Paredes: diário de um ex-detento

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Por Carlos Antonio dos Reis
Interna_cartasSexta-feira, 10 de julho, Franca, São Paulo. Era só mais um dia como outro qualquer. Acordei já atrasado para ir ao dentista. Andando apressado pelo centro da cidade, me deparei com uma cena inusitada e que muito me chamou a atenção. Um senhor aparentando uns 50 anos, barba branca, todo sujo, descalço, colando folhas xerocadas de um caderno na fachada de uma bela casa da região central. Interessei-me, mas pelo andar do relógio contra mim, olhei rapidamente e segui meu caminho.
Aquela cena ficou na minha cabeça. Fiquei na cadeira do dentista pensando no que aquele senhor estaria fazendo e o que pretendia com aquilo. Cheguei a pensar que se tratava de alguém postando poesias ou algo do tipo. Ao sair do dentista, tinha outro compromisso, mas ainda sobrava um tempinho. Voltei lá para ver do que se tratava.
Aquele cidadão continuava lá, colando suas folhas na parede. As pessoas simplesmente passavam e desviavam, ou olhavam ressabiadas ou com certa indiferença, quando olhavam. Do outro lado da rua, comerciantes olhando apreensivos. Parei para ler, ainda sem entender muito bem do que se tratava. De cara, duas fotos e uma certidão de nascimento fixadas na parede. Pela ordem, foram as primeiras a serem coladas. O cara me olhou e disse: “Pode ler, fique à vontade. É pra isso mesmo que eu to colando”.
A certidão pertencia a Antonio Leite, natural de Marília (SP). Perguntei se era dele. Respondeu-me positivamente e começou a explicar o que estava fazendo ali e a contar um pouco da sua história. Nas fotos, estavam ele e outro cara, pensei terem sido tiradas em uma clínica de recuperação, mas ele me disse que eram de quando esteve em uma colônia penal. Não sei precisar a data, mas pelo estado das fotos e pelo tipo de roupa, devia ser meados da década de 1990.
Ele tinha uma fala estranha, como se fosse um sotaque forte. Não sei explicar ao certo com o que se parecia ou se era efeito de um remédio que ele disse que havia acabado de tomar na Santa Casa ali ao lado. Então, parou de falar e disse que era melhor eu mesmo ler para entender a história. Comecei a ler, enquanto ele continuava colando as folhas todas numeradas e, educadamente, pedia licença ao passar na minha frente. O senhor Antonio me falou que é andarilho e viaja de cidade em cidade a pé ou de carona, às vezes, quando consegue, também de ônibus. Segundo seu relato, já percorreu o Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e está a caminho de Goiás.
Então, lendo as cartas, como ele mesmo chama, comecei a entender sua história. Ele tem por volta de 50 anos, é ex-presidiário e esteve preso por duas vezes – 15 e depois 14 anos. Esteve no Carandiru no final da década de 1970 e depois foi transferido para Araraquara (SP). Relata sua trajetória de vida em cadernos, xeroca as folhas e as cola nas paredes de casas abandonadas ou desocupadas pelas cidades por onde passa para que as pessoas possam conhecê-la.
Fiquei lendo as cartas e conversando com ele por aproximadamente 20 minutos. Não consegui entender algumas partes, apesar da boa caligrafia. Muitas informações eram desencontradas, repetidas ou borradas por uma mancha de água. Também não sei se tudo que está escrito ali ou o que ele me falou é verdade. Isso também não me interessa e não me cabe julgamento algum. Uma pessoa que faz o que ele estava fazendo, só buscava uma forma de se expressar e, pela originalidade com que fazia, já merecia, no mínimo, um pouco atenção.
A certa altura, revela que foi preso por homicídio – da própria esposa, Maria. Confesso que ao ler isso, tomei um susto; não tinha me passado algo tão pesado pela cabeça. Essa parte das cartas estava um tanto confusa, não entendi direito como foi. Então, perguntei diretamente para ele. Também meio confuso, ele explicou, não se eximiu de culpa, mas ficou muito nebulosa essa passagem para mim. Ele mesmo se atrapalha ao narrar. Ainda assim, tentou detalhar a história, demonstrando muita consciência de seus erros. Em outro trecho, que eu também não entendi muito bem, menciona a existência de uma filha – não me recordo o nome e também não ficou claro o seu paradeiro.
