Padre Gianfranco: Eles não precisam ir embora, Dai-lhes vós mesmo de comer!

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A realidade que a Campanha da Fraternidade nos apresenta e nos convida a enxergar tem como pano de fundo e luz a Palavra de Deus: “A Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em profundidade a própria vida”(VD, n.99)

O chamado à responsabilidade

Temos um dado de fato: a Palavra de Deus que ilumina a vida da Igreja e da humanidade chama todo e cada um de nós e as comunidades à reponsabilidade por meio de uma ação profética, a única que pode responder às indignações mais veementes, como fonte de esperança, cuja escuta faz brotar alternativas para soluções concretas.

A fome flagelo para o povo

A Escritura descreve sempre a fome como um flagelo para o povo, sentido com grande compaixão por Deus. “Sim, eu conheço seu sofrimento”(Ex. 3,7). O Primeiro Testamento  registra a identidade de um Deus que, a partir do Êxodo, se revela comunitariamente  como o Deus, que vê o sofrimento humano e age para a sua libertação.

Esta perspectiva dita as linhas gerais do relacionamento entre Deus e o seu povo. O Deus que, no Êxodo, se revela libertador, também se revela como aquele que acolhe o flagelo da fome e alimenta.

Neste sentido o Maná não é apenas um preparo de ingredientes que sustenta para mais um dia no deserto, mas é expressão da compaixão de Deus, que caminha junto de seu povo. E como não pensar no carcere como uma fome que flagela e escraviza nosso povo, nossa gente?

A Terra Prometida como sinal de libertação e fidelidade

Não é a toa que a fartura dos alimentos  é uma virtude distintiva da Terra Prometida, para a qual rumava o povo no deserto, “terra onde corre leite e mel” (Ex 33,3). Antes de sair do Egito, Deus havia separado os que lhe eram tementes  do restante da população por uma prova ligada à partilha de alimentos: a ceia pascal da noite da libertação.

Isso contrapoe a escravidão e a fome, pertencentes ao Egito, ao seu faraó, à oferta de alimento para todos, sinais da libertação e fidelide ao Deus único. Por isso, associada a libertação e à terra prometida está a prática da hospitalidade, que é o contrário da condição inóspita do Egito.

Sinal que se carateriza com o lavar os pés e a partilha da comida, onde oferecer alimento se torna expressão de responsabilidade pelo outro, proteção física, solidariedade e resposta às necessidades do outro. Neste sentido, Abrão acolhe o próprio Deus em sua casa e é recompensado com a dádiva de uma descendência(Gn 18);  a viúva de Sarepta (1Rs 17,8ss) gasta suas últimas provisões para acolher o profeta peregrino e é recompensada com a vida para si e para o filho, por meio da vasilha que não se esgotava.

A denúncia dos profetas

Os profetas denunciam a falta de cuidado e responsabilidade por aqueles que não têm pão. A nada servem jejuns e sacrifícios se a fé não passa das palavras a ação, da fé falada à fé vivida. É preciso assumir com responsabilidade as necessidades humanas dos mais vulneráveis: a viúva, o órfão, o pobre, o encarcerado, a encarcerada.

Nos profetas encontramos as duras palavras de Amós, de Ezequiel para àqueles que não se deixam indignar diante da fome de seu tempo, preocupando-se apenas em saciar seus próprios desejos.

Mas temos também o texto do profeta Isaías, que convida à grande esperança, proclamando e convidando a sociedade para a abundância de alimento e à saciedade, matando a fome e a sede de todo o ser. (Is 55,1-3)

Jesus novo Moisés e novo Eliseu

As palavras e a atuação de Jesus expressam desde o primeiro momento sua predileção pelos famintos como destinatários urgentes daqueles que desejam ser fiéis à Aliança com o Senhor.

Na oração que ele ensina aos seus discípulos, o pão de cada dia é primordial, porque dar um pão ao filho é atitude carregada de responsabilidade. Aliás, o pão acaba tornando-se imagem do próprio Jesus e da salvação que ele oferece.

Eis a razão da importância da fração do pão das primeiras comunidades cristãs, onde o memorial da Eucarístia passa da simples ritualidade para expressão da materialidade do cotidiano, que responsabiliza pelas necessidades mútuas, entre elas está incluída a fome.

Mateus, colocando o acontecimento no deserto, faz referência ao Primeiro Testamento, em que Deus alimenta o seu povo com o maná, mas ao mesmo tempo coloca-nos no lugar dos discípulos, que são levados ao deserto com o Novo Moisés, onde eles e nós fazemos a experiência do caminho fraterno, uma revisão critica de nossa vida, olhando para nós mesmos e para o nosso relacionamento sobre o como habitamos nosso mundo e nossa sociedade, e contemporaneamente como nos sentimos responsáveis pelos nossos irmãos e irmãs.

Outro fato paralelo ao da multiplicação dos pães de Jesus encontramos no Primeiro Testamento, na vida e experiência de Eliseu, que é desafiado a dar de comer à multidão (2 Rs4,42-44), e Mateus faz o que lhe é próprio: demonstra a continuidade e ruptura de Jesus em relação ao passado, tornando-se o profeta por excelência, aquele que alimenta com a Palavra, que sustenta o ser humano com sua confiança inabalável em Deus e anuncia a salvalçao para aquele que permanece fiel ao Senhor e não aceita a injustiça, trabalhando em favor da dignidade humana.

A Igreja que distribui a Eucaristía, partilha a Compaixão e assume a Responsabilidade Social

Jesus sente compaixão, exerce sua misericordia e dá sinais de sua salvação, orientando a ação dos seus discípulos. Eles são imagem de pastores, que na Igreja primitiva e na contemporânea distribuem alimento que vem do céu sem perderem a consciência da responsabilidade social, a responsabilidade pela fome dos irmãos e das irmãs.

A simbologia dos cinco pães e dois peixes, o total de sete ofertas, é o número da plenitude, da totalidade, da perfeição, que conota a partilha de Jesus, uma nova lógica de comunhão que rege a comunidade dos discípulos e as novas que eles são chamados a reunir.

O verdadeiro milagre é social, porque Jesus se manifesta a uma sociedade marcada pela fome e por tantas outras formas de sofrimento, convocando-a para a responsabilidade, a partilha, a solidariedade [FT, n°114-117]. Por essa razão a Eucarístia não faz de nós o grupo dos bons, dos escolhidos, dos melhores, ela nos devolve para o mundo, para os lugares de onde viemos, e no nosso caso no submundo, subsolo das prisões, para que sejamos sinais de uma nova ordem social, de uma nova ordem econômica, de uma nova justiça, porque a “mistica” do sacramento tem um carater social, e Papa Francisco afirma: “é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem”. 

A Fraternidade Cristã: Profecia e Compaixão

Profecia e compaixão representam o paradigma da fraternidade cristã que a Eucarístia constrói a partir do compromisso de Jesus de dar a vida, de repartir a si mesmo.

É este o sentido de nos tornar-mos pão partido para os outros, Eucarístia que tranforma o mundo, porque nos tranforma em compaixão e ação. A nossa tranformação e ação é a de um “mundo fraterno e sem prisões” por isso, como nos lembra Francisco: “igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente”.

Por isso o nosso “Dai-lhes vós mesmo de comer” se traduz concretamente na profecia da compaixão e na ação por um “mundo livre de prisões”.

Pe. Gianfranco Graziola, imc, Assessor Teológico da Pastoral Carcerária Nacional.

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