Sistema Carcerário: Se não há vaga, não pode prender

 Em Justiça Restaurativa

Por Guilherme Pontes
Do Justificando
O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, com 622.202 presos[1]. Os dados de dezembro de 2014, divulgados em abril de 2016 pelo Ministério da Justiça, mostram que a situação só se agrava: o país aumenta em média 7% o número de pessoas presas anualmente[2]. Em 2014, havia quase 300 pessoas presas para cada 100 mil habitantes, mais do dobro da taxa mundial, que é de 144 por 100 mil[3].
O déficit de vagas no sistema prisional já ultrapassava, em 2014, a casa dos 250.000. E isso sem considerar a existência de mais de 600 mil mandados de prisão em aberto no país, os quais, se cumpridos, elevariam o déficit no sistema prisional para mais de 850 mil vagas.
A construção de novas unidades prisionais, ainda que ocorresse, jamais seria suficiente para acompanhar o ritmo alucinante com que cresce a taxa de encarceramento.
A população prisional no país cresceu 575,2% desde 1990. Neste ritmo, segundo pesquisa realizada pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, pode-se estimar que até o ano de 2030, serão 1,9 milhões de pessoas privadas de liberdade e que o Estado brasileiro precisaria construir, nesse período, 5.816 novas unidades prisionais.

É evidente, e já reconhecido pela ONU e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA que o enfrentamento à superlotação das prisões no Brasil não se dará pela construção de mais presídios, mas pela reversão da política criminal superencarceradora.
É urgente que se adotem políticas visando promover o desencarceramento da população, como medida imperiosa à observância dos direitos humanos no país.
A redução das taxas de encarceramento é uma tendência mundial. Veja-se, nesse sentido, a evolução das taxas de encarceramento nos países com as maiores populações prisionais: entre 2008 e 2013, os Estados Unidos reduziram a taxa de pessoas presas para cada cem mil habitantes em 8%, a China, 9% e a Rússia, um quarto (24%). O Brasil, contrariando a tendência mundial, segue apostando no encarceramento em massa, à revelia das inúmeras recomendações de organismos nacionais e internacionais.
Nesse sentido, uma primeira e urgente medida é que a chamada teoria do numerus clausus seja aplicada no sistema carcerário nacional. Esta proposta toma lugar no pensamento criminológico a partir da formulação apresentada pelo então deputado francês Gilbert Bonnemaison ao Ministério da Justiça da França em 1989. Em síntese, de acordo com a proposta, o ingresso de uma pessoa no sistema carcerário deveria corresponder à libertação de uma pessoa privada de liberdade, como meio de evitar a superlotação das unidades prisionais.
As recentes experiências pelo mundo apontam a aplicabilidade e o sucesso da adoção deste critério. Países como Holanda, Noruega, Suécia e Dinamarca já experimentaram a formação de “listas de espera” e medidas de escalonamento no sistema penitenciário na hipótese de não existirem vagas suficientes. O princípio “uma vaga para cada preso” também já foi reconhecido por tribunais nos Estados Unidos e Alemanha.
No Brasil, uma primeira experiência vem sendo desenvolvida no estado do Paraná. Em implementação há apenas dois meses, o “Projeto de Ocupação Taxativa”, impulsionado pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciário (GMF) – ligado ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) –, já apresenta resultados positivos, com a redução da superlotação em 459 vagas – o que corresponde a uma redução de 18,6% – nas carceragens de delegacias.
A resolução que instituiu a iniciativa dispõe que, antes de decidir sobre um pedido de prisão, o juiz deve analisar sua “cota carcerária”. Caso não haja vagas disponíveis em sua cota, o magistrado, então, deverá analisar a situação processual dos presos provisórios de sua jurisdição, para averiguar a possibilidade de conceder progressões de regime ou proferir sentenças determinando a aplicação de alguma medida alternativa, conforme prevê a Lei de Execuções Penais.
Caso positivo, um novo preso poderia, então, ocupar a vaga respectiva. Caso não haja possibilidade de liberação de uma vaga, o juiz pode solicitar uma vaga excedente, por um período temporário. Esta iniciativa, apesar de limitada – uma vez que direcionada apenas às carceragens de delegacias, que sequer deveriam existir para este fim –, tem apresentado resultados positivos, podendo e devendo servir como piloto para estruturação de uma política pública a nível nacional.
No caso brasileiro, a aplicabilidade deste critério encontra fundamento nas normas constitucionais e infraconstitucionais. Nos termos do Artigo 1º da Constituição Federal de 1988, a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, baseada no republicanismo e na democracia, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III) e, dentre os objetivos fundamentais constitucionalmente elencados, estão a promoção do bem de todos (Art. 3º, IV).
Ainda na ordem constitucional, encontra-se resguardada também a garantia de não submissão à tortura e a tratamentos desumanos ou degradantes (Art. 5º, III), bem como assegurado às pessoas presas o respeito à integridade física e moral (Art. 5º, XLIX). Por outro lado, a Lei de Execução Penal dispõe que estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade (art. 85). Diante desta disposição, é inquestionável que a superlotação dos estabelecimentos prisionais brasileiros consiste num estado de ilegalidade permanente, que se evidencia pela incompatibilidade entre o número de pessoas privadas de liberdade e a estrutura ou finalidade das unidades prisionais.
A aplicação do numerus clausus ao sistema penitenciário brasileiro, portanto, não só se revela possível, mas uma medida imperiosa ao restabelecimento da legalidade, devendo servir de princípio geral a toda aplicação da lei criminal no país.
Nesse sentido, é que a Justiça Global, junto às organizações[4] com as quais constrói a Rede Justiça Criminal, conclama e convida toda a sociedade a aderir à campanha “Encarceramento em massa não é justiça”, a qual, dentre outras medidas, aponta de forma clara e decidida: se não há vaga, não se pode prender!
[1] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen – Junho de 2014. Acesso em 08 ago. 2017.
[2] Idem, p. 15.
[3] Idem, p. 8.
[4] Centro de Estudos em Segurança e Cidadania (CESeC); Conectas Direitos Humanos; Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP); Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD); Instituto Sou da Paz; e Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH).

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