A pesquisadora Amanda Machado, de 28, anos conversa com a Pastoral Carcerária Nacional sobre seu mestrado em Ciências Criminais “Entre a Cruz e a Espada: Contornos da Justiça Restaurativa mobilizada pela Pastoral Carcerária”.
Após sua graduação em 2017, Amanda iniciou seu envolvimento com a Justiça Restaurativa (JR), porque acredita ser uma linha mais emancipatória e comunitária de resolução de conflitos.
Amanda atuou como secretária e vice-presidenta da Comissão de Justiça Restaurativa da OAB-SP, e sempre se interessou sobre o mundo vulnerabilizado das pessoas aprisionadas, era um ponto de interesse tanto como pesquisadora quanto como militante. “Acho que sempre tive uma veia abolicionista e isso foi se consolidando conforme fui estudando e podendo dar nome ao que eu sentia e era”.
Abaixo você confere a entrevista na íntegra:
Por que você decidiu fazer um mestrado analisando a JR da Pastoral Carcerária?
Na PCr encontrei esse ambiente em que falamos sobre isso, fazemos visitas, conversas sobre como melhorar o que está acontecendo, e acho que foi por isso que me filiei à PCr, não necessariamente por questões católicas, mas principalmente pela militância que ela exerce dentro do cárcere como apoio, auxílio e luta.
Mudou muito o objeto do meu mestrado, principalmente por conta da pandemia. Antes eu queria fazer um trabalho de campo e pensar em práticas restaurativas dentro do cárcere, mas isso mudou bastante.
Acho que desde o final da minha faculdade, quando eu me voltei para JR, não teve muita dúvida que era o que eu gostaria de seguir em uma pesquisa acadêmica, para entender qual o tipo de JR aplicada no Brasil por diferentes órgãos e comunidades, e dentre elas escolhi a PCr.
Como foi a mudança com a pandemia, teve algo positivo?
Eu tenho muita dificuldade de associar qualquer coisa positiva com a questão da pandemia, acho que eu me adaptei e estou satisfeita com o fruto que aconteceu na dissertação, foi para um lado importante também, mas claro que eu preferia continuar a fazer o trabalho em campo, acompanhar a PCr em atividades de justiça restaurativa que pratica Brasil afora.
Na questão da pesquisa especificamente, a PCr ter começado a fazer atividades online, que foi uma consequência da pandemia, foi positivo para que eu pudesse ter acesso a diferentes pessoas e núcleos da Pastoral e a possibilidade de fazer contato com a Vera Dalzotto (assessora da PCr Nacional para a questão da JR), não sei se eu teria feito esse contato se as atividades online não estivessem sido promovidas, porque sou de SP e ela é do RS.
Você fala muito sobre a cooptação da JR no seu trabalho. Por que esse processo ocorre, em um sistema que é tão punitivo como o que temos atualmente?
Por termos um sistema muito punitivo, imagino que o que acontece é um movimento que teoricamente é emancipatório e libertário como a JR, quando começa a ganhar uma certa visibilidade, como aconteceu com a conciliação e a mediação, o sistema se apropria disso para colocar um limite e não ser algo que vai de fato revolucionar o sistema em que a gente vive.
Isso acontece em vários âmbitos, se falarmos de âmbito econômico com certeza terá coisas parecidas de sistemas econômicos sustentáveis que surgem e o sistema capitalista se aproxima para dar um freio naquilo. É isso que quero dizer com cooptação, é quando nos apropriamos de alguma coisa para dar limite àquilo e não deixar na mão do povo, por exemplo.
Essa diferenciação é feita por vários autores de JR institucionalizada e JR comunitária, são coisas bem diferentes. Na institucionalizada, muitas vezes tem regras que acabam indo de frente com os princípios da JR, como estar lá de forma voluntária, então se a JR no sistema judicial é algo que pode ser uma alternativa penal, a voluntariedade fica um pouco em xeque, porque quando a pessoa realmente está lá de peito aberto para participar de uma atividade é diferente de quando a pessoa opta por isso para ir para uma alternativa penal.
