Uma série de organizações sociais, dentre elas a Pastoral Carcerária, assinaram um ofício nesta terça-feira (21) se opondo à proposta de utilização de contêineres para separar presos no sistema carcerário durante a pandemia. A proposta de utilizar contêineres já foi considerada ilegal pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Supremo Tribunal Federal (STF).
“Entendemos que eventuais alterações nos parâmetros de arquitetura prisional devem necessariamente ser precedidas de estudos e da oitiva da academia e da sociedade civil, bem como devem respeitar as regras constitucionais e constantes dos instrumentos do direito internacional dos Direitos Humanos, padrões que, à evidência, não são respeitados pela solicitação de flexibilização das regras hoje existentes”.
Além disso, os contêineres violam direitos fundamentais, sendo uma pena cruel, e também violam os manuais de prevenção ao coronavírus. “No manual de prevenção do coronavírus lançado pela China, o Dr. Wenhong Zhang, Líder da Equipe Especializada de Tratamento da Pneumonia Causada por Covid-197, indica que os locais de isolamento devem ter boa ventilação, distância de um metro das pessoas, evitando-se o compartilhamento de objetos de higiene pessoal e de banheiro. Os contêineres ou celas modulares não proporcionam ventilação adequada, água corrente acessível em tempo integral e a delimitação de distância mínima de um ou dois metros entre os custodiados. Para pessoas com deficiência, ainda, não há possibilidade de atendimento às regras da ABNT NBR 9050/2015. O art. 5º, inciso, inciso XLVII, da Constituição Federal proíbe penas cruéis”.
Para ver o ofício na íntegra, clique aqui, ou leia abaixo:
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do seu Núcleo Especializado de Situação Carcerária, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Defensoria Pública do Espírito Santo, A Defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do Paraná, por meio do seu Núcleo de Política Criminal e Execução Penal, a Defensoria Pública do Amapá, a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, o Instituto Pro bono, a Pastoral Carcerária, o Instituto Terra Trabalho e Cidadania – ITTC, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio, vêm à presença de Vossa Excelência apresentar as considerações que
seguem:
No dia 17 de abril de 2020, o Diretor-Geral do Departamento Penitenciário Nacional, enviou ofício n. 806/2020/GAB-DEPEN/DEPEN/MJ ao Presidente do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária expondo que, em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus e a ocorrência do estado de calamidade pública, devem ser iniciadas ações para provimento de vagas temporárias e emergenciais em unidades prisionais. Ainda, informa que existe a possibilidade de serem criadas vagas por meio de instalações provisórias com estruturas metálicas, uso de contêineres (containers) adaptados e outras estruturas análogas. Por fim, apresenta proposta de minuta de resolução para a flexibilização das regras de arquitetura penal.
Foi declarada publicamente a situação de pandemia em relação ao novo coronavírus pela Organização Mundial da Saúde – OMS, em 11 de março de 2020, ao que se soma a Declaração de
Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional da Organização Mundial da Saúde, em 30 de janeiro de 2020, a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN, veiculada pela Portaria no 188/GM/MS, em 4 de fevereiro de 2020, e o previsto na Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus.
Para enfrentamento da situação, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação 62, aos 17 de março de 2020, com orientações aos Tribunais e magistrados para adotarem medidas
preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – COVID-19 no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo, considerando o alto índice de
transmissibilidade do vírus e o agravamento significativo do risco de contágio em estabelecimentos prisionais.
Embora revista-se de caráter de recomendação, seu acatamento é de salutar importância para a contenção da pandemia e a redução do caos social que dela advém, bem como para que a autoridade judicial cumpra o papel concreto de contribuição para o enfrentamento da questão de gravidade internacional decretada pela OMS. Não é possível manter a normalidade em situação de extrema excepcionalidade e risco.
Reportagem no The New York Times do dia 31 de março de 2020, sobre o Coronavírus, aponta que “36 em cada 1.000 presos deram positivo nas prisões de Nova York, contra 4 em cada
1.000 pessoas na cidade em geral”. Em Ohio, após testagens, apenas na prisão estadual do Condado de Marion, foram constatados mais de 1.800 casos da infecção, o que corresponde a 73% de toda a população da unidade prisional.
O risco de contágio é extremamente maior dentro da unidade prisional e pode se propagar para pessoas nas ruas, pois existem funcionários que trabalham nas unidades prisionais.
Ressalte-se importante o artigo da professora Kátia Sento Sé Mello, da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, no texto O sistema prisional brasileiro no contexto da pandemia de COVID-19, que
aponta que: “Estima-se que o risco de contágio de tuberculose nos presídios, por exemplo, seja 30 vezes maior do que o risco verificado na população comum”.
No sistema prisional brasileiro, o contágio iniciou-se no Complexo da Papuda, em Brasília, que já possui 40 presos e 27 policiais penais infectados pelo SARS-CoV-2. O Brasil já registrou a
primeira morte de uma pessoa privada de liberdade no Rio de Janeiro e a segunda em São Paulo.
