A Pastoral Carcerária Nacional, assim como outras organizações sociais, têm denunciado a questão da pena multa. A pena multa é uma espécie de punição aplicada pelo Estado contra as pessoas que foram condenadas pelo cometimento de algum crime.
Além da prisão, a maioria dos crimes preveem também uma punição de multa – cobrança em dinheiro que a pessoa precisa pagar depois da eventual condenação.
Além da dívida financeira, a pessoa fica impedida de tirar seu título de eleitor, sendo privada de seus direitos políticos, até que a pena seja paga. Essa dívida tem sido tamanha que as pessoas saem da prisão sem qualquer condição de pagar.
Anna Maria Rizzante, da PCr do Rio Grande do Sul, escreveu o artigo abaixo, sobre a importância de, como cristãos, se perdoar as dívidas, principalmente dos menos favorecidos, evitando que a pessoa seja escravizada por isso. Confira:
“Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores”
Esta invocação é tão conhecida que nem chama mais nossa atenção, de tão repetida. Não nos surpreende, não nos choca com a força de uma comparação que nos deveria assustar. Inserida no final do Pai Nosso, a oração que Jesus ensinou a seus discípulos e discípulas e a cada um e cada uma de nós, tem a força de um legado, até por ser a única oração que Jesus ensinou: Quando rezardes, não desperdicem palavras, mas digam assim: Pai nosso…
É a oração que resume o projeto de Jesus, que ele colocou em prática em sua vida, com gestos e ações! Oração e projeto que resumem a memória e a história do Povo de Deus ao longo de séculos, até chegar a Jesus e, depois dele, até nós, que hoje queremos seguir sua proposta e seu projeto.
Ao longo da história, o povo foi se dando normas, leis e códigos, com a finalidade de garantir a vida, a convivência, o respeito entre todos. Isso foi necessário, sobretudo, depois da saída do Egito, lá pelo ano 1.200 antes da era cristã, quando o povo, por quarenta anos, caminhou pelo deserto, para poder chegar à terra prometida, terra boa, terra livre, terra farta. 40 anos pra aprender a não repetir os males do Egito, da casa da servidão.
Os anos no Egito foram de muita opressão, escravidão, morte. Para o povo se tornou um compromisso coletivo, um mandamento do Senhor, “não voltar para a casa da servidão!” A escravidão e a opressão não podem ser esquecidas, para que não voltem a acontecer, nem entre o povo, nem entre os que com eles venham a conviver.
Temos registro de muitos códigos e normas que regulam detalhes da vida e os relacionamentos do cotidiano, para garantir vida, saúde, evitar abusos, reduzir violências e conter vinganças. Temos leis importantes, descritas nos detalhes, como a do descanso semanal. Para quem vinha da dura experiência do trabalho escravo, a serviço do faraó, o descanso semanal se tornou sagrado, mandamento de Deus a ser cumprido por todos! Por todas! Descanso para todas as criaturas. Vamos aquecer nosso coração com essas palavras!
“Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos. Mas o sétimo dia é um sábado para o Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu nem teu filho ou filha, nem o teu servo ou serva, nem o teu boi, teu jumento ou qualquer dos teus animais, nem o estrangeiro que estiver em tua propriedade; para que o teu servo e a tua serva descansem como tu.” (Deut 5,13-14)
E o motivo é este!
“Lembra-te de que foste escravo no Egito e que o Senhor, o teu Deus, te tirou de lá com mão poderosa e com braço forte. Por isso o Senhor, o teu Deus, te ordenou que guardes o dia de sábado.” (Deuteronomio 5,15)
O descanso coloca o trabalho a serviço do ser humano e de todos os seres vivos. O descanso é divino, é para o Senhor Deus! Do contrário se torna exploração de uns sobre outros!
Pai nosso, perdoa nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores…
E quando alguém, apesar disso, fica em situação difícil, necessitado, ao ponto de ter que se endividar, há medidas para impedir a exploração que levaria à insolvência:
“Se fizerem empréstimo a alguém do meu povo, a algum necessitado que viva entre vocês, não cobrem juros dele; não emprestem visando lucro. Se tomarem como garantia o manto do seu próximo, devolvam-no até o pôr-do-sol, porque o manto é a única coberta que ele possui para o corpo. Em que mais se deitaria? Quando ele clamar a mim, eu o ouvirei, pois sou misericordioso. (Êxodo 22,25-27)
Emprestar, mas sem cobrar juros! Não visar lucro! Ganância, em cima da necessidade do outro, nunca! Que lindo isso! Medida tão simples, de efeito tão grande: evita enriquecimento e acúmulo, às custas da necessidade do próximo! Não deixar crescer o olho, como diz o ditado popular!