Você acha que tem algum ponto de conciliação, ou realmente temos que olhar como duas coisas diferentes?
Tenho muita dificuldade de ver pontos de conciliação entre esses dois, mas também faço a ressalva que sou uma pessoa que cada vez menos estou envolvida com JR institucionalizada, então pode ser que tenha alguns projetos que respeitem mais alguns princípios restaurativos.
Não posso colocar como palavra final, é do ponto que eu conheço aqui em São Paulo e nos anos em que eu estive próxima da institucionalizada. Agora, eu acho sim que é possível ter pontos de conexão, à medida que é respeitado esse vínculo com a comunidade, que não acontece.
Estamos vendo o contexto da pessoa e entendendo o que pode ser feito naquele cenário, então a partir do contexto presente e passado, o que pode ser feito? Se o judiciário tiver a disponibilidade de fazer isso, acho que aproxima sim. Pode ser que tenham projetos sobre isso, mas não que eu conheça.
Se em uma roda de JR é chamada uma pessoa que representa a comunidade, do círculo social ou familiar da pessoa ofendida e a outra pessoa como ofensor, e são entendidos quais são os meios que aquela comunidade tem para que um acordo entre as duas partes seja atingido, acho bacana, porque se aproxima muito mais de uma prática comunitária.
Outro ponto interessante mencionado na sua pesquisa é a apropriação de valores de outras culturas, que são transplantados para a nossa. Isso é uma coisa problemática, ou há um potencial para aprendizagem?
Acho que tem todo o potencial para aprendermos. Se pegamos obras de pessoas indígenas ou africanas, nós percebemos que é uma outra cultura e uma outra cabeça para lidar.
O complicado é pegar isso, fazer um recorte ocidentalizado e colocar no nosso sistema judiciário sem respeitar todo o resto que essas culturas trazem. Sem fazer com que o facilitador faça um pré-círculo com a comunidade e um pós para acompanhar, sempre colocando a prisão como alternativa, sempre sobre a ameaça, para mim não adianta recortar outra cultura e colocar na nossa.
Precisamos aprender com todo o repertório que aquela cultura traz pra gente, só que isso provavelmente vai significar que nós teremos outra perspectiva do que temos hoje em dia. Povos originários no geral não são regidos pelos nossos valores ocidentais, que são etnocêntricos, colonizados e capitalistas.
Isso realmente dá um bug na nossa cabeça a princípio, mas acho muito necessário que a gente faça esse diálogo, inclusive trazendo representantes desses povos que aplicam JR, para que a gente compreenda um caminho alternativo ao que nós temos feito hoje, só o recorte que acredito que não cabe.
Sobre a JR da Pastoral: você avaliou que o caráter da PCr é heterogêneo e tem traços libertadores e punitivistas. Na sua opinião, o que deve ser feito para que a JR da PCr vá para essa direção mais libertadora e menos punitivista?
Uma coisa muito positiva que a Pastoral já tem feito é que nos últimos anos a preocupação com violências estruturais têm sido muito mais intensas nas formações de JR, isso pra mim já diz muito. Eu na verdade tenho dúvida, segundo os critérios superficiais que eu tracei na minha dissertação, se conseguiríamos identificar um movimento que de fato se enquadre 100% na JR emancipatória latino-americana.
Eu sou uma pessoa que apesar de lidar com isso diariamente e tentar ser o mais atenta possível tenho traços machistas, racistas, homofóbicos e patriarcais, inclusive, focando no machista, sou mulher e tenho certeza que carrego muito dessas coisas ainda, por ser uma violência estrutural que veio muito antes de mim e eu replico.
Com isso eu quero dizer que a PCr está em um caminho bem positivo, e quanto mais se atentar a isso, melhor vai ficar. Um cuidado com o vocabulário também, que já existe um pouco na PCr, pensar mais nos conceitos de responsabilização e não punição.
Por fim, que é o principal, é se nutrir um pouco mais do mote da PCr, que é a questão abolicionista. Isso para mim seria algo bem necessário de ser feito, ter um pouco mais de abertura para conversas, palestras e encontros que discutam o abolicionismo penal.
