“Existem promotores e promotores. Tudo que dá errado é um caldeirão de variáveis, isso é um fenômeno complexo. Existe um apoio ideológico de alguns ao extermínio de indesejáveis”.
A afirmação é de Daniela Skromov, coordenadora do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, em entrevista ao site El País Brasil, em que denuncia que os autos de resistência, nome dado às mortes provocadas por policias em serviço, tornaram um expediente de aceitação comum no Judiciário paulista.
CLIQUE E LEIA A ENTREVISTA COMPLETA NO EL PAÍS BRASIL
Segundo a defensora pública Daniela Skromov, muitos promotores públicos acabam colaborando para inocentar policiais que matam. “Às vezes, é normal denunciarem policiais para dar uma satisfação social, quando é um caso de muita pressão, e depois pedem a soltura ou fazem uma acusação de baixa qualidade em termos de veemência”.
Daniela enfatiza que há no Ministério Público quem veja os mais pobres como pessoas indesejadas, que podem ser exterminadas pela polícia ou presas. “A cadeia é cheia de gente azarada e fisicamente débil. Porque eu digo isso: todo processo que gera uma cadeia é geralmente uma prisão em flagrante, que ocorre na rua ou no barraco. É um vulnerável que é capturado, seja porque tropeçou, não tem amigos, está fraco fisicamente, ou porque mora em um barraco onde ninguém pede licença para entrar, é passível de invasão. É deste tipo de gente que a cadeia está cheia. Quem coloca elas lá é a policia, e quem as mantêm lá é o MP e o Judiciário. O MP vê nessas pessoas a grande criminalidade, e tem a necessidade de isolá-las do convívio social. Quando na verdade, na maior parte, essas pessoas integram uma criminalidade banal, seja tráfico de pouca quantidade de drogas, sejam crimes sem violência. O MP em São Paulo tem como clientela indesejada – mas que ele detesta e vê como isolável – essa parcela da população, capturada pela polícia e pobre. E no final ele acaba agindo como o braço jurídico da PM. E o público que lota as prisões é em geral esse mesmo público que é morto pela polícia. E aí, me parece que o MP não consegue ter a isenção valorativa necessária para defender essas pessoas contra quem ele próprio estabelece uma cruzada.
Ainda de acordo com a defensora Daniela, há jurados que inocentam policiais que matam mesmo tendo provas contundentes para incriminá-los. “Acho que a resposta transita entre um apoio social, na crença de que essas pessoas [supostos bandidos] devem morrer, porque não valem nada, e o medo. Acho que esses advogados de defesa ganham os casos por instigar algo que é a síntese desses dois discursos. Eles falam para o júri: ‘E depois, quem vai salvar vocês? Quando o bandido chegar vocês vão chamar quem? O Batman?’. É um discurso alterado, inflamado em tom de voz. Os advogados despertam um medo profundo nas pessoas, o que é natural com qualquer um que lida com a polícia quando a polícia está no banco dos réus. Juízes, promotores, defensores… É normal lidar com esse medo, é humano. Você não está falando apenas com uma pessoa armada, mas sim com cem mil pessoas armadas. Existe um espírito de corpo fortíssimo na Polícia”.
Daniela também acredita que as investigações nos casos dos autos de resistência são mal feitas. “Não temos uma polícia investigativa estruturada, e isso não vale só para homicídios cometidos por policiais. Eu garanto que a imensa maioria dos presos é em flagrante, porque não existe investigação. Na maior parte dos casos que temos aqui, não tentaram nem ouvir testemunhas oculares dos crimes. Sabe aquela diligência de ir ao local e ouvir as pessoas? A imensa maioria dos casos é arquivado sem essa diligência. A maior parte é arquivado sem que se puxe a ficha do PM, sem que se veja em quantos casos com mortes ele já se envolveu”.
Também na opinião da defensora pública, a palavra do policial às vezes é a única voz que pesa no processo de investigação dos autos de resistência. “Isso dá um poder de carta branca para os PMs, os juízes talvez não tenham a dimensão disso. Os policiais sabem que chegando lá no processo penal, eles têm o poder acima da lei, porque a palavra deles vale muito mais e vale por si. A maior parte dos autos de resistência é arquivado apenas com a palavra dos policiais como testemunhas, e pasmem, dos policiais envolvidos. Em mais de 90% dos casos isso acontece: o promotor pede arquivamento e o juiz aceita”, lamentou.