O exemplo é bem simples, mas importante: recomenda que até o manto, dado como penhor, como garantia da dívida, deve ser devolvido antes da noite, ao devedor, que só tem aquilo para se cobrir nas noites frias, para que não passe frio e clame ao Senhor, que o ouviria pois é um Deus misericordioso!
Chega a emocionar este Deus que anda pelas madrugadas, atento ao clamor dos que sofrem por falta do mínimo até pra dormir, porque alguém não lhe devolveu o manto!
É a memória do Êxodo presente com força: Deus ouve o clamor, conhece o sofrimento, por causa dos opressores. E vem libertar, pois é misericordioso! O coração de Deus ao lado dos míseros, seus ouvidos sempre atentos aos seus clamores, mesmo que seja só pelo frio da noite e a dureza do chão!
Quem ouve hoje os clamores e gemidos de quem dorme nas “pedras” e no chão de celas superlotadas? O grito de quem passa as noites no chão, nas calçadas, debaixo de viadutos, sendo roubados dos poucos pertences, das barracas e cobertores, do papelão, em cidades cada vez mais hostis e violentas? Se nós ficamos surdos, Deus continua vigilante e atento: ele é misericórdia!
Os profetas serão a voz de Deus para lembrar ao povo o caminho da justiça e da fraternidade:
Ele, o justo, não oprime ninguém, antes, devolve o que tomou como garantia num empréstimo. Não comete roubos, antes dá a sua comida aos famintos e fornece roupas para os despidos.
Ele não empresta visando a algum lucro nem cobra juros. Ele retém a sua mão para não cometer erro e julga com justiça entre dois homens. (Ezequiel 18,7-8)
Pai Nosso, perdoa nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores!
A história do povo ensinou que, mesmo com tantos cuidados, algo desanda mesmo: alguém não consegue sair das dívidas, não dá conta de retomar a vida na liberdade. Famílias inteiras podem acabar na servidão, sem terra, tendo que trabalhar para outros, para poder sobreviver.
Sempre haverá necessitados, pelas desavenças da vida, doenças, mortes. E do outro lado haverá os que cedem ao desejo de lucro, à ganância, se aproveitando da necessidade alheia para enriquecer!
Isso precisa ser corrigido, restabelecer o equilíbrio para que todos tenham oportunidades iguais.
A comunidade a caminho “criou” então uma lei fantástica: a lei do sétimo ano!
“No final de cada sete anos as dívidas deverão ser canceladas.
Isso deverá ser feito da seguinte forma: Todo credor cancelará o empréstimo que fez ao seu próximo. Nenhum israelita exigirá pagamento de seu próximo ou de seu parente, porque foi proclamado o tempo do Senhor para o cancelamento das dívidas. Que nenhum de vocês alimente este pensamento ímpio: “O sétimo ano, o ano do cancelamento das dívidas, está se aproximando, e não quero ajudar o meu irmão pobre”. Ele poderá apelar para o Senhor contra você, e você será culpado pelo pecado.
Dê-lhe generosamente, e sem relutância no coração; pois, por isso, o Senhor, o seu Deus, o abençoará em todo o seu trabalho e em tudo o que você fizer.(Deuteronômio 15,1-2; 9-10)
O ritmo dos sete dias, “Sétimo dia é o sábado do Senhor,” para o descanso de todos e todas, é agora ampliado para o ritmo dos anos: a cada sete anos, as dívidas deverão ser canceladas.
É o tempo do Senhor para o cancelamento das dívidas! Nenhuma dívida pode durar para sempre, ninguém pode ser escravizado por dívidas eternamente, por isso, a cada sete anos, isso terá que ser renovado, sem espertezas, sem tentar escapar! Sem tentar burlar esta lei sagrada.
