O site da PCr entrevistou Maria Lucia Karam, juíza de direito aposentada e presidente Agentes da Lei contra proibição (LEAP Brasil), sobre a descriminalização do uso, consumo e produção das drogas hoje consideradas ilícitas.
Segundo Maria Lucia, as leis que criminalizam essas drogas são inconstitucionais, pois partem da divisão de que existem drogas lícitas, como tabaco, álcool e café, que podem ser produzidas e consumidas sem problemas.
Além disso, ela afirma que a política de guerra às drogas não apenas falhou em proibir o acesso a essas substâncias, como gerou uma violência muito alta e o aumento do encarceramento, fatos esses que causam mais danos do que o consumo de drogas em si.
“Só existe violência em torno do mercado de produção e consumo dessas substâncias porque esse mercado não é legalizado. Não há ninguém trocando tiros junto a fábricas de cervejas, vinhedos, bares que vendem álcool, mas isso já aconteceu nos EUA na época da proibição do álcool, porque o mercado era ilegal. Hoje não há violência nesse mercado porque o álcool é legalizado. A violência para mim é o maior dano dessa política”.
Confira abaixo a entrevista completa:
Por que as leis que criminalizam as drogas são inconstitucionais?
Elas são inconstitucionais a partir da própria divisão entre drogas lícitas e ilíticas. As convenções da ONU e as leis nacionais partem dessa divisão, criminalizando as condutas de produção, comercialização e consumo de diversas substâncias, como a maconha, a cocaína e a heroína, enquanto mantém na legalidade as condutas de produtores, comerciantes e consumidores de outras drogas, como álcool, tabaco e cafeína.
Todas essas substâncias são drogas, que podem afetar o psiquismo e causar doenças físicas e mentais. E quando a lei diferencia condutas semelhantes entre legais e ilegais, essas leis estão violando o princípio da isonomia, que diz que ninguém pode ser tratado de forma desigual quando se encontra em igual situação.
Já a partir daí essas leis são claramente inconstitucionais, violando princípios inscritos nas declarações internacionais de direitos.
Quais os principais efeitos das proibições dessas drogas consideradas ilícitas?
Essas leis que tornam essas drogas ilícitas não conseguem atingir o seu objetivo de eliminar ou diminuir a disponibilidade dessas substâncias proibidas. Ao contrário, a proibição a nível mundial se iniciou no século 20, se fortalecendo na década de 1970 com a política de guerra às drogas, e passado todo esse tempo o que a gente vê é que não houve nenhuma redução na circulação dessas substâncias.
O que acontece é que elas foram ficando mais baratas, mais diversificadas e acessíveis. Esse fracasso da proibição já demonstra uma outra inconstitucionalidade, que é a violação ao princípio da proporcionalidade, que diz que o estado só pode interferir no comportamento individual das pessoas através de instrumentos que viabilizem o fim objetivado com a lei, e a proibição não alcança esse fim.
Muito pior que isso, que essa inaptidão para reduzir substâncias proibidas é que essa política de proibição acrescenta danos muito mais graves do que os causados pelas substâncias proibidas.
O maior desses danos é a violência. Só existe violência em torno do mercado de produção e consumo dessas substâncias porque esse mercado não é legalizado. Não há ninguém trocando tiros junto a fábricas de cervejas, vinhedos, bares que vendem álcool, mas isso já aconteceu nos EUA na época da proibição do álcool, porque o mercado era ilegal.
Hoje não há violência nesse mercado porque o álcool é legalizado. A violência para mim é o maior dano dessa política. O Brasil hoje tem 30 homicídios por 100 mil habitantes, é um índice altíssimo, e boa parte desses homicídios acontece nas disputas do mercado ilegal, nessa guerra às drogas que mata muito mais que as próprias drogas.
Quais os impactos que Lei de Drogas de 2006 teve neste cenário?
Vemos que a lei aumentou muito o número de presos por drogas. Em 2005 os presos condenados por tráfico correspondiam a 9% do total, e desde 2014 eles correspondem a 28%. Entre as mulheres esse número é muito maior: 68%.
É a maior causa de prisões no Brasil, que hoje tem a terceira maior população carcerária do mundo, e quase 30% da população prisional brasileira está presa por conta de vender uma substância ilegal.
