Pacientes do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Professor André Teixeira Lima (HCTP I), localizado na cidade de Franco da Rocha (SP), estão em celas de um presídio comum desde o dia 11 de março. Eles foram transferidos para penitenciária e centro de detenção provisória na cidade por causa de uma enchente que alagou as instalações do hospital. Os pacientes permanecem em celas e, apesar de estarem em pavilhões separados, estão submetidos a condições de presos comuns e não de pacientes psiquiátricos.
Foram 449 homens transferidos para a Penitenciária III de Franco da Rocha e 72 mulheres para o centro de detenção provisória (CDP) da cidade, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP).
A transferência é criticada por organizações ligadas à saúde e defesa de direitos humanos. “Essa situação das pessoas com transtorno mental em presídio comum é uma grave situação de violação de direitos humanos”, disse o defensor do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, Patrick Lemos.
Quando uma pessoa infringe a lei e é diagnosticada, no processo judicial, com algum transtorno psiquiátrico, poderá ser encaminhada para um hospital de custódia, onde permanecerá até que não haja mais risco de periculosidade, ou poderá receber acompanhamento ambulatorial, que é uma forma de tratamento sem necessidade de internação. Ambos são considerados “medida de segurança” pela Justiça.
O defensor informou que, em razão da falta de vagas no hospital de custódia de Franco da Rocha, alguns pacientes já estavam irregularmente em presídios, situação que foi agravada por causa do alagamento no hospital. “Não foi à toa também que o estado transferiu [os pacientes] para esses estabelecimentos [prisionais], porque já estão acostumados com uma situação de total ilegalidade e que agora foi intensificada”.
“O tratamento de saúde de uma pessoa é absolutamente incompatível com a prisão. E a lei veda expressamente que essas pessoas possam ficar na prisão”, disse o defensor. Ele disse que, enquanto os pacientes estão em um ambiente prisional, não há nada que determine, nem legalmente nem na sentença do juiz, que eles possam estar presos.
A Pastoral Carcerária de São Paulo pediu a interdição do hospital, argumentando que a unidade “está em uma área que historicamente tem alagamento”. O vice-coordenador da Pastoral, Marcelo Naves, informou que três grandes enchentes já atingiram a unidade: em 1987, em 2011 e agora em 2016. “A situação dessa unidade vai para além dessa última enchente. Ela está em um lugar que é de alagamento, portanto a localização é completamente imprópria para ter pacientes”, disse. A pastoral afirma que alguns pacientes foram levados também para o CDP de Pinheiros.
Naves alertou que, como alguns pavilhões dos presídios foram esvaziados e reservados para os pacientes, os detentos, que antes os ocupavam, foram removidos para outras áreas, “o que aumentou a superlotação para a população que já estava ali”. Mesmo mantidos em locais separados, “os pavilhões onde [os pacientes] estão não tem a mínima condição de atender essas pessoas”.
A transferência dos pacientes é vista com preocupação pelo psiquiatra forense Guido Palomba, que considera a situação um retrocesso. “Voltamos para uma época, as primeiras décadas do século 20, em que não existia lugar adequado, então eles [pacientes] ficavam junto com os outros. Na Idade Média, os doentes mentais eram internados nos presídios, junto com prostitutas, doentes venéreos, criminosos, então acho que é um retrocesso imenso. Eu não sei porque estão tomando essa medida, mas que isso é muito preocupante é”, avaliou o médico, que faz laudos sobre pacientes com transtornos psiquiátricos para a Justiça.
De acordo com o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Mauro Aranha, alguns detentos com transtornos psiquiátricos, muitas vezes, não passam por uma avaliação. “Um dos problemas sérios que existem nesse sentido é o problema das drogas. Às vezes, a pessoa que padece de uma dependência de drogas ou de um uso nocivo, ele é preso até injustamente, porque não é nem grande nem pequeno traficante, e sim uma pessoa que é dependente”, disse.
Já a psicóloga e ativista da Frente Estadual Antimanicomial, Marília Fernandez, considerou a transferência uma violência. “Quando houve a enchente no dia 11 [de março] os pacientes foram retirados da unidade de uma forma extremamente violenta. Eles atravessaram um rio, que [era como] estava Franco da Rocha, todos amarrados uns nos outros e muitos policiais com espingardas”. Segundo ela, os pacientes, ao serem levados para unidades desconhecidas por eles e também por passarem pela enchente, tiveram momentos de stress e foram retirados de seu vínculo, o que agrava muito seu estado emocional.
“Vai fazer um mês que o estado não se preocupa com essas pessoas. Fora que retornar essas pessoas para o HCTP de Franco [da Rocha] é mais um descaso, porque este lugar é insalubre. Já não é a primeira vez [que há enchente]. Enchente em 2011, enchente em 1987, não é a primeira vez”, avaliou.
Sobre a transferência dos pacientes para as penitenciárias comuns e o atendimento médico, a Secretaria de Administração Penitenciária informou, em nota, que “as unidades para as quais os pacientes foram transferidos têm todas as condições de saúde e segurança necessárias para a realização dos atendimentos médico, psicológico e medicamentoso”. A secretaria acrescentou que “o alojamento é distribuído de acordo com o tipo de restrição da capacidade psicomotora, sendo que pacientes com essa restrição ocupam as camas inferiores”. Conforme a secretaria, todas as medidas necessárias para reativação do hospital de custódia de Franco da Rocha estão sendo tomadas. Não há data definida.
