Do Conselho da Comunidade de Curitiba
O Padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, esteve em Curitiba no fim de maio para acompanhar o Conselho da Comunidade em três vistorias: no Complexo Médico Penal (CMP), Penitenciária Feminina do Paraná (PFP) e Penitenciária Central do Estado (PCE). As três reúnem um quadro geral censitário (mulheres, pessoas que respondem medidas de segurança, faccionados e presos “comuns”) e estrutural (poucos agentes penitenciários, contêineres, celas apertadas e muita ociosidade) do sistema punitivo local.
Na mesma semana ele esteve reunido com o desembargador Ruy Muggiati e o magistrado Eduardo Lino Bueno Fagundes Júnior, coordenadores do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciário do Paraná, para conhecer o projeto numerus clausus, os mutirões carcerários, a aplicação da prisão domiciliar para grávidas e gestantes e a realidade das delegacias.
Silveira é catarinense, formado em Filosofia e Teologia e estudou no Centro de Estudos sobre Prisão da Kings College London, na Inglaterra. Ele comanda a luta e os treinamentos da Pastoral Carcerária desde os anos 1990. A instituição fiscaliza as condições do cárcere e já produziu inúmeros relatórios em parceria com juristas e professores de Direito sobre a ausência de políticas públicas efetivas sobre a Justiça criminal. A entidade tem agentes espalhados por todos os estados brasileiros e é parceria da Anistia Internacional e Justiça Global.
A principal reivindicação da Pastoral é a Agenda Nacional Pelo Desencarceramento, lançada em 2013. O documento visa fortalecer práticas comunitárias de resolução pacífica de conflitos por meio de diretrizes como suspensão de qualquer investimento em construção de novas unidades prisionais; limitação máxima das prisões cautelares, redução de penas e descriminalização de condutas, em especial daquelas ligadas às drogas; ampliação das garantias da execução penal e abertura do cárcere para a sociedade; proibição absoluta da privatização do sistema prisional; e o combate à tortura e desmilitarização das polícias.
Na entrevista, Valdir João Silveira fala ainda sobre violência, sociedade, aspectos da prisão, adaptação, problemas na legislação e ressocialização.
Como você vê o aprisionamento e principalmente o aprisionamento em contêiner, que é uma política que o Paraná voltou a adotar no ano passado?
Em termos gerais, a Pastoral Carcerária luta pelo fim do encarceramento. Dados e estudos em nível global mostram que a política de encarceramento não deu certo. A forma de lidar com a punição, que é colocar uma pessoa em ambiente de confinamento, nos presídios, degrada a pessoa e marca ela para vida toda. E ainda agrava a segurança da sociedade. Você só cria pessoas com mais treino para o crime. A Pastoral Carcerária tem essa luta, acredita nisso, e, como a origem é católica, acredita que o nosso Deus é da libertação, e nunca da prisão, da condenação e da vingança.
Você visitou recentemente presídios na França e na Alemanha. Ainda que tenham condições agradáveis de encarceramento há o fenômeno do encarceramento. Que impacto ele tem na vida de uma pessoa, no cárcere e no pós-cárcere?
Acho cômico quando dizem que o preso está gostando do presídio. O preso tem essa forma de chamar a atenção para ganhar a liberdade o mais breve possível. Porque ninguém se sente bem numa jaula. Quando adaptado a esse ambiente é pior ainda. Estar adaptado ao confinamento é doentio. Nos outros lugares do mundo chama a atenção a forma de tratamento: tem trabalho, estudo, celas individuais ou para até duas pessoas. Mas o índice de suicídio ganha do Brasil. Porque ninguém se adapta a esse esquema de confinamento.
A prisão despersonifica as pessoas?
Destrói as pessoas. Totalmente. Não só os presos, mas também as próprias relações. Quem convive com uma pessoa que saiu do presídio sabe como é traumatizante essa relação. Afeta família, amigos, sociedade. Quando se fala que tal modelo de presídio tem número de reincidência inferior eu sempre pergunto: foi avaliada a reincidência em que período? Quantos anos? Como você consegue avaliar a reincidência de alguém que saiu de uma unidade de um estado e cometeu delito em outro estado?