A Portaria Interministerial nº 7, de 18/03/2020, publicada pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública e Ministro da Saúde, que dispõe sobre as medidas de enfrentamento da emergência
de saúde pública previstas na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, no âmbito do sistema prisional, dispõe que os espaços de isolamento deverão propiciar meios para higienização constante das mãos, inclusive com água corrente e sabão.
Senão vejamos:
“Art. 3º Na hipótese de identificação de casos suspeitos ou confirmados entre os custodiados, os profissionais de saúde que atuam nos estabelecimentos prisionais deverão seguir as orientações previstas nesta Portaria e em atos do Ministério da Saúde, inclusive quanto ao uso de máscara e isolamento individual.
§ 1º Caso não seja possível o isolamento em cela individual dos casos suspeitos ou confirmados, recomenda-se à Administração Penitenciária adotar o isolamento por coorte e o uso de cortinas ou marcações no chão para a delimitação de distância mínima de dois metros entre os custodiados.
§ 2º Os espaços de isolamento deverão, sempre que possível:
I – conter porta fechada e ventilação;
II – disponibilizar suprimentos para a realização de etiqueta respiratória; e
III – propiciar meios para higienização constante das mãos, inclusive com água
corrente e sabão.”
No manual de prevenção do coronavírus lançado pela China, o Dr. Wenhong Zhang, Líder da Equipe Especializada de Tratamento da Pneumonia Causada por Covid-197, indica que os locais
de isolamento devem ter boa ventilação, distância de um metro das pessoas, evitando-se o compartilhamento de objetos de higiene pessoal e de banheiro.
Os contêineres ou celas modulares não proporcionam ventilação adequada, água corrente acessível em tempo integral e a delimitação de distância mínima de um ou dois metros entre os custodiados. Para pessoas com deficiência, ainda, não há possibilidade de atendimento às regras da ABNT NBR 9050/2015. O art. 5º, inciso, inciso XLVII, da Constituição Federal proíbe penas cruéis. O relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados de 20098 traz a experiência fracassada dos contêineres no Estado do Espirito Santo, com a fala do vice-presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Padre Savério Paolillo, que descreve que os contêineires pareciam latas de sardinha, cheios de buracos e, embaixo deles, o esgoto a céu aberto, “desperdício de dinheiro público”.
A sexta turma do Superior Tribunal de Justiça no HC 142513/ES, DJe 10.05.2010, entendeu que o uso de contêiner como cela é inadequado e ilegítimo. Caso de manifesta ilegalidade e
indignidade. Nas brilhantes palavras do Ministro Relator Nilson Naves: (…) “Observem, Senhores, num contêiner. Num contêiner! Isso é impróprio e odioso, ou não é caso de extrema ilegalidade? É cruel, disso dúvida não tenho eu: entre nós, entre nós e entre tantos e tantos povos cultos, não se admitem, entre outras penas, penas cruéis (Constituição, art. 5º, XLVII, e). (…) Isso é humilhante e intolerável! Pois se tal já resultou em reclamação, reclamo eu também. Reclamo e protesto veementemente, porquanto em contêiner se acondiciona carga, se
acondicionam mercadorias, etc.; lá certamente não se devem acondicionar homens e mulheres. Eis o significado de contêiner segundos os dicionaristas: “recipiente de metal ou madeira, ger. De grandes dimensões, destinado ao acondicionamento e transporte de carga em navios, trens etc.”; “cofre de carga”; “grande caixa (…) para acondicionamento da carga geral a transportar”. Decerto
somos todos iguais perante a lei, e a nossa lei maior já se inicia, e bem se inicia, arrolando entre os seus fundamentos, isto é, entre os fundamentos da nossa República, o da dignidade da pessoa humana. E depois? Depois, lá estão, entre os direitos e garantias fundamentais, entre os princípios e as normas, entre as normas e os princípios: (I) não há pena sem prévia cominação legal (então
também não há de haver prisão sem previsão legal), por exemplo, prisão em contêiner; (II) não haverá, entre outras, penas cruéis; (III) assegura-se aos presos o respeito à integridade física e moral; (IV) assegura-se a todos o devido processo legal; (V) ninguém é culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (VI) a prisão ilegal há de ser imediatamente relaxada; e (VII) ninguém será levado à prisão quando a lei admitir a liberdade provisória.
Podendo aqui me valer de tantos e tantos outros textos (normas nacionais e normas internacionais), quero ainda me valer de um, um da Lei de Execução Penal, o do art. 1º: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” Se assim é – e, de fato, é assim mesmo –, então a prisão em causa é inadequada e desonrante. Não só a prisão que, aqui e agora, está sob nossos olhos, as demais em condições assemelhadas também são obviamente reprováveis. Trata-se, em suma, de prisão desumana, que abertamente se opõe a textos constitucionais, igualmente a textos infraconstitucionais, sem falar dos tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos (Constituição, art. 5º, § 3º). Basta o seguinte (mais um texto): “é assegurado aos presos o respeito à integridade física
e moral” (Constituição, art. 5º, XLIX).
