pareceu muito diferente daqui. Muitas disseram que iriam morrer antes de passar num médico. As crianças podem ficar com a mãe na prisão até os quatro anos.

Uma mulher que a gente acompanhou tinha bócio, e ela foi presa por vender álcool. Ela tinha seis filhos, todos com menos de 10 anos, e o crime era fiançável. O juiz disse pra ela “se você for presa, você pode tratar sua doença”, porque no sistema prisional tem atendimento médico, mas não existe um sistema de saúde pública.

Ela foi presa por seis meses, para fazer a cirurgia que precisava, e quando saiu, ainda estava com a doença.

Outra questão é a das pessoas presas por doenças mentais, que também não é muito problematizada. Existe um hospital para os doentes mentais também, eu tentei entrar mas não consegui. Uma advogada que me acompanhou uma vez disse, sobre uma doente mental que estava presa onde visitávamos, que “se ela não tem família lá fora, aqui dentro pelo menos tem segurança e amigas”.

Eu respondi que a gente não sabe se ela tem amigas aqui. A gente também não sabe se ela está segura, porque muitas vezes as pessoas exploram o doente, e a gente não pode aceitar que a pessoa viva aqui porque não há condições para ela viver lá fora. E foi uma advogada de direitos humanos que falou isso, o que me decepcionou.

E os jovens, ficam nas mesmas prisões que os adultos?

Tinha menores condenados à prisão perpétua. Depois foi decidido que não seria mais possível condenar um menor à prisão perpétua ou pena de morte.

Jovens condenados a crimes mais pesados foram mandados para a prisão de segurança máxima sim. Mas a maioria dos jovens eles tentam manter em casa, em um regime diferenciado.

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