Não existe esse acompanhamento em nível nacional. Há dados muito falhos sobre reincidência no Brasil. E os dados usados são preocupantes. Uma coisa é certa: quanto mais presídio se constrói, pior é o índice de violência. Quantos presídios o Brasil construiu nos últimos 20 anos? E o crime aumentou. O aumento no número de presídios aumenta automaticamente o índice de criminalidade e de violência da sociedade.
Os presídios têm um grau de subjetividade muito grande. Alguns censuram cartas, outros não. Alguns censuram a comunicação com outros internos. Isso prejudica a execução penal?
O sistema prisional tem um relacionamento interno que destrói o que a pessoa carrega de cultura local, estadual, religiosa. O sistema tem outra forma de relação, que é o esquema da sobrevivência. Sobrevivem os mais violentos. Os humanitários caem nos presídios porque não conseguem conviver com essas violências, com a sonegação dos seus direitos. A pessoa presa só tem negado o direito de ir e vir, não está impedida de se comunicar com a sociedade. Mas o sistema isola, reduz o máximo que puder. Pode verificar: presídio algum no Brasil sobrevive a inspeção de órgão competente de saneamento. São totalmente irregulares.
A própria determinação é irregular: se constrói totalmente fora da lei. Deveriam ter espaços para laborterapia (educação e trabalho). Quando você aceita que um presídio pode ser construído fora da lei você aceita outro sistema. Quem está preso está fora da lei, e o Estado garante essa instituição ilegal.
Presídios são ilegais. Nenhum funciona de acordo com a lei. Agora, como vai ‘consertar’ alguém num regime altamente ilegal? De que forma? É uma contradição da lei, uma forma de iludir a sociedade. Iludir pelo seguinte: se tal indivíduo está preso, tenho segurança. É ilusão. Além disso preso é muito caro. Porque o sistema é caro. E a prisão é um agravante de todas as violências. Você tem seus direitos confiscados e é condenado a viver na ilegalidade. Presídio autoriza as pessoas a viver na ilegalidade por vários anos.
Esse é um problema também do Judiciário, do Ministério Público, do Executivo. Existe casamento perfeito para mudar essa realidade?
Falta muito mais da sociedade civil. As instituições são coniventes com isso, a própria imprensa. Falta um trabalho de responsabilização muito grande com todos os órgãos, governo, Judiciário, e religiões também, que convivem harmoniosamente com essa realidade. Religiões não se opõem, se calam, e quando me calo perante a injustiça sou cúmplice. Sempre falo isso: nós seremos cobrados, muito em breve, pelas futuras gerações.
Por que permitíamos viver e conviver com irmãos enjaulados em condições sub-humanas? Se trocassem esses seres humanos por animais haveria comoção mundial, mas se permite passivamente e ali ficam confinados até a morte. E nós não reagimos. Somos uma sociedade muito violenta. A indiferença aniquila, destrói e mata muita gente. O índice de mortes nos presídios é muito alto no Brasil. Pela indiferença. Ninguém chora essas mortes.
Parte dessa falta de atividade da sociedade civil passa pelo desconhecimento das pessoas em relação a direitos e principalmente Direitos Humanos? Pesquisa recente do Instituto Ipsos diz que 2 em cada 3 brasileiros acham que Direitos Humanos protegem bandidos.
A pessoa que mais divulgou essa mentalidade governou São Paulo e dizia ‘Direitos Humanos para Humanos Direitos’. Não para bandido. E preso bom, ele dizia, é preso morto. Essa pessoa foi presa. E uma vez no presídio recorreu de imediato para Direitos Humanos. Quem mais divulgou essa mentalidade tornou-se vítima do próprio discurso. Não está errado, mas olha como a coisa é cômica. Uma coisa que defendemos como Pastoral é o seguinte: presídio é instituição de governo, é órgão público como escola e hospital. Por que a imprensa não tem acesso a presídio? Por que se cala passivamente diante da arbitrariedade do Estado?
A imprensa também é responsável. A sociedade precisa ter acesso. Nós somos contra o discurso do endurecimento da pena. O Brasil prende mal, dizem. Convido os deputados e senadores a colocar os pés no cárcere para conhecer a realidade. O mundo acadêmico também está longe dessa realidade. Principalmente as faculdades de Direito, Serviço Social, Psicologia. Deveriam ter no currículo um programa no sistema prisional. Porque você passa a conhecer as populações mais vulneráveis da sociedade. Como formar um intelectual se ele não conhece como o Estado trata seus vulneráveis?