A Palavra de Deus, que a memória do povo guardou, vai até as intenções e ao coração das pessoas e ordena: Não pense em teu coração: daqui a pouco é o sétimo ano e a dívida será cancelada, não quero ajudar meu irmão pobre.
Como no caso do manto, que não pode ser retido além do pôr do sol, neste caso também, o pobre endividado apelará para o Senhor e será ouvido. Quem não perdoou a dívida será culpado de pecado! Não perdoar as dívidas é pecado! Pode esperar seis anos pelo pagamento, mas no sétimo não haverá mais dívida! Zerou! Ficha limpa de novo, de verdade! Sem grades, sem custas, nem multas.
Poder retomar a vida, sem dívidas, sem ter que pagar indefinidamente, dono de sua vida, dono do fruto do seu trabalho, livre como Deus gosta e quer! Benção do Senhor!
Benção do Senhor é também para os que já possuem, mas para eles, para nós, tem a condicional: Dê-lhe generosamente, e sem relutância no coração; pois, por isso, o Senhor, o seu Deus, o abençoará em todo o seu trabalho e em tudo o que você fizer. Benção de Deus condicionada à nossa generosidade para com o pobre e o necessitado!
Esta lei que nasceu da memória dolorosa da escravidão no Egito e da experiencia de libertação operada por Deus, não permitia que ninguém ficasse escravo e devedor para sempre! Mas a história mostrou que pouco foi respeitada! 600 anos após a saída do Egito, o profeta Jeremias denuncia que a aliança, mesmo renovada, foi repetidamente rompida:
“Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: Fiz uma aliança com os seus antepassados quando os tirei do Egito, da terra da escravidão. Eu disse: ‘Ao fim de sete anos, cada um de vocês libertará todo compatriota hebreu que se vendeu a vocês. Depois de o servir por seis anos, você o libertará’. Mas os seus antepassados não me obedeceram nem me deram atenção. ….
Portanto, assim diz o Senhor: Vocês não me obedeceram; não proclamaram libertação cada um para o seu compatriota e para o seu próximo. Por isso, eu agora proclamo libertação para vocês, diz o Senhor, pela espada, pela peste e pela fome. Farei com que vocês sejam um objeto de terror para todos os reinos da terra.
Entregarei os homens que violaram a minha aliança e não cumpriram os termos da aliança que fizeram na minha presença, … isto é, os líderes de Judá e de Jerusalém, os oficiais do palácio real, os sacerdotes e todo o povo da terra que andou entre as partes do bezerro, sim, eu os entregarei nas mãos dos inimigos que desejam tirar-lhes a vida. Seus cadáveres servirão de comida para as aves e para os animais(Jeremias 34,12 ss)
Palavras duras, maldição pesada sobre aqueles que violaram a aliança e não libertaram os escravos por dívidas! O profeta, boca de Deus, faz a lista deles: líderes de Judá, oficiais do palácio real, sacerdotes e o povo da terra, que são os que se apoderaram das posses dos que se tornaram escravos por dívidas.
É toda elite dominante do tempo, incluindo nobres e juízes. Para eles terá a fome, a peste, a guerra! Todos eles, elite das cidades, serão levados ao exílio de Babilônia. Desrespeitar a lei do sétimo ano, não perdoar as dívidas, não dar a liberdade é causa de toda desgraça, leva ao exílio, à humilhação, à destruição e à morte!
Pai nosso, perdoa nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores…
Jesus não multiplicou palavras, mas condensou na oração do Pai Nosso os compromissos mais importantes: que tenhamos o pão de hoje, para todos. O perdão das nossas dívidas, condicionado à nossa capacidade de perdoar as dívidas dos outros!
E a força para não cair na tentação de acumular o pão e de não perdoar as dívidas! Papa Francisco, em seu discurso aos líderes de movimentos populares, lembra a urgência de garantir a todos teto, trabalho e terra!
A memória mais antiga do povo continua sendo nossa utopia hoje, para continuarmos a caminhar, olhos postos no horizonte, no rumo da terra sem males, do bem viver, da liberdade! O sonho de Deus seja também nosso sonho que Deus irá realizar na medida em que nós realizamos sua vontade!
Pai nosso, perdoa nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores!
Anna Maria Rizzante Gallazzi
PCr RS