Hospitais de custódia
“Você tem um primeiro problema que é o próprio hospital de custódia, que tem um caráter asilar, as pessoas ficam internadas lá em um ambiente que não é adequado para tratamento de saúde. E, com o alagamento do hospital de custódia, elas vão para um local pior ainda que é a prisão, que é vedado pela lei, ou seja, a situação é da mais alta gravidade”, avaliou o defensor Patrick Lemos.
Em 2013, o Cremesp visitou os três hospitais de custódia do estado, entre eles o de Franco da Rocha. No relatório sobre as visitas, a entidade aponta falhas no sistema dos hospitais e constatou que parte dos pacientes “não deveria mais estar nesses hospitais no momento da fiscalização, alguns estavam com medida de segurança extinta aguardando vagas em hospital psiquiátrico comum, outros tinham laudos favoráveis para desinternação condicional, ou já haviam sido indultados”.
Na avaliação do presidente do conselho, Mauro Aranha, os hospitais de custódia de São Paulo ainda obedecem à lógica prisional e não a do tratamento de transtornos mentais. “A medida de segurança com internação corresponde a uma prisão perpétua praticamente”. Conforme relatório do Cremesp, “a vertente terapêutica e de ressocialização da medida de segurança parece passar ao largo dessas pessoas”.
Para Aranha, a internação deveria acabar quando houvesse tratamento, recuperação e ressocialização da pessoa infratora com transtorno psiquiátrico. No entanto, segundo ele, “como os hospitais de custódia têm tratamentos sem eficácia, sem atendimento multidisciplinar adequado, sem projetos de reinserção social, os pacientes – não sendo tratados – ficam [internados] anos a fio, muito mais do que alguém que cometeu um delito criminoso”.
Segundo o psiquiatra forense, Guido Palomba, todo o sistema penitenciário do país, de um modo geral, “está falido”. “Sejam hospitais de custódia, sejam penitenciárias, sejam casas de detenção, tem umas que são absolutamente pavorosas. Os hospitais de custódia não fogem à regra de penúria em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro”, avaliou.
No entanto, na opinião do médico, o fechamento dos hospitais de custódia não soluciona a questão, pois essas instituições são necessárias. De acordo com Palomba, as instalações devem ser melhoradas para o atendimento satisfatório dos pacientes. “O importante é você melhorar essas condições, como também devem ser melhoradas as condições penitenciárias em geral. Se estão funcionando mal, deveria ter um incremento do estado, incremento do governo federal, para sanar essas carências”.
Tratamento dos pacientes
O psiquiatra forense disse que o ideal seria fazer uma triagem dos pacientes assim que chegam aos hospitais de custódia, a fim de separar aqueles com quadros agudos, delirantes e alucinatórios dos que já estão em situação melhor. Além disso, Palomba acredita que atividades para ocuparem o tempo do paciente ajudam na recuperação.
“O fundamental é você ocupar o internado, com duas coisas: algo profissionalizante, porque isso também ressocializa muito. E outra coisa muito importante é o lazer, um lazer programado. Outra coisa que ajuda muito são as atividades psicopedagógicas, como, por exemplo, artes e leituras”, disse. “Se você me perguntar: essas casas de custódia dão isso? Praticamente nada disso”, acrescentou.
Sobre tratamento exclusivamente ambulatorial, o psiquiatra discorda. “Quando você faz um parecer de verificação de cessação de periculosidade, o perito obrigatoriamente tem que ter na consciência dele que, de um lado está o paciente com seus direitos, mas do outro lado tem uma sociedade, que não pode ficar à mercê de um indivíduo com periculosidade e com uma potencialidade de cometer novos delitos”. Segundo ele, os hospitais de custódia, além de tratamento, servem também “para salvaguarda social”.
O presidente do Cremesp, Mauro Aranha, sugere que os hospitais de custódia teriam mais eficácia se estivessem submetidos à Secretaria Estadual de Saúde e não à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), como é atualmente. “O Conselho de Medicina, assim como outras instituições que regulam a saúde, não tem eficácia em conseguir que isso [modelo de tratamento] se transforme, justamente, porque os hospitais de custódia estão na jurisdição da SAP e não dentro da Secretaria da Saúde”.
Para Aranha, sob comando da Saúde, as instituições estariam mais próximas de oferecer tratamento interdisciplinar (psiquiatria, psicologia, assistência social), com foco na reinserção social.
A psicóloga e ativista na luta antimanicomial, Marília Fernandez, é contra tratamentos que envolvam confinamento. Segundo ela, o melhor encaminhamento para presos com esses transtornos são os centros de Atenção Psicossocial (Caps), unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) em que o tratamento é ambulatorial.
“Essas pessoas precisam ser tratadas enquanto uma questão psíquica, enquanto uma questão de álcool e outras drogas, com redução de danos. Militamos pela redução de danos, pelo tratamento em liberdade, porque, se essas pessoas têm transtorno mental, elas têm direito de ser cuidadas humanamente”, disse.
Fonte: Agência Brasil