A Lei de Execução Penal (LEP) prevê a existência dos Conselhos da Comunidade como controle externo, inclusive da atuação dos agentes de Estado, e também o ingresso das pastorais. A própria Lei prevê que a sociedade ingresse no cárcere. Como você vê a importância do controle externo?
O Conselho da Comunidade foi criado pela LEP (1984). A Pastoral Carcerária abraça a discussão na década de 1990. A primeira reunião da Pastoral foi no Rio de Janeiro. Mas ainda temos poucas pessoas e poucos Conselhos da Comunidade. Tem comarcas com milhares de presos e apenas um Conselho da Comunidade. E tem os Conselhos que se colocam apenas do lado da administração, não dos presos. Ao invés de ajudar, piora. Só servem para remendar o presídio. Se calam pelos direitos das pessoas presas. Tem alguns que não se ajudam, foram cooptados, politizados. É preciso olhar crítico para cobrar mudanças. São poucos no Brasil.
Quando foi criada a comissão de fomento aos Conselhos da Comunidades em nível federal, na década de 2000, acertamos que não precisaríamos de nenhuma vaga a mais nos presídios. Deveríamos olhar para as pessoas sem direito, o índice de presos provisórios era de 60% na época. Uma sociedade alienada torna-se inútil. Mas falta também controle externo pelas ouvidorias externas. Não das secretarias, das polícias, das Defensorias Públicas.
Quem mais reluta é o Poder Judiciário. Os juízes não aceitam porque já tem Corregedoria. Mas o corporativismo é muito forte. Um ouvidor externo serve para fiscalizar e propor o que a sociedade espera desse ou daquele órgão. As decisões só saem dos gabinetes. Eles têm que aceitar ser democráticos.
Quais as principais denúncias que a Pastoral Carcerária recebe?
A prisão já é um lugar de tortura, seja psicológica, na convivência, seja na questão da saúde, na humilhação da família, na revista vexatória. Revista vexatória é crime. O Estado comete estupro todo final de semana em milhares de pessoas. E como o Judiciário combate esse crime? Ninguém fiscaliza. A Pastoral ainda recebe muitas denúncias físicas: pessoas espancadas e torturadas. Cresceram as torturas na abordagem policial. Da abordagem policial até o presídio é onde mais há tortura hoje.
Para tentar extrair algum tipo de “confissão”?
Não só isso. Punição também. A pessoa suspeita é torturada. É um sistema punitivo. A violência física reduziu nos presídios, mas o índice de mortes por falta de assistência de saúde ainda é muito grande. Você pega os relatórios de óbitos por unidade federativa e lá tem as causas. A maioria é natural. Mas tinha médico? Não. Tinha enfermeiro? Não. Tinha remédio? Não. Então a pessoa gritou até morrer. Isso não é tortura? Essa negação, que é tortura, tem aumentado: o índice de pessoas com sarna aumentou, com tuberculose aumentou.
Também há restrições ao trabalho da Pastoral Carcerária.
E como há restrição no cárcere. Em São Paulo todas as igrejas estão proibidas de entrar nos presídios depois da rebelião de Lucélia [no final de abril]. O estado suspendeu as visitas religiosas. Quer dizer: é uma sanção em cima das igrejas. Existem três direitos assistenciais garantidos por lei: jurídico, de saúde e religioso. O Brasil é um dos poucos países do mundo com assistência religiosa gratuita. Na maioria dos países da Europa, das Américas, ele é financiado. É o chamado capelão, pago pelo governo. Porque é um direito previsto nas Regras de Mandela [Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de. Presos]. O governo é obrigado a cumprir.
E aqui a gente tem dificuldade de fazer um trabalho gratuito. A Pastoral lançou um relatório para mostrar como o acesso é dificultado. As vezes tem que esperar muito tempo, dizem que os agentes não podem entrar naquele dia. Criam-se barreiras para desestimular a presença das pastorais. Por que as igrejas evangélicas são bem acolhidas e a Pastoral Carcerária não? Justamente pelo olhar crítico e a defesa da vida. Não é só a defesa da alma. Nós vamos e rezamos, também, mas olhamos o todo.
Como posso anunciar a boa nova para quem está com fome. Evangelho significa boa nova. Boa nova para quem está preso é a liberdade. Somos todos filhos de Deus e voltaremos para Deus. Mas devemos transformar a realidade, principalmente em relação às injustiças.
