“Falar sobre pobreza na prisão é falar do sistema todo”, diz Ir. Petra em evento da Comissão Internacional das Pastorais Carcerárias (ICCPPC)

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A Irmã Petra Pfaller, coordenadora nacional da Pastoral Carcerária do Brasil, participou nesta segunda-feira (08) de evento online do ICCPPC (Comissão Internacional das Pastorais Carcerárias Católicas – tradução livre), onde falou sobre cárcere e pobreza.

Segundo Ir. Petra, não é possível falar em pobreza nas prisões brasileiras sem mencionar o sistema carcerário como um todo, pois este é baseado na miséria: “Falar sobre ‘pobreza na prisão’, se tratando dos cárceres brasileiros, é falar do sistema prisional como um todo, porque a prisão é feita para prender e torturar uma população que, em sua maioria, está à margem da sociedade: são pobres, pretos e periféricos”.

Ela afirma que há uma série de leis que deveriam garantir os direitos básicos da população prisional, mas que essas leis são garantidas majoritariamente à população presa de maior renda e status social, como foi o caso de Adriana Ancelmo, esposa do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, que teve sua prisão domiciliar concedida para cuidar dos filhos, enquanto que “há muitas mulheres negras e pobres, presas na mesma situação de Adriana Ancelmo, ou até mesmo com acusações menos graves, sem direito a essa prisão domiciliar assegurada em lei. E, sem a mãe para cuidar dos filhos, a família se desestrutura”.

Além disso, a situação dentro das prisões é “de miséria”, de acordo com a coordenadora.

“O Estado tem essas pessoas sob custódia, e deveria cuidar dos seus direitos e necessidades básicas, mas o que vemos nas nossas visitas pastorais são celas superlotadas, racionamento de água (muitas vezes água suja e contaminada), alimentação precária e consequentemente o alastramento de doenças. É o que nós da PCr classificamos como “Tortura Estrutural”, pois colocar seres humanos nesse tipo de ambiente é uma tortura física e psicológica”.

Irmã Petra acredita que a solução para essa situação é o desencarceramento, e o investimento em novas formas de resolução de conflitos, como a Justiça Restaurativa, pois “tudo isso que apontei não é porque o sistema prisional está em crise. Esse é o real projeto e a função das prisões brasileiras”.

Você pode conferir a fala de Ir. Petra em português na íntegra abaixo. Clique aqui para ler a fala em inglês, e aqui para ler em alemão:

Olá a todas e todos,

Sou a Irmã Petra Pfaller, faço parte das Irmãs Missionárias de Cristo, com sede na cidade de Munique. Fui criada perto de Munique e por mais de 31 anos estou em Missão no Brasil.

Moro em Goiânia, uma cidade perto da capital Brasília. Em 1995 fui convidada pelo Arcebispo Dom Antônio Ribeiro para ajudar a fundar a Pastoral Carcerária nesta cidade. E nestes 27 anos fiz muitas experiências bonitas e desafiadoras junto à população carcerária e seus familiares.

Atualmente estou como coordenadora nacional da Pastoral Carcerária do Brasil, que está diretamente ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Agradeço imensamente ao convite para poder contar um pouco sobre a realidade prisional brasileira, que é tão grave.

O nosso Fundador, Pe. Moser, Missionário do Coração de Jesus, nos deu como carisma: “Ser Luz na escuridão do Mundo” – o que é mais escuro do que celas superlotadas, fedendo, escuras, pessoas com fome e esquecidas pela sociedade, onde homens e mulheres são “enterrados vivos”?

Segundo nosso último levantamento interno, a Pastoral Carcerária está presente em mais de 75% das Dioceses do país, temos 3000 agentes da Pastoral Carcerária ativos, a grande maioria mulheres entre 50 e 69 anos que visitam semanalmente os cárceres. No Brasil estão presos quase 1 milhão de pessoas – nem o Estado sabe o número exato. Ou seja, somos muito poucos neste enorme país.

Todos/as agentes de pastoral são pessoas voluntárias, ou seja, não remuneradas. Não existe esta figura de Agente da Pastoral Carcerária remunerada pela Igreja ou Estado no Brasil, também é o meu caso como Coordenadora Nacional, a minha congregação me sustenta e vivemos de doações e projetos para sustentar a missão: as viagens para visitas nas Dioceses, material para formação, organizar a nossa comunicação, a equipe jurídica etc.

A Pastoral Carcerária do Brasil tem como objetivo duas balizas principais: Evangelização e a Promoção da Dignidade Humana. Os desafios são enormes.

Falar sobre “pobreza na prisão”, se tratando dos cárceres brasileiros, é falar do sistema prisional como um todo, porque a prisão é feita para prender e torturar uma população que, em sua maioria, está à margem da sociedade: são pobres, pretos e periféricos.

Existem uma série de Leis, regulamentações e tratados internacionais que garantem o respeito aos direitos humanos dos homens, mulheres, da população LGBTQIA+ e povos originários (Indígenas) que se encontram presos no Brasil, mas essas leis são cotidianamente ignoradas quando falamos da população prisional brasileira, que não tem condições financeiras; já quando falamos de pessoas de classe média ou alta que estão presas, esses direitos tendem a ser muito mais respeitados.

