No dia 14 de junho de 2020, pela página do Facebook da Pastoral Carcerária Nacional, aconteceu uma live sobre Justiça Restaurativa, mediada por Vera Lúcia Dalzotto, assessora nacional para a questão de Justiça Restaurativa da