Qual é a pior penitenciária do país. E por que? E existe uma melhor?
Quando pergunto aos presos que rodaram várias unidades eles falam que a pior é onde está naquele momento. Quem está enjaulado não quer ficar enjaulado. Temos configurações diferenciadas nos estados. Há grandes e pequenas. Mas quem está preso não acha que essa ou aquela é boa. Pode ter esse discurso perante a direção e juízes, de demonstrar boa vontade para sair mais rápido. Você precisa aprender duas coisas num presídio: nunca avalie um preso por religião e sexo. São duas formas de ganhar a liberdade.
Sexo para segurança. Sou ameaçado e tenho alguém comigo. Religião para demonstrar que foi convertido e pode sair. Mas o equilíbrio deve ser demonstrado aqui fora, não debaixo de repressão o tempo todo. Não aponto melhor ou pior porque não quero viver em nenhum presídio que conheço do Brasil. E conheço presídios em todos os estados. Outro drama é adolescente em presídio. É muito comum no Brasil. Tem presídio com homens, mulheres e menores, e o banho de sol é junto. Tem banho de sol misto até com menores grávidas.
O que a Pastoral Carcerária pensa sobre a privatização?
O único relatório que existe no Brasil sobre os presídios privatizados é da Pastoral Carcerária [AQUI]. Passamos dois anos estudando e comparando com os estatais. Pedimos pela Lei de Acesso à Informação o contrato das privatizadas para avaliar as cláusulas, mas vários negaram. É preciso prestar atenção nas rebeliões das privatizadas. As maiores rebeliões ocorreram nas co-gestões e nas privatizadas. O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, ficou famoso mundialmente pela violência. É presídio de co-gestão. Nenhuma notícia falava sobre isso. Somos contra as privatizações. Têm sido lugares que produzem mais violência.
E sobre o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)?
O RDD foi criado em 2001 em São Paulo, em Presidente Bernardes, depois foram criados cinco presídios federais. Começou a partir da megarrebelião de 2001. E em 2006 o RDD comandou a maior rebelião do país, que paralisou São Paulo. O metrô parou porque não tinha passageiro. A Av. Paulista ficou totalmente vazia. O PCC parou São Paulo por uma rebelião administrada a partir do RDD mais famosos da época. O governo teve que ceder mediação para o comando mandar parar. Isso é oficial.
A melhor analise é de Harvard: São Paulo Sob Achaque [AQUI]. Mas eu viajo por Amazonas, Rondônia, Pará, Amapá. Tem RDD por tudo. Ou cela-tapume, cela-tampão. São hermeticamente fechadas. A pessoa fica nua por 30 ou 60 dias ali dentro. Só tem o sanitário, que é um buraco no chão. Estão funcionando abertamente por todo o país. Como a pessoa sai dali? Para nossa indignação alguns diretores de penitenciárias com RDD dizem assim: ‘recebemos visitas do Conselho da Comunidade, juiz corregedor, Ministério Público, Conselho Nacional de Justiça e vocês reclamam disso?’ Ninguém reclama.
No Paraná estão criando uma coisa muito pesada: contêiner. Tem dois modelos pelo país: aqueles que ficam alojados juntos e você faz a visita por cima, a grade é na parte superior, então a conversa acontece como se fosse num buraco; e o contêiner fechado que tem no Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No Paraná chegou a ter para menores de idade. Uma sociedade com o mínimo de consciência que aceita isso aceita a completa barbárie do Estado.
O Papa Francisco conhece essa realidade?
A Pastoral Carcerária já enviou relatórios para o Papa Francisco. A Agenda Nacional Pelo Desencarceramento entregamos em mãos. E ele tem dado algumas respostas em nível geral. Ele já falou sobre os presos provisórios em discurso público. Denunciamos também na Rádio Vaticano. Eles publicam o que acontece no Brasil e isso é traduzido para mais de 60 línguas.
Repercute no exterior, na Europa, na Ásia. Sobre os massacres de 2017 [120 mortos em Roraima, Amazonas e Rio Grande do Norte]: recebemos 120 cartas de órgãos internacionais. Eles mandam as cartas para o presidente da República, a chefe do Judiciário e a Pastoral Carcerária. Temos parceria com Anistia Internacional, Justiça Global e ONU. Ano passado fomos para Genebra e Washington com representantes do Vaticano para apoiar nosso trabalho. Para falar exclusivamente sobre o Brasil. A ONU está acompanhando tudo.