É despreziva e chocante! Não é que a prisão ou as prisões desse tipo sejam ilegais, são manifestamente ilegais. Ilegais e ilegítimas. A questão, aliás, resultou em reclamação contra o Estado do Espírito Santo perante a Organização das Nações Unidas – ONU.
A Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados sobre o sistema prisional esclareceu, ainda, referindo-se a Belém, que “contêineres” são uma espécie de caixote, dentro do qual
há várias gaiolas, consistindo em minúsculas celas sem janelas e sem ventilação, quentes e abafadas, que abrigam mais de um preso. Vários foram os relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) repudiando a existência de celas contêineres.
Insta salientar que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária já acionou o Estado de Goiás para esclarecimentos, em 2017, com a notícia de estudo para licitação de celascaixotes (Processo n. 201816448003892). As Resoluções n. 2, de 12 de abril de 2018; n. 3, de 13 de setembro de 2018; e n. 6, de 13 de dezembro de 2018 já trazem flexibilizações intensas para construções, além de permitirem reformas das unidades prisionais.
O artigo 64 da Lei de Execução Penal prevê que cabe ao CNPCP estabelecer regras sobre a arquitetura e construção de estabelecimentos penais e casas de albergados. A proposta do
Departamento Penitenciário visa a extinguir as poucas regras restantes, violando o que determina a LEP.
Deve-se recordar que, no último ciclo de Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em 2017, diversos países fizeram recomendações ao Brasil, a
fim de que diminuísse a população carcerária, eliminasse a tortura e tratamento degradante e melhorasse as condições das pessoas presas. Diante deste quadro, o Estado Brasileiro assumiu o compromisso público de reduzir sua população carcerária em pelo menos 10% até 2019.
Tal promessa, contudo, não se operou. Ao revés, a proposta existente traz o cumprimento de pena de forma humilhante e degradante. Ainda mais grave, nesse sentido, é a proposta de encarceramento em contêineres de pessoas insertas no grupo de risco aumentado para a infecção, doentes e idosos. Conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, Junho/2016, a maioria das pessoas inseridas no sistema prisional brasileiro são negras, com baixo grau de escolaridade e na faixa etária entre 18 e 45 anos. No que se refere aos dados apresentados das pessoas a partir de 46 anos, correspondem a 8% da população prisional.
No entanto, é importante também considerar os mais jovens que passarão pelo processo de envelhecimento no cárcere. WACHELESKI, apoiada nas considerações de GHIGGI, nos provoca ao lembrar que o envelhecer dentro do cárcere tem impacto fundamental na vida do sujeito. Assim, “(…) o idoso preso pode ter mais características fragilizantes do envelhecimento do que alguém em liberdade que tenha sua mesma idade cronológica”.
Existem recomendações nacionais do Ministério da Saúde e recomendações aprovadas conjuntamente pelo UNAIDS, pela OMS, o UNODC, pela OIT e pelo PNUD para o enfrentamento
à epidemia da infecção pelo HIV, das infecções sexualmente transmissíveis, das hepatites virais e da tuberculose nas prisões, em consonância com as legislações nacionais. Entretanto, o Ministério da Saúde, até o momento, não foi acionado para apresentar parecer quanto à solicitação do Departamento Penitenciário.
A Resolução n. 3, de 7 de Junho de 2018, do CNPCP, que apresenta recomendações que visam à interrupção da transmissão do HIV, das hepatites virais, da tuberculose e outras enfermidades
entre as pessoas privadas de liberdade, exige, no art.14, inciso XVII e art. 19, II, a ventilação e iluminação naturais adequadas nos Estabelecimentos Penais.
Diante dessas considerações, as instituições e organizações abaixo-assinadas vêm externar sua extrema preocupação com a solicitação do DEPEN a este E. CNPCP, materializada no ofício n.
806/2020/GAB-DEPEN/DEPEN/MJ, que pretende que seja referendada por este órgão a possibilidade de aprisionar pessoas em contêineres. Entendemos que eventuais alterações nos parâmetros de arquitetura prisional devem necessariamente ser precedidas de estudos e da oitiva da academia e da sociedade civil, bem como devem respeitar as regras constitucionais e constantes dos instrumentos do direito internacional dos Direitos Humanos, padrões que, à evidência, não são respeitados pela solicitação de flexibilização das regras hoje existentes.
São Paulo, 21 de abril de 2020
Núcleo Especializado de Situação Carcerária – Defensoria Pública do Estado de
São Paulo
Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo
Núcleo de Política Criminal e Execução Penal – Defensoria Pública do Estado do
Paraná
Defensoria Pública do Amapá
Defensoria Pública da União
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM
Instituto Terra Trabalho e Cidadania – ITTC
Michael Mary Nolan
OAB/SP 81.309
Instituto Probono
Pastoral Carcerária Nacional
Instituto de Defesa do Direito de Defesa
Conectas Direitos Humanos
Centro de Referência em Direitos Humanos Marcos Dionísio
Candida de Souza