Conversando mais um pouco com ele e com outro senhor que também parou para entender aquela cena, pude perceber que Antonio apresenta também um ponto de vista muito interessante sobre a sociedade, o Estado e a PM. Ele falava e eu só pensava: isso é praticamente um “Vigiar e punir”/“Microfísica do poder” a partir de quem sentiu tudo na pele. Seu objetivo é tentar se aposentar e, por isso, acha que se chegar até Brasília, poderá conseguir isso – não ficou muito clara essa parte para mim, acho que nem pra ele está…
Mas o que mais me chocou, foi o relato das torturas que sofreu na carceragem. Ele fala disso o tempo todo. Seu grande desejo era que a pasta de dente e a parede fossem suficientes para chegar até essa parte do seu diário – algo lá pela página 70 em diante, e ainda estava na página 50 e alguma coisa. A todo o momento, ele afirmava detalhadamente ter sofrido violência policial, tendo sido estuprado e surrado na cadeia por “fardas marrons, cinzas e mesmo bombeiros”. Tem apenas um dente e diz que os outros foram quebrados com marretadas dentro do sistema penitenciário.
Havia chegado à cidade no dia anterior, vindo de Batatais (SP) onde não havia sido bem recebido. Eu e o outro senhor que também parou ali, tentamos indicar algum lugar que ele pudesse conseguir ajuda, mas ele se mostrou muito ressabiado. Ao chegar aqui, procurou ajuda na igreja matriz, mas, segundo ele, lhe foi negada porque estava sujo. Mandaram-no para a OAB que funciona ali nas imediações, mas, chegando lá, se assustou com o tanto de grades e com o símbolo da polícia: “A OAB deveria ser um lugar de liberdade, como que tem tanta grade assim?”. Dizia se sentir dupla e constantemente vigiado. Pela polícia, que acha que o espreita a todo momento para prendê-lo, e também pela população que sempre desconfia de que ele vai roubar ou fazer algo pior, já que quase sempre está “sujo e fedendo”: “As pessoas acham que eu tenho uma faca e que posso atacá-las, mas não, senhor, eu sou homem; homem que é homem não faz essas coisas. Só quero ajuda, poder trabalhar e que as pessoas leiam minhas cartas.”
A essa altura, o horário do meu outro compromisso se aproximava. O outro senhor que parou já tinha desejado boa sorte e partido. Eu tinha que seguir meu dia. Perguntei para o senhor Antonio se precisava de algo, de comida, e me respondeu que se eu pudesse arrumar um serviço para ele seria ótimo. Infelizmente não tenho como fazê-lo. Então, ele me disse que uma pasta de dentes já seria de muita ajuda para continuar colando as folhas na parede – nem sabia que se pode colar coisas com pasta de dente. Ao menos pasta eu comprei e acho que foi suficiente para ele chegar até a denúncia da violência policial, a “surra” que ele tanto queria extravasar.
Antes de me despedir, ele me pediu para eu contar sua situação para que esta pudesse chegar a algum advogado ou assistente social para ajudá-lo. Como tenho muitos conhecidos dessas duas áreas em meu Facebook, resolvi fazê-lo. Ele me autorizou a tirar as fotos da parede-diário e mesmo dele; por isso, contei sua história e postei suas fotos em meu perfil. Achei que não custaria nada tentar. Muitas pessoas curtiram e compartilharam a história ou deram sugestões de como ajudar, gente que eu nem conheço me escreveu nesse sentido. Outras, bem poucas, acharam que eu dei moral para um louco. E daí? E se ele o for? O que realmente isso importa? Se tudo o que tiver escrito naquelas cartas, se tudo que ele me contou for “mentira” ou alucinação de um louco, isso minimiza o fato de ele necessitar de ajuda? É melhor deixar que ele permaneça em sua invisibilidade vagando por aí? Acredito que não.
Felizmente, muitos pensam como eu e a história chegou até à Pastoral de São Paulo. Mas, como se trata de uma pessoa em constante movimento, não deu tempo de encontrá-lo e encaminhá-lo aos auxílios oferecidos pela Pastoral e seus contatos aqui em Franca. Ele tem uma agendinha na contracapa do caderno e hoje (14/07) estava marcado para retirar seus documentos. Fazendo isso, ele seguiria rumo a Goiás. Nesses desencontros, não pude confirmar seu paradeiro, espero que, mais uma vez, a ajuda venha das redes sociais e que possamos reencontrá-lo e encaminhá-lo para um destino seguro e em paz.

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