Após 17 anos de vida no Brasil, atuando nas periferias existenciais – nos cárceres e na atenção a outras pessoas esquecidas pela sociedade – Heidi Ann Cerneka, integrante da Pastoral Carcerária desde 1997, voltará aos Estados Unidos, seu país de origem, para estudar Direito.
Na noite de 26 de junho, seus colegas de Pastoral Carcerária e da Congregação de Maryknoll organizaram uma missa de despedida para Heidi, realizada na Igreja da Boa Morte, no centro de São Paulo.
Ao fim da celebração, presidida pelo padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, Heidi comentou que a vivência no Brasil a fez crescer enquanto pessoa e que agora “meu coração é do tamanho das 35 mil mulheres presas”, destacando que ter esperança foi um dos principais aprendizados com os trabalhos na PCr.
Heidi agradeceu a todo o apoio que teve da Pastoral Carcerária para implantar projetos e estimulou que os agentes jamais parem de agir diante dos desafios da missão.
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Nesta semana, o jornal O São Paulo, Semanário da Arquidiocese de São Paulo, publicou uma entrevista com Heidi, na qual ela destaca momentos dos 17 anos de trabalho, faz uma avaliação sobre o sistema penitenciário brasileiro, o aumento no número de encarceramentos no País e a situação das mulheres. Segue a íntegra da entrevista concedida ao jornalista Edcarlos Bispo de Santana.
Lutar sem perder a ‘esperança e a persistência’
O SÃO PAULO – Quais foram, em sua opinião, os momentos mais difíceis desse trabalho?
Heidi Ann Cerneka – O mais difícil não é o trabalho com os presos e as presas. O mais difícil é trabalhar com funcionários e um sistema que invalida pessoas como seres humanos e cidadãos, nãomerecedores de direitos e dignidade, e um Estado que incentiva isso. O mais difícil é trabalhar com uma Igreja que prega justiça, amor e serviço e ver os líderes que não acham que essa justiça e amor se estendem à população mais excluída. É um grande sinal de esperança que temos agora um Papa que olha para os presos e as presas, que chama a gente para ser parceiros e parceiras na construção deste mundo novo, aqui, agora, nesta terra!
O SÃO PAULO – Que avaliação faz do sistema prisional brasileiro?
Heidi – O sistema prisional brasileiro está construído em cima de alguns mitos. Primeiro, que punição e retribuição vão mudar pessoas para melhor e acabar com violência e que o medo de punição (o resto de nós com medo de ser preso) vai ajudar o resto da população a não praticar crimes. Um segundo mito é que existem cidadãos e subcidadãos. Nessa segunda categoria, entram não somente as pessoas presas, mas também suas famílias, e que o Estado não tem obrigação de garantir os direitos dessa população. Esse sistema nunca vai resolver a questão de desigualdade e injustiça no País. Esse sistema trata indivíduos como o problema em vez de reconhecer que o problema que causa crime, violência e pobreza é coletivo. É econômico e sociopolítico. É muito mais fácil eu apontar uma pessoa ou umas pessoas e dizer “ele é o problema e a causa da violência aqui na cidade” do que reconhecer a responsabilidade social de todos nós, dizer “ele é o produto de tudo isso”, e ter de mudar meu comportamento e meu estilo de vida.
O SÃO PAULO – Houve um primeiro passo para o fim da revista vexatória. A Pastoral Carcerária é uma das grandes batalhadoras nessa frente?
Heidi – A Pastoral Carcerária, eu diria, há décadas, denuncia essa ilegalidade com os familiares e queridos da população presa. Por quê? Porque a Pastoral Carcerária está dentro dos presídios, cotovelo a cotovelo com a população presa e seus familiares, e tem ouvido o clamor destas pessoas há muito tempo. Não temos como ver algo desse nível de injustiça e indignidade. Quem acha certo, por exemplo, obrigar a mãe de um preso a tirar toda sua roupa em frente de estranhos, agachar em cima de um espelho e ser tratada como suspeita só por causa de seu parentesco? Estamos com muita esperança, assim como o movimento para acabar com a revista, que continua crescendo e o projeto de lei anda no congresso. O fim dessa violação e ilegalidade está chegando.
O SÃO PAULO – O aumento do número de encarceramentos no Brasil se deve, em sua opinião, a que fatores?
Heidi – Acho que são muitos fatores, mas elencaria dois: a injustiça e desigualdade que, às vezes, causam revolta e/ou desespero, e o segundo fator é a lei das drogas que criminaliza o usuário, prevê sentenças altas (sempre falamos que a porta de entrada do presídio é grande, mas a porta de saída é muito pequena). Também tenho de dizer que a lentidão do judiciário contribui bastante à superlotação e ao aumento da população prisional.
O SÃO PAULO – A privatização das penitenciárias representa um risco aos direitos humanos, ou à segurança pública?
Heidi – A Pastoral Carcerária está terminando um relatório sobre privatização, mas eu, Heidi, diria que sim, representa um risco aos direitos humanos e democracia. Seguramente, funcionários em presídios privatizados têm menos tempo de treinamento e a rotatividade de funcionários é alta (eles não ficam muito tempo), mas o que mais me preocupa é a questão de transparência. O presídio privatizado vai garantir a entrada de visita familiar? Vai garantir os trabalhos de assistência religiosa e acesso das igrejas aos presos? Vai garantir a entrada de conselhos da comunidade, de conselhos de direitos humanos, de saúde, etc.? É claro que pela lei, são obrigados a deixar entrar todos estes grupos e ver o presídio inteiro, mas acredito que eles vão mais facilmente, dificultar estes trabalhos de controle social e acompanhamento religioso.
O SÃO PAULO – Enquanto mulher, como vê a situação das penitenciárias femininas no País?
Heidi – A situação das penitenciárias femininas é muito assustadora e preocupante. Com certeza, nestes anos, há coisas que melhoraram. Quando comecei este trabalho, nenhuma mãe e nenhum bebê tinham direito de amamentação. Hoje é lei (aliás, era naquela época também, mas ninguém respeitava). O que nos deixa mais tristes é que a grande maioria de mulheres que encontramos nos presídios é de crime não violento, muitas vezes primária, e mais de 80% com filhos. Não há necessidade de deixar presa. Existem alternativas penais que ainda responsabilizam a pessoa pelo qual ela ou ele fez, mas não precisa deixar espremida em celas superlotadas, sem qualquer higiene e saúde. O Estado de São Paulo, por exemplo, apesar de mais de 17 anos de luta, nunca levou a sério a questão de amamentação dos filhos das mães presas. É lei. É obrigação, mas parece que só cidadão comum (e “subcidadão”) tem obrigação de cumprir a lei. O Estado não tem. Isso não é peculiaridade a São Paulo também.
O SÃO PAULO – Mais alguma reflexão em especial?
Heidi – Acho importantíssimo lembrar que este trabalho para um mundo mais justo, para um mundo sem cárceres (e sem violência) e de todos e todas. É muito cômodo achar que “a Pastoral Carcerária cuida disso e posso relaxar em meu cantinho da Igreja”, mas eu acredito que as pastorais existem para chamar todos nós para a militância!