“A saúde mental ainda é tratada como assunto de segurança pública”

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Saúde no cárcere

Por José Coutinho Júnior
Na próxima quarta-feira, 12, o Grupo de Trabalho (GT) Saúde Mental e Liberdade da PCr irá realizar uma roda de conversa às 19 horas no auditório do Conselho Regional de Psicologia sobre como pessoas que deveriam ser tratadas como pacientes se tornam criminosos aos olhos do estado.
Os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs) serão um dos principais temas da discussão, pois a forma como os pacientes são tratados lá dentro ignora a reforma psiquiátrica brasileira de 2001, que extinguiu o sistema manicomial.
De acordo com Caio Mader, agente da Pastoral e membro do GT, a pena de quem vai para um HCTP é suspensa, mas “a pessoa é submetida a laudos periódicos e só é liberada quando o laudo afirmar que ela não representa riscos para a sociedade. O que acontece é que uma pena de sete anos, por exemplo, pode se transformar em 16, 20 anos, se o laudo não constatar que você não é mais perigoso”.
Caio também afirma que o sistema carcerário, produtor de violências e violações de direitos contra os presos, é responsável por causar diversos transtornos mentais em presos que entraram com condições normais de saúde.
“O próprio sistema faz com que a pessoa desenvolva transtornos, porque é um sistema precário, de violências, torturas, e as condições do sistema faz com que muitos presos em presídios comuns desenvolvam transtornos mentais”.
Confira abaixo a entrevista de Caio Mader ao site da PCr sobre a saúde mental no sistema carcerário brasileiro:
Caio MaderPor que a PCr criou um Grupo de Trabalho sobre saúde mental?
A questão de saúde mental no cárcere é um tema muito negligenciado. Mesmo com a reforma psiquiátrica de 2001, a gente sente que esse tema não entra no âmbito dos presídios.
Por isso o GT foi criado em 2014. Ele tem membros da ouvidoria da defensoria pública, psicólogos e agentes da PCr para discutir a questão de saúde mental no cárcere, em específico nos HCTPs.
O que vai ser debatido na roda de conversa?
A reforma psiquiátrica brasileira data de 2001 e foi bem sucedida, extinguiu o sistema manicomial como a gente entendia e conseguiu descentralizar o tratamento pra rede CAPS, que é o sistema do SUS que atende pessoas com transtorno mental.
A ideia do confinamento para tratar pessoas com problema de saúde mental deixou de existir. Só que sentimos que essa nova visão de saúde mental não chegou nos HCTPs, que ainda trabalham do mesmo modo.
Ou seja, os HCTPs funcionam nos mesmos moldes que os manicômios antigos: confinamento, o paciente que está ali dentro não tem direito de sair. Queremos visibilizar essa pauta para os movimentos antimanicomiais, que trabalharam muito para a reforma psiquiátrica, foram exitosos, mas não pensaram muito nessa questão.
Existe muito preconceito no sistema penal para com pessoas que tem transtornos mentais?

É importante ressaltar que a questão da saúde mental não se trata só de pessoas que tinham um transtorno, cometeram um crime e foram para o sistema. Muitos são presos com condições normais de saúde, mas o próprio sistema faz com que a pessoa desenvolva transtornos, porque é um sistema precário, de violências, torturas, e as condições do sistema faz com que muitos presos em presídios comuns desenvolvam transtornos mentais.
Dados da Associação Brasileira de psiquiatria mostram que pelo menos 12% da população carcerária sofre de algum transtorno mental. Isso mostra como o sistema produz os próprios doentes, como acaba vulnerabilizando ainda mais uma vida que já é precária dentro do sistema prisional.
E existe um estigma muito forte na nossa sociedade. O criminoso é estigmatizado, o louco também. Se você junta os dois, o estigma dobra. Eu diria que são as pessoas mais marginalizadas, o preconceito é muito grande.
As mulheres costumam ser a parte mais vulnerável do sistema carcerário. Isso também acontece em relação ao surgimento de transtornos mentais?
Pelas visitas que o grupo tem feito a gente observa uma situação um pouco mais vulnerável para as mulheres, até por uma razão histórica. Antigamente tinha esse diagnóstico da “mulher histérica”.
Esse estigma machista de ver a mulher como histérica, emocional, que não sabe controlar a razão foi usado para que houvesse internações de mulheres no passado. Acho que até hoje a gente não está livre desse estigma.
Tanto que observamos uma sobremedicação das mulheres em relação aos homens nos HCTPs.
RodaDeConversaGTO que acontece com um preso que é diagnosticado com transtorno mental?

Esses presos caem em vulnerabilidade. A pena é suspensa e a pessoa entra em medida de segurança. Então a pessoa vai para atendimento ambulatorial ou compulsório, que seriam os HCTPs.
Só que como a pena foi suspensa, a pessoa é submetida a laudos periódicos, e só é liberada quando o laudo afirmar que ela não representa riscos para a sociedade. Mas o que acontece é que como não tem um tempo definido para ficar lá, uma pena de sete anos, por exemplo, pode se transformar em 16, 20 anos, se o laudo não constatar que esse preso não é mais perigoso.
Existe algum tipo de tratamento nos HCTPs?
Por ter a pena suspensa, em teoria o HCTP teria caráter de cuidado. A pessoa não tem culpabilidade pelo crime, deveria existir um tratamento, um viés da saúde.
Mas o que vemos na realidade, que é bem distante da teoria, é que continua sendo um assunto de segurança pública. A questão do “perigoso” continua sendo muito mais forte que a do “doente”.
A gente observa uma carência total de tratamento no HCTP. Há apenas o confinamento da pessoa, que está lá recebendo medicamentos numa base diária, e isso acaba sendo o único tratamento que ela tem, se a gente pode chamar medicação e confinamento de tratamento.
Qual seria um tratamento eficaz para essas pessoas?
Nós advogamos pelo fim dos HCTPs, porque ele está totalmente à margem da reforma psiquiátrica de 2001. Defendemos o tratamento ambulatorial, que não seja tolhido o ir e vir da pessoa e que ela tenha acesso aos equipamentos já disponíveis para o tratamento de saúde mental. Porque o confinamento, como é feito hoje, não contribui com a melhora do paciente.
O tratamento ambulatorial tem trazido resultados positivos?
Por não tolher o direito de ir e vir e ter uma perspectiva muito mais humanizada, o tratamento ambulatorial contribui para a reinserção do indivíduo na sociedade. Porque o que acontecia antigamente com o confinamento nos manicômios era o total isolamento social.
Então mesmo se a pessoa fosse solta, é como se ela carregasse o manicômio dentro dela. Não havia acesso a trabalho e muitas vezes a pessoa perdia o contato com a família.
A ideia é que o tratamento não seja excludente dos laços sociais do paciente. ele ainda vai ter contato com a família dele, mantendo seu emprego, sua casa, seu espaço de convivência, que é fundamental para o sujeito ter uma saúde mental saudável.
Confinar uma pessoa na verdade contribui para males maiores. Quem poderia ser saudável totalmente a parte da sociedade que a gente vive?
É possível tomar medidas para evitar o surgimento de transtornos nas prisões?
Não. O sistema prisional é visto como eficiente pela sociedade porque ele mata. Não estou falando só de massacres históricos como o do Carandiru em 1992, mas de massacres cotidianos: as pessoas morrem diariamente no sistema carcerário.
Eu acho que não temos como política humanizar o sistema carcerário, porque não tem como humanizar uma máquina de mortes.
É difícil de falar de uma melhoria em ambientes como esse. A saída é pelo desencarceramento, com vistas a uma nova forma de solução de conflitos na sociedade.

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