A PCr tem tudo para ser abolicionista, eu senti falta de um diálogo que fale mais sobre isso nos meios que eu transitei. Talvez essa seja uma sugestão um pouco mais factível, porque acho complicado que alguma organização se torne 100% emancipatória latino-americana da noite por dia.
Como eu disse, são pequenos passos para ir se aproximando, é um direcionamento e não uma pressão para que se torne absoluta. Acho que é muito difícil, não conheço uma pessoa que não esteja dentro desse sistema racista, machista, homofóbico e patriarcal.
Sobre o abolicionismo, acho que a complicação é a própria estrutura da PCr. A coordenação tem uma visão mais abolicionista, mas quem está na base e faz a Pastoral tem a visão mais de caridade. Acho que esse pode ser um dos motivos que dificulta pautar o abolicionismo.
Por isso acho que o caminho é conscientização em pílulas. Se nós chegamos e já jogamos temas de racismo e machismo, não são facilmente absorvidos. É uma coisa gradual mesmo, mas temos que abrir esse espaço.
O que seria uma JR que leva em consideração a realidade brasileira, as violências estruturais e a população marginalizada que é presa?
Acho que só de levar essas violências em consideração já é um ponto de diferenciação do que muitas vezes acontece. Isso rola muito no Brasil, de nos deslocarmos da realidade, de não nos reconhecermos como latino-americanos.
Eu falo de mim mesma, para mim passava batido a realidade da latinidade e como nós temos semelhanças com países que estão ao nosso lado, como a história colonizatória, por exemplo. Levar em consideração já é um grande ponto para que a JR se situe melhor aqui no Brasil, ao invés de só importar outras teorias que não se aplicam muito aqui.
As minhas sugestões foram compiladas nessas qualidades orientadoras que coloquei na dissertação: o cuidado com a linguagem, para que a palavra seja de fato sócio-transformadora e não fique replicando outro significado; que não se replique uma lógica dualista de bem versus mal; a preocupação com as violências estruturais e se afastar do punitivismo o máximo possível, que para mim significa o desmantelamento da prisão.
Você fala que acaba tendo uma hierarquia entre quem aplica a JR e quem participa do processo, essa verticalização acaba sendo um problema?
Essa foi uma preocupação que eu tive como problema de pesquisa, de pensar se as práticas pastorais estavam verticalizando a JR dentro do cárcere. É um ambiente de vulnerabilização e a PCr, querendo ou não, representa um poder que vem com a bagagem da Igreja Católica, e ela entra num espaço que pouquíssimas pessoas e entidades entram.
A minha preocupação era pensar se esse lugar de poder faz com que a prática restaurativa acabe tendo essa ideia verticalizada. Isso pode se replicar em muitos outros lugares, a não ser que seja feita numa comunidade totalmente horizontalizada, mas se for feito no judiciário ou em algum órgão que seja para egresso do sistema prisional, vai acontecer também.
A tentativa é na fala, nas atividades que foram feitas naquele círculo, e tentar horizontalizar de novo, tentar que nenhuma fala repercuta essa possível verticalização. É a única sugestão possível. Acho interessante que nas entrevistas que eu conduzi dentro da prisão, poucos disseram que existem falas religiosas que sejam feitas conscientemente pelos facilitadores. Isso já é um passo que se dá nesse sentido de tentar horizontalizar novamente, você não está replicando esse poder atrás de você que está validando a PCr.
É uma pergunta bem difícil, não sei se tem uma resposta porque depende do caso. Uma das pessoas entrevistadas disse que para ela é impossível que em um processo de JR aconteça uma total horizontalidade, porque a pessoa facilitadora vai estar melhor munida teoricamente sobre o que é o processo de JR, isso faz com que ele já tenha um outro papel nesse processo.
Tal qual a JR emancipatória latino-americano, é uma coisa que você tem que se direcionar a ela e fazer o máximo possível para combater a verticalização.