Ressocialização é mito?
Tem como tornar o indivíduo mais criminoso, e é o que o presídio faz. A pessoa só vive em paz depois da morte. O presídio destrói a pessoa. Tem um livro com uma análise de ressocialização que eu levo muito a sério, escrito por estudantes de jornalismo do Sergipe. Eles avaliaram casos depois de 10 ou 15 anos, somente aqueles que tinham sido encaminhados para emprego e escola. Eles foram encaixados, mas onde estavam? Depois de 10 ou 15 anos eles tinham sido mortos ou presos de volta. Em quanto tempo você pode avaliar o sucesso do egresso? Quantos anos? Ele volta para onde? Como você prende uma mulher, mãe de família? O preso da Lava Jato precisa ser ressocializado? Ele não era ainda? Ele não sabia viver em sociedade?
E a prisão das crianças correlata à prisão das mães?
Me perguntaram sobre o que a Pastoral Carcerária fez para mudar a realidade nesses anos. A lei determina que a pena não pode se prolongar da pessoa do condenado. Mas aí tem a revista íntima nas unidades. A família condenada. Nesse quadro de mães com os filhos há outras alternativas. Não tem como ressocializar uma mãe que não viu os filhos crescerem.
Alguns passos estão sendo dados de levar a mulher para casa, mas isso ainda traz o sistema de punição para dentro de casa. A tornozeleira é a ação do Judiciário no controle das pessoas. Coloca o egresso em constrangimento em várias situações. O egresso consegue emprego com tornozeleira? Ele tem um filho doente em casa e precisa ir ao hospital. E para se deslocar para o emprego? Só se o juiz autorizar. Precisa passar por uma análise.
Quais os principais pontos da luta pelo desencarceramento?
As que mais encontram dificuldades são a descriminalização do usuário de droga e a desmilitarização das polícias. A Polícia Militar foi criada aos moldes da ditadura, com o cidadão como inimigo. O nosso Estado ainda é militar, da gestão administrativa ao Judiciário. Quando se pensa em Estado Democrático é preciso encontrar outras formas de lidar com a Justiça. Descriminalizar o usuário, por exemplo. O dependente tem que ser tratado pela saúde, não pelo Código Penal. Punição não cura ninguém, só agrava a doença.
Quais drogas mais prejudicam as pessoas? Um levantamento do Ipea [AQUI] diz que 7,3% do PIB é gasto com a violência do álcool (trânsito, briga familiar, hospital). É droga lícita. O cigarro é a droga que mais mata do mundo. A campanha diminui o consumo. Tem que fazer com as ilícitas a mesma coisa. Toda droga é droga. Nós usamos o tempo todo: café, remédios. O mundo sempre teve droga. Qual é a população primitiva que não usa? As sociedades convivem com drogas. Mas uma condena, outra não.
E segrega o pobre. Nas Américas a punição está ligada às minorias. Sem condenação a violência cairia, como no Uruguai, em Portugal. Qual juiz não sabe que presídio tem droga? Mas prende o usuário e manda para um presídio. Vai garantir o consumo do usuário, mas a droga é mais cara. Aí precisa da família para sustentar o crime.
O que fazer para mudar esse panorama?
Tem políticas de médio e longo prazo. Uma coisa é a sociedade saber o que acontece. É preciso abrir o cárcere. A outra á buscar formas de trabalhar a Justiça. A Justiça Penal falhou. Porque é só prisão. O que responde é a restaurativa, mas não a que vem do próprio Judiciário, a que vem das comunidades primitivas. Essas comunidades nunca tiveram cadeia ou pessoas abandonadas, sabem lidar com conflito sem chamar o Judiciário. É preciso devolver à comunidade a decisão dos conflitos.
Hoje em dia ninguém quer morar ao lado de alguém que passou pelo presídio. Porque sabe que vai voltar pior. Mas ao condenar alguém você deve olhar para o futuro e pensar: ‘queremos essa Justiça’. Eu quero que essa realidade mude. Tem medidas alternativas. Alguns países investem muito nisso. O Canadá faz congressos sobre alternativas à prisão. Países da África também, principalmente com as experiências das aldeias. Os conflitos não precisam passar pelo Judiciário.