Por Elen Carvalho
Do Brasil de Fato
Ela lembra que era perto do Natal quando foi levada junto com marido, filho e nora pelos policiais. Entraram arrobando a porta da pequena casa, localizada na periferia do Recife. Chegaram gritando pelo nome do marido e não quiseram ouvir argumentos de ninguém. A única liberada foi a nora, por não ser maior de idade. Joana começa a me contar sua história com gestos meio desconfiados, voz baixa – para vizinhos e família não ouvirem. O olhar triste durante toda a conversa, por vezes, foi substituído por sorrisos, ao lembrar das ajudas que recebeu no tempo em que passou encarcerada.
Até então, ela trabalhava como babá durante o dia e o marido era vigilante no período da noite. “Meu filho já tinha sido preso três vezes e meu marido uma vez, por causa de drogas. Rastrearam o telefone do meu marido e, numa ligação, ele me pedia para dar R$ 5 pra o menino comprar um cigarro de maconha. Eu pedi pra ele comprar pão, manteiga e queijo para o café da manhã”. Segundo Joana, foi esse o motivo de ter sido levada presa para a Colônia Penal Feminina do Recife, também conhecida como Bom Pastor, localizada no bairro do Engenho do Meio.
“Passei quatro anos. Quase que eu morria ali dentro. Entrei em depressão. Quando cheguei no Bom Pastor, botaram eu na espera, mas tiraram logo.
Me levaram para a cela no pavilhão favela”, rememora. Mas, nas suas lembranças desse período, também aparece o bom acolhimento que recebeu. “Eles sabem quem presta. Arrumaram logo um emprego pra mim e uma vaga na escola”, conta.
O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – IFOPEN Mulheres, de junho de 2014, traz os dados da World Female Imprisonment List, produzido pelo Institue for Criminal Policy Research da Birkbeck, da University of London, que aponta que existem 700 mil mulheres presas em todo o mundo. O Brasil está como o quinto país que mais encarcera mulheres: são 37.380, o que representa 6,4% da população carcerária. Destas, 11.269 estão presas sem condenação. Isso corresponde a 3 em cada 10 mulheres presas no Brasil em junho de 2014.
Joana é negra, mora em periferia, não é alfabetizada, passou quatro anos presa esperando o julgamento. Ela integra as estatísticas atuais do encarceramento feminino no Brasil. Está entre os 68% de mulheres encarceradas que são negras. Se voltarmos o olhar para Pernambuco, esse número sobre para 81%. Também faz parte dos 20% de mulheres em regime de cárcere que são analfabetas.
Mesmo Joana afirmando ter sido bem tratada dentro da prisão, o que contrasta com relatos de outras mulheres que vivem experiências semelhantes, não é possível esconder a dureza desse lugar. Aline Marques, advoga na área penal apenas para mulheres, criminóloga crítica e ex-agente penitenciária, ela conta que a experiência do trabalho dentro do presídio de Abreu e Lima foi chocante. “Nós temos uma noção abstrata da prisão. Foi muito chocante viver a realidade daquele lugar. E foi num presídio que é um dos melhores do Nordeste. Ouvi muitos relatos de violência, de conflitos entre presas e agentes, casos de exploração sexual, de tortura, como por exemplo arrancar as unhas”, lembra.
Maria das Graças, psicóloga aposentada, trabalha há 10 anos na Pastoral Carcerária e visita o Bom Pastor toda segunda pela manhã. “As celas são pequenas, escuras, sem ventilação. Tem mulher que dorme no chão. Quando chegam aqui choram, entram em desespero. Muitas ficam ansiosas porque as famílias não sabem onde elas estão. Então eu vou lá, olho nos olhos delas, mostro que elas têm valor”, relata a senhora.
Tendo ouvido diversas histórias de tantas mulheres que passam pelo local, Maria das Graças pontua que “elas são vítimas da sociedade que despejam elas lá. As que são pobres ficam aí mofando esperando o julgamento. Elas já foram muito violentadas até chegar aqui. Por isso, falo que elas não têm que ser humilhadas. Ajudo no resgate do entendimento de que são mulheres, que têm dignidade”.
