O funcionamento das polícias no Brasil caracteriza-se por um acentuado viés militar, vinculado a um arranjo constitucional esdrúxulo que legaliza a militarização da função civil de segurança pública no país. A própria organização das forças policiais constitui uma espécie de claro-escuro jurídico-institucional, em que se encontram baralhadas as dimensões civil e militar da segurança.
Em outro nível, sabe-se também que a prática policial brasileira tem sido marcada por uma perversa “divisão do tempo de trabalho”, em cujos termos alguns agentes alternam entre o plantão e o bico, as ações judiciais e as extrajudiciais, o serviço público e os serviços privados, mimetizando, em outro plano e a seu modo, a porosidade e o hibridismo do arranjo institucional e reforçando a zona cinzenta do legal e do ilegal em que muitas vezes se movem nossas polícias.
Esse desenho institucional civil-militar e essas práticas policiais legais/ilegais parecem o resultado de um padrão autoritário de gestão de conflitos que historicamente caracteriza o controle social à brasileira. Numa sociedade de enclaves, caracterizada por uma arquitetura urbana de secessão, por um Estado permeável a interesses particularistas e por desigualdades muito expressivas, a gestão política de conflitos entre nós tem privilegiado a militarização da segurança pública, o uso arbitrário da força policial e as operações de guerra interna travadas nas inúmeras zonas de não direito de nossa sociedade.
Em suas incursões contra “territórios inimigos”, as forças policiais gozam de ampla margem de manobra para instituir, desmontar e reconfigurar fronteiras: entre o cidadão e o subcidadão, o crime e o trabalho precário, o público e o privado, especialmente nas zonas urbanas de intersecção entre os enclaves fortificados do andar de cima e os enclaves – também muitas vezes fortificados – do andar de baixo.
No entanto, o que poderia ser visto como mais uma “sobrevivência arcaica” em país de modernização incompleta – algo que deita raízes em nosso passado escravista e no “código do sertão” a ele associado -, apresenta-se hoje como fenômeno mais complexo: ao mesmo tempo o laboratório e a ponta de lança de um novíssimo urbanismo militar, que se alimenta justamente da geografia de enclaves fortificados, da guerra securitária interna e da militarização das funções civis de segurança pública e tende a se disseminar por algumas das principais cidades do capitalismo global.
O urbanismo militar contemporâneo consiste na colonização crescente do espaço urbano e da vida cotidiana nas cidades por uma racionalidade militar, vale dizer, por práticas e discursos que têm no centro a noção de guerra. Dessa forma, questões e eventos da ordem do cotidiano das cidades são convertidos em assuntos de guerra, em questões militares. Uma visão de mundo militarizada vai se espraiando e se combinando de modo particular às racionalidades próprias de outras esferas da vida social, como a econômica, a política, a jurídica e assim por diante.
Nota-se no campo ideológico a ampliação a fórceps das noções de risco, insegurança e guerra (contra as drogas, o crime, o terror, etc.), que, no saco sem fundo da retórica de guerra permanente, legitima a suspensão de direitos e garantias fundamentais, a adoção de leis de emergência e mecanismos jurídicos de exceção, a “gentrificação” do espaço público e a conversão de locais públicos e manifestações populares em praças de guerra.
Dessa perspectiva, pode-se verificar a emergência de novas economias, políticas públicas e formas jurídicas da guerra, que articulam o militar e o urbano de diferentes maneiras. Fenômenos bastante conhecidos, e analisados de modo setorial em suas respectivas áreas de conhecimento, talvez pudessem ser reconsiderados à luz desse processo de militarização. Destacam-se aqui:
O capitalismo de choque, ou de desastre, movido à base de estratégias de acumulação por despossessão em que a incursão militar é decisiva para abertura e consolidação à força de novos mercados.
O planejamento urbano de perfil higienista, que se vale da edificação de cordões sanitários entre classes sociais e encontra no emprego do aparato militar um elemento estratégico ao patrulhamento de fronteiras e à segurança da circulação seletiva de bens, serviços, informações e pessoas.
O direito penal do inimigo e a política de encarceramento em massa, que normalizam procedimentos legais de exceção e buscam legitimação na retórica e nas práticas de defesa militar, convertendo ilícitos penais comuns em atos de guerra.
O emprego cotidiano da racionalidade da guerra e das forças militares na gestão das cidades do capitalismo global passa a ser decisivo, entre outros, para a geração e ampliação dos negócios. E também para: o desenvolvimento de novas tecnologias de controle; a articulação crescente entre indústria da guerra, do automobilismo e do entretenimento (vide fenômenos de venda como os SUV e os jogos bélicos de computador); a gestão do crime; a formulação e a execução do planejamento urbano; a manutenção da disciplina em ambiente escolar; a legitimação política das administrações das cidades (de que constituem capítulo notável as recentes eleições municipais brasileiras) e a organização de eventos esportivos mundiais (como a Copa e a Olimpíada).
Esse parece ser justamente o maior desafio para quem pretende se opor ao urbanismo militar dos dias de hoje: já não se trata apenas, mais uma vez, da importação de modelos dos países centrais; trata-se de um processo histórico que parece se alimentar de uma homologia crescente entre estruturas sociais, arranjos institucionais e formas de consciência que tem em seu centro o amálgama entre guerra, política e negócios e, nessa medida, tende a inscrever a racionalidade militar no cotidiano das nossas cidades para muito além dos limites geográficos dos espaços nacionais.
Por Laurindo Dias Minhoto
Laurindo Dias, é professor do departamento de sociologia da USP