Vale ressaltar que o ato do tráfico em si não é uma conduta violenta: é vender uma mercadoria para quem quer comprar. O que é violento não é o comércio de drogas, e sim a ilegalidade do mercado, porque a resolução dos conflitos é feita através da violência, do uso de armas. Nesse comércio, a violência vem da proibição, e isso é muito mais grave do que o consumo dessas substâncias.
Qual a importância de falar da descriminalização não só do usuário, mas da produção e comércio?
Tanto a proibição do comércio como do uso são inconstitucionais em relação ao princípio da isonomia. Então não há porque separar o uso e dizer que a produção e venda são condutas abomináveis. Vende-se o que alguém quer comprar.
Não vejo porque a conduta do vendedor seja mais grave do que a do consumidor. Além disso a mera descriminalização da posse para o uso pessoal não afeta o que é o mais grave nessa política de proibição, que é a produção da violência, que se dá exatamente pela ilegalidade do mercado no aspecto do comércio e da produção.
Que efeitos países que regularizaram certas drogas tiveram?
O que se tem hoje é ou uma mera descriminalização para uso pessoal, como em Portugal, República Checa, ou a legalização da produção do comércio e consumo no Uruguai, Canadá e em oito estados norte-americanos.
É cedo para ter conclusões definitivas, mas uma das coisas que aconteceu, pegando o estado do Colorado, que vende maconha legalmente há quatro anos, é que diferente do que muita gente temia com a legalização de que ocorreria um aumento incontrolável do consumo, as estatísticas mostram que o consumo no Colorado é mais ou menos o mesmo da média dos EUA.
Outra questão importante é a arrecadação de impostos, porque com a legalização, esse dinheiro que antes circulava ilegalmente nas gangues, hoje vai para o estado e legalmente. Grande parte desse dinheiro tem sido investido em escolas públicas, na saúde, houve criação de empregos com o mercado legal.
Em termos de redução de violência não há estatísticas no momento, e a mera legalização da maconha não resolverá esse problema, porque resta o mercado ilegal das outras drogas.
No Brasil, a maior parte da população prisional é negra, pobre e mora nas favelas. A política de guerra às drogas tem uma questão racial?
Com certeza. Ela fundamentalmente é dirigida contra os mais vulneráveis dentre os produtores, comerciantes e consumidores. A ideia que se faz do traficante é o marginalizado, morador de favela, não branco, e são esses traficantes do varejo que são presos e os que morrem também. O Mapa da Violência publicou recentemente dados discrepantes: a taxa de homicídios de pessoas negras aumentou no país, enquanto que a de pessoas brancas diminuiu.
Essa política de guerra às drogas estimula o racismo, porque cria essa imagem do traficante como um negro, morador de favela, aqueles que são “indignos de vida”, que podem ser mortos e presos, e o sistema penal é voltado para atingir os mais vulneráveis.
Não só no Brasil. Os EUA tem uma população carcerária enorme, com 2 milhões de presos, quase 700 por 100 mill habitantes, mas quando se consideram os homens negros, esse índice pula para 4700 por 100 mil habitantes.
Inclusive, muitos usuários de drogas negros são presos como traficantes…
Porque o usuário negro morador de favela, marginalizado corresponde a essa imagem do traficante que se tem na sociedade.
Como pautar a legalização na sociedade, não só na civil, mas como discutir com políticos, juristas, outras organizações sociais?
É fundamental falar, trazer essa discussão em todos os lugares, mostrar a irracionalidade da proibição, porque só se avança quando se compreendem as coisas. A sociedade vive muito na inércia, não para pra pensar.
O senso comum de que “as drogas são ruins, então devem ser proibidas e resolveu o problema” persiste. Só que não só não se resolveu o problema, como se criou muitos outros. É preciso debater, mudar essa mentalidade.
Nos EUA, as pesquisas mostram que nos últimos 20 anos, a legalização da maconha passou de uma rejeição quase geral para quase 60% de aprovação hoje.
Houve discussões e debates, e a mentalidade das pessoas mudou. É só assim que se avança, não adianta esperar de políticos, eles avançam quando a sociedade avança.