No Bom Pastor, Joana trabalhava na limpeza. Carregava lixo, varria o pátio, corredores, refeitório. Ganhava cerca de R$ 500, dos quais mandava R$ 300 para a irmã guardar e o restante comprava de lanche. A comida do refeitório, segundo ela, não era tão ruim. A cela era dividida com outras 14 mulheres, na qual dormia numa cama de solteiro dividida com outra mulher. “A gente tinha uma boa convivência. Ali dentro a pessoa tem que ter paciência. Quem está ali, quer estar aqui fora cuidando da família. Não ficamos à vontade num lugar que não é nosso”, afirma.
Aline afirma que o efeito do cárcere nas mulheres é algo que precisa ser dito e pensado. “A prisão feminina tem a questão da dor da separação dos filhos e dos companheiros ou companheiras. Elas são triplamente culpadas. Há uma desestruturação familiar e da própria mulher, que perde os vínculos com a família e com a própria sociedade”, reflete.
Joana foi encarcerada pelo mesmo motivo que leva 68% das mulheres brasileiras para a prisão: drogas. “A criminalização das drogas e o tráfico são o grande problema do sistema carcerário no Brasil e na América Latina. Para avançar no debate sobre o encarceramento, é preciso começar a discutir a descriminalização das drogas”, pontua Aline. Soma-se a esse dado, o crescente aumento do encarceramento feminino de 2000 a 2014: cerca de 567%. Número muito superior ao de prisão de homens no mesmo período.
Daianny de Paula Santos, enfermeira sanitarista, especialista em Saúde Coletiva, pesquisa cenários de violência envolvendo mulheres e uso abusivo de crack e reflete que esses dados são extremamente alarmantes. Ela afirma: “demonstra a gravidade e complexidade dessa questão, que envolve fatores relacionados às desigualdades sociais e de gênero que afeta a população feminina no Brasil. O proibicionismo exacerbado no contexto brasileiro reforça os discursos repressivos da chamada “Guerra às drogas”. Antes, a criminalização de mulheres se configurava por atos relacionados às condições de gênero, como aborto, infanticídio e crimes passionais. Hoje, o encarceramento feminino é por tráfico de drogas, o que vem sendo observado desde os anos 80, a partir do contexto neoliberal e o aprofundamento da feminização da pobreza”.
Há pouco mais de um ano- ela lembra que foi perto do Carnaval-, Joana conseguiu sair do Bom Pastor. “Fizeram festa para me dar a notícia. A Pastoral Carcerária me trouxe na porta de casa, num carro preto de quatro portas. Chorei quando soube que estava livre. Minha pressão subiu na mesma hora. Lá dentro eu me sentia mal sem saber da minha família. Agora meu sofrimento é meu marido e meu filho”. São 6 ônibus para ir e voltar de cada visita. Ela revesa os finais de semana entre o filho e o marido. Um gasto grande, para uma mulher que não conseguiu arrumar emprego desde que saiu da prisão. No dia que conversamos, ela conta ter precisado pedir R$ 0,50 ao vizinho para poder comprar pão.
Sobre o sistema carcerário como está posto hoje, Aline observa: “Não é possível uma prisão que seja humana. Encarcerar já é desumanidade. O direito penal está colocado como mais uma forma de opressão contra pobres e negros. As pessoas não podem ser encarceradas pelo que são. Há um problema histórico no Brasil que é a continuidade da falta de inclusão dessa população. Eles são consumidores falhos, não estão integrados ao capitalismo. O cárcere é um instrumento de eliminação dessas pessoas”.
Pensando especificamente a relação mulheres, cárcere e drogas, Daianny assinala que a problemática “possui um forte recorte de classe, gênero e raça que se inter-relacionam e contribuem para o agravamento da violência contra a mulher, bem como a exploração da mesma”. Ela acredita que é preciso travar lutas no sentido de reconduzir para uma sociedade livre do machismo e tantas outra opressões que atingem as mulheres. “Temos que pensar sobre a oferta dos direitos sociais para as mulheres, o acesso a melhores condições de vida, trabalho e liberdade sexual. Paralelamente, precisamos avançar no debate do antiproibicionismo e a descriminalização ao uso de drogas. Este desafio só será superado por meio de uma mudança de perspectiva, redirecionando o olhar da problemática para o feminismo popular, bem como numa compreensão mais ampla e democrática sobre o consumo de drogas na sociedade”, conclui.