Em artigo, Dom Moacyr Grechi crítica política prisional no Brasil

 Em Igreja em Saída

 
O arcebispo emérito de Porto Velho (RO), Dom Moacyr Grechi escreveu no início de janeiro o artigo “Jornada abençoada”, que entre outros aspectos critica a política prisional no Brasil e convoca os cristãos a um olhar misericordioso com as pessoas presas. “O encarceramento em massa não pode ser a solução contra a violência de nossa sociedade!”. A íntegra do artigo pode ser lida abaixo.
Jornada abençoada!
Iniciamos nossa caminhada de 2017 sob a bênção de Deus, sempre presente em nossa história.
Uma jornada que vai exigir muito esforço, organização e mobilização dos marginalizados e oprimidos de nossa história, pois a bênção de Deus é eficaz quando as pessoas lutam para construir um mundo novo.
A Epifania marca a fase final do ciclo natalino; significa “a vocação dos povos de todas as nações” (Paulo VI); a manifestação de Deus ao mundo, na figura dos reis magos, representantes de todos os povos, que prestam homenagem e adoração ao Cristo que se revela a todas as nações que serão iluminadas pela luz da Fé (Mt 2,1-12).
Na certeza de que a salvação não vem dos poderosos, mas do menino-pastor, refletimos hoje a lógica do Deus que nasce na periferia do mundo, capaz de ações que desestabilizam os Herodes de hoje.
O caminho dos detentos massacrados e mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) de Manaus, certamente, passou por esses Herodes, que se guiam somente por sinais de destruição e eliminação.
Hoje somos chamados “a seguir os sinais da história que nos encaminham para reconhecer Cristo Salvador e aceitar o seu destino: rejeitado e morto pelas autoridades do seu próprio povo e aceito pelos pagãos” (BP).
Não em Roma, nem na Jerusalém de Herodes, mas na Belém do presépio é que a estrela parou. Para mostrar que não depende do poder humano, Deus se manifesta no meio dos pobres, no Jesus pobre (Konings).
Uma estrela parou nos presídios do Brasil para que tomássemos conhecimento da situação em que vivem 622.202 detentos que lotam os presídios brasileiros. Mais de 60% são negros, a maioria, jovens, 75% deles têm até o ensino fundamental completo, segundo dados do Ministério da Justiça.
O pequenino de Belém é venerado como rei, e no fim do evangelho, esse “rei” (25,34) julgará o universo, identificando-o com os mais pequeninos: “O que fizestes a um desses pequenos, que são meus irmãos, a mim o fizestes” (25,40). Quanta lógica em tudo isso!
Deus não precisa de nos esmagar com seu poder para se manifestar. Nem precisa do palco de uma TV mundial para se dar a conhecer. Para ser universal, prefere o pequeno, pois só quem vai até os pequenos e os últimos é realmente universal. Falta-nos a capacidade de reconhecer no frágil, naquele que o mundo procura excluir, o absoluto de nossa vida – Deus.
A liturgia expressa a vocação das nações à fé no Deus vivo e verdadeiro (Is 60, 1-6). É um convite à comunidade, para que saia da prostração e cegueira em que jaz, para que perceba e sinta a presença do Deus que a transforma a partir de dentro.
O apóstolo Paulo reforça a missão de anunciar esse grandioso mistério (Ef 3,2-3.5- 6). A comunidade que vive a mensagem de Jesus, como Paulo a viveu, torna-se missionária pelo fato de não excluir ninguém, principalmente os que já foram excluídos pela sociedade, como no caso dos pagãos, aos quais o Apóstolo dedica seu tempo e sua vida.
Qual é a luz que orienta a nossa existência? Há uma resposta aos nossos anseios e aspirações mais profundas? Quais os “sonhos” para mudar a sociedade?
O importante é não perder a capacidade de permanecer aberto à luz que ilumina a nossa existência, à chamada que possa dar profundidade à nossa vida.
Com os magos do oriente, guiados pela estrela de Belém, redescobrimos a nossa missão, pois “a vinda de Deus no mundo é destinada a cada um de nós”. Somos chamados a ser “mensageiros do Evangelho em todo o mundo”. Através dos Reis Magos, Cristo se revela a todas as nações que, no futuro, serão iluminadas pela luz da Fé.