Você analisa que algumas pessoas que aplicam JR carregam preconceitos de que a prática só serve para crimes leves. Como podemos trabalhar para quebrar esse preconceito e inserir a JR como uma alternativa viável ao cárcere para todo tipo de crime?
Acho que tem várias possibilidades, sempre com um ponto em comum de conscientização. Para pessoas que trabalham com dados, mostrar que países nórdicos e europeus aplicam JR em todos os tipos de caso e que a taxa de sucesso é muito alta pode ser um fator de convencimento.
Outra coisa é sempre dar passinhos pequenos, mas permanentes. Fazer trabalho de conscientização comunitária sobre a nossa história e a memória do Brasil. O porquê das pessoas estarem sendo encarceradas, qual o perfil e porquê ele é muito maior, o que acontece com essas pessoas e como elas se reinserem na vida?
Entender esse início talvez dê uma outra dimensão do que pode ser feito como JR. É realmente refazer um tecido social, que de alguma forma foi impactado. Compreender a função ou disfunção da prisão pode fazer com que as pessoas entendam que seria uma alternativa positiva com a JR.
E também a leitura para além da prática: ler quem fala sobre isso. Tem vários relatos de casos que falam sobre famílias de vítimas que se reconciliam com o ofensor, não no sentido bobo de “ser amigos”, mas de fato entender que isso é um processo de cura muito maior do que uma vingança. A pessoa ficar presa vai afetar os familiares dela também, o filho dessa pessoa vai ser afetado e a gente não sabe o que vai acontecer quando ele ficar adulto, é um ciclo que não é quebrado.
Então ter uma melhor dimensão do que acontece com uma pessoa que é presa é um caminho; entender os exemplos ao redor do mundo que deram certo, e são inúmeros; e entender que a ressocialização no Brasil é um mito, a pessoa está sendo presa para sempre mesmo que saia da prisão.
Estamos marginalizando permanentemente um grupo quando fazemos isso. Além do sistema de justiça ser totalmente disfuncional, mesmo que seja pela alternativa penal, não é educativo e sim burocrático.
As famílias também sofrem a pena junto com quem está preso, o que a JR pode fazer para ajudar os familiares?
As pessoas presas estão envolvidas nos processos restaurativos. Os processos com as pessoas aprisionadas por si só já ajuda muito até na relação entre os familiares com ela. Uma outra coisa que imagino que a PCr faça bastante que é excelente é esse apoio, com os círculos de acolhimento aos familiares.
Uma mãe que tem um filho preso passa muitas vezes a não participar das mesmas rodas que era bemvinda antes. Entrando até na questão de gênero, que foi a mulher que não “educou o filho direito”. Todas essas teias vão se entrelaçando e por isso é importante que a gente faça vários passos de conscientização ao mesmo tempo.
Para a família, a JR é extremamente presente e isso que é a benesse, não são duas pessoas isoladas como réu e vítima, é o círculo das pessoas envolvidas e as comunidades às quais elas pertencem, tudo isso está envolvido na JR.
Para finalizar, que mensagem você passa aos agentes da Pastoral que estão praticando a JR?
Acho que é uma mensagem muitas vezes passada pela coordenação nacional que eu ratifico, que é sair um pouco da lógica de assistencialismo e caridade. Quando colocamos as atividades pastorais como caridade, nós nos colocamos um pouco em um papel de herói e acaba acontecendo a verticalização, e não sei até onde isso pode ajudar uma pessoa verdadeiramente a longo prazo.
Então acho que é os agentes saírem desse papel de caridade e entender todo o potencial que um movimento como a PCr tem, tanto pela história dela, que é importante que os agentes conheçam, mas também entender que a PCr é um dos únicos órgãos que podem entrar na prisão e isso é muito significativo.
Se usarmos isso para mudar um pouco o que acontece lá dentro, não vai precisar de caridade ao longo prazo, porque as coisas vão ter se transformado. É entender também o potencial do ser humano, ser empático e ter compaixão, mas se colocar para uma ajuda a médio e longo prazo.
Entrevista: José Coutinho Júnior e Isabela Menedim
Edição de vídeo: Maria Ritha Paixão