Ou seja, quem tem recursos financeiros têm acesso à justiça e é privilegiado em todos os sentidos. Um exemplo bem concreto, essas pessoas podem comprar água potável, para não precisarem beber a água suja e contaminada fornecida pelo estabelecimento prisional. O mesmo ocorre no âmbito da alimentação e assistência médica.

Um outro exemplo claro dessa discrepância no âmbito jurídico ocorreu em 2017. Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, foi presa em dezembro de 2016 devido a lavagem de dinheiro, e teve sua pena convertida em março de 2017 para a prisão domiciliar, para que pudesse cuidar dos seus filhos, à época com 11 e 14 anos.

A conversão da pena dela para prisão domiciliar está prevista na lei: mulheres mães que têm filhos para cuidar podem ter a prisão domiciliar garantida. No entanto, há muitas mulheres negras e pobres, presas na mesma situação de Adriana Ancelmo, ou até mesmo com acusações menos graves, sem direito a essa prisão domiciliar assegurada em lei. E, sem a mãe para cuidar dos filhos, a família se desestrutura.

Inclusive, muitas mulheres dão à luz no cárcere, e seus filhos e filhas ficam presos com elas! O Judiciário concede prisão domiciliar a uma pessoa com status e classe social maior enquanto continua encarcerando a população pobre, pois os juízes e o sistema Judiciário brasileiro são em si classistas e racistas.

Por que essas mulheres não podem cumprir suas penas em prisão domiciliar, cuidando de seus filhos em um ambiente muito mais saudável e menos perigoso do que a prisão? Porque no Brasil, a pobreza em si é um crime, assim como a cor.

É normal pessoas serem presas no Brasil, condenadas a uma sentença de anos, por estar passando fome e roubar um pouco de comida para não morrer.

E dentro das prisões, a realidade é de miséria. O Estado tem essas pessoas sob custódia, e deveria cuidar dos seus direitos e necessidades básicas, mas o que vemos nas nossas visitas pastorais são celas superlotadas, racionamento de água (muitas vezes suja e contaminada), alimentação precária e, consequentemente, o alastramento de doenças.

É o que nós da PCr classificamos como “Tortura Estrutural”, pois colocar seres humanos nesse tipo de ambiente é uma tortura física e psicológica.

E não é por falta de dinheiro que isso ocorre: como disse, o cárcere brasileiro tem como objetivo apenas a punição e a vingança, e essas condições sub humanas são parte desse processo.

Outro aspecto é a questão financeira. Muitas empresas lucram com o encarceramento em massa: a privatização na construção de presídios e no gerenciamento deles, os contratos milionários com a alimentação terceirizada, e a indústria do armamento, que tem um lucro imenso com o aumento da violência.

Quem mantém a pessoa presa viva, garantido o mínimo para a sua sobrevivência, são as e os familiares dos presos, que levam ou enviam alimentos, roupas, lençóis, dentre outras coisas.

Ou seja, a família, que na maioria das vezes não tem condições de se sustentar, tem que gastar uma parte do seu orçamento para que seu familiar preso não morra atrás das grades, pois o Estado não garante o mínimo.

A situação tem se agravado muito após a pandemia e do Governo de Jair Bolsonaro; por sinal, a militarização e casos de denúncias que recebemos aumentaram consideravelmente em todas as dimensões.

As prisões sempre foram ambientes muito fechados, e se fecharam ainda mais nestes últimos 6 anos. Atualmente, as regras para visitar o cárcere estão muito mais duras, dificultando o acesso à pessoas presas, seja para organizações da sociedade civil, como também para as Igrejas, especialmente para a Pastoral.

Como nós da Igreja católica, além da evangelização somos preocupadas também com a dignidade das pessoas, fazemos denúncias no nível nacional e internacional, o que consequentemente traz uma certa perseguição por parte do Estado.

A Pastoral Carcerária Nacional do Brasil só enxerga uma solução para a situação carcerária brasileira: o desencarceramento. 10 anos atrás foi elaborado junto com outras entidades da sociedade civil um programa com 10 pontos para alcançar esse desencarceramento. Aliás, o material se encontra online também na versão inglês e alemão.

Uma das medidas propostas é a implantação cada vez maior da chamada Justiça Restaurativa, que é uma real alternativa a esta política punitivista, que só leva a mais prisões e aumenta mais a violência, a dor e o sofrimento.

O que expus aqui nesse tempo é só uma pequena parcela de toda a barbárie que ocorre dentro das prisões, todos os dias.

Encerro essa fala agradecendo novamente a oportunidade de trazer à tona essa realidade tão dolorosa dos presídios brasileiros, e reafirmo que tudo isso que apontei não é porque o sistema prisional está em crise. Esse é o real projeto e a função das prisões brasileiras.

Obrigada,

Ir. Petra Silvia Pfaller
Coordenadora Nacional
Pastoral Carcerária – CNBB

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