A população preta, jovem, vulnerabilizada pela economia de mercado e de baixa escolaridade é comumente referida pela crítica do direito como “clientela do sistema penal”. Essa denominação parte de uma leitura que critica um controle social legitimado pelo discurso jurídico que, no limite, aprisiona e mata a população marginalizada. No Brasil, os corpos negros são aqueles que, historicamente, foram atravessados pelo controle e pela punição. A herança de um passado escravocrata não pode nem deve ser desconsiderada ao abordar o Sistema de Justiça, afinal, ele já operou exclusivamente pela lógica da escravidão e, hoje, perpetua-se pela identificação do negro como o “outro” – um inimigo facilmente identificável que deve ser neutralizado.
Dados do Anuário de Segurança Pública de 2024¹ apontam que o Brasil tem um total de 852.010 pessoas privadas de liberdade, dentre as quais 94,5% são homens. A taxa de encarceramento de pessoas negras no Brasil apenas cresceu nas últimas décadas: se em 2005 o sistema prisional era 58,4% ocupado por pessoas negras (pretas e pardas), hoje essa proporção alcança 69,01% do total de pessoas presas. No mais, quando se considera que 55,5% da população brasileira se autodeclara afrodescendente², tem-se uma clara sobrerrepresentação desses corpos dentre as pessoas privadas de liberdade no Brasil.
Esses números expressam a chancela que o judiciário concede à retração e aniquilamento de corpos negros, todavia, eles ainda não dão conta da totalidade do problema. De acordo com o próprio Anuário, 22,2% das pessoas presas não possuem informações acerca de sua cor/raça, déficit este que se demonstra ainda mais gravoso nas hipóteses de aprisionamento de indivíduos em grande vulnerabilidade.
A diminuta inclusão de dados étnico-raciais pelo Poder Judiciário foi apontada pelo Conselho Nacional de Justiça no relatório “Mutirão Processual Penal”³, divulgado em 2023. Dentre o universo de casos de prisão provisória analisados (pessoas presas cautelarmente há mais de um ano e mulheres mães, gestantes e/ou responsáveis por crianças e pessoas com deficiência presas cautelarmente), somente 12% tiveram dados étnico-raciais inseridos. Já nas hipóteses de apenados em cumprimento de execução penal (pessoas em cumprimento de pena em regime prisional mais gravoso que o fixado e cumprindo pena em regime diverso do aberto quando condenadas pela prática de tráfico privilegiado), a situação é ainda pior, visto que esses dados estão presentes em apenas 5% dos casos.
O próprio CNJ aponta que a inserção em menor escala desses dados nos processos de execução penal, para além de dificultar o aperfeiçoamento de bancos de dados e, consequentemente, da implementação aperfeiçoamento de políticas públicas judiciais voltadas a pessoas racializadas, também demonstra uma carência na articulação com os órgãos da administração penitenciária.
Ocorreu há algum tempo a adesão de todos os tribunais pátrios ao Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, que inclui nos eixos de atuação a “Sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário”³ e, consequentemente, a inserção deste marcador nos cadastros de jurisdicionados. No entanto, a ausência de preocupação com um levantamento do perfil racial de todas as pessoas privadas de liberdade, apesar de todas as iniciativas para tal, é um claro demonstrativo do esforço pela manutenção do controle social hoje posto.
O sistema punitivo cumpre a função determinada de mediar políticas de repressão de raça, classe e gênero. Há, nesse ínterim, uma relação funcional entre os mecanismos seletivos do processo de criminalização e do sistema econômico em voga, que, no âmbito político, demonstra que a manutenção e a garantia das desigualdades raciais é a função real do direito penal. O sistema de justiça criminal permanece inalterado pois, no limite, a manutenção de desigualdades, a disciplina e docilização dos corpos, a exploração de uma mão de obra vulnerabilizada, o apagamento e assimilação da memória afrodescendente e, quando necessário, o extermínio de sua “clientela” é indicativo de que sua função está sendo cumprida.
Não é possível falar de encarceramento em massa se não partirmos do pressuposto de que, no Brasil, o cárcere opera como instrumento de extermínio de pessoas negras. Assim , neste 20 de novembro, relembramos a necessidade de reconhecer o racismo enquanto elemento estrutural e estruturante do sistema de justiça criminal – apenas assim conseguiremos caminhar em prol de um mundo sem cárceres.
¹ https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf
² Dados do censo do IBGE de 2022.
³ https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/relatorio-mutirao-processual-penal-1.pdf
³ https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/direitos-humanos/pacto-nacional-do-judiciario-pela-equidade-racial/adesao-dos-tribunais/