Para os missionários combonianos, os acontecimentos no Complexo Penitenciário de Manaus foram mais uma bomba que estourou por acumulo de desumanidade. Estamos cultivando sementes envenenadas de violência.
Quando a sociedade local, nacional ou mundial abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reação violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e econômico é injusto na sua raiz.
Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça. Se cada ação tem consequências, um mal embrenhado nas estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte (EG 59).
Os missionários combonianos trabalham ao lado dos encarcerados, de suas famílias e das famílias das suas vítimas. Outros nos bairros à margem das grandes cidades, também em Manaus, tentam conjugar o Evangelho com a defesa dos direitos humanos e propostas de esperança para pessoas que a sociedade já está encaminhando para o descarte. Promover a justiça, socorrer a vítima, recuperar o preso é proteger a sociedade. Defender privilégios, alimentar a sede de vingança e segregar os condenados em contextos alienantes e desumanos é envenenar nosso próprio futuro.
Em comunhão com a CNBB e a Arquidiocese de Manaus, condenamos a barbárie das facções que encomendaram mais essa chacina. O primeiro apelo à não violência é para cada pessoa sem liberdade: mesmo se amontoada nessas “fábricas de tortura que criam monstros” (Padre Valdir Silveira) cada pessoa tem ainda o dever de optar pela vida, gritar com dignidade e sem violência por justiça e respeito, preparar na conversão seu futuro.
O Brasil tem a 4ª população carcerária do mundo. O encarceramento em massa não pode ser a solução contra a violência de nossa sociedade!
Apoiamos a Pastoral Carcerária e a Agenda Nacional pelo Desencarceramento com metas claras para a redução da população prisional e para fortalecer as práticas comunitárias de resolução pacífica de conflitos.
Apelamos à sociedade inteira, e aos cristãos em particular por sua missão de testemunhas da misericórdia: não vamos cair nós também na banalidade da violência, na espiral da vingança injetada pelo medo. Não sejamos cúmplices de soluções fáceis, que continuarão replicando essas cenas de morte.
Hoje, ser verdadeiro discípulo de Jesus significa também aderir à sua proposta de não violência. Esta, como afirmou Bento XVI, é realista pois considera que no mundo existe demasiada violência, demasiada injustiça e, portanto, não se pode superar esta situação, exceto se lhe contrapuser algo mais de amor, algo mais de bondade. Este “algo mais” vem de Deus.
A não violência para os cristãos não é um mero comportamento tático, mas um modo de ser da pessoa, uma atitude de quem está tão convicto do amor de Deus e do seu poder que não tem medo de enfrentar o mal somente com as armas do amor e da verdade. O amor ao inimigo constitui o núcleo da “revolução cristã” (Papa Francisco).
Possa nossa Jornada ser como a “travessia” vivida pelos Magos. Ao descobrir algo surpreendente, puseram-se a caminho. Não sabiam para onde iam, mas arriscaram. Não conheciam o itinerário que deveriam seguir, não sabiam para onde a estrela os conduziria e o caminho implicava riscos. Mas em seu interior ardia a esperança de encontrar uma Luz para o mundo.
Foi assim que a longa jornada dos Magos começou, seguindo o caminho que a luz da estrela indicava. E ao final de longa peregrinação chegaram ao lugar procurado.
Possa a estrela que seguimos nos mobilizar a ter acesso ao nosso interior, onde nova vida pulsa por nascer, e desperte em nós o espírito solidário ajudando-nos a responder às necessidades dos mais frágeis ao invés de permanecermos confinados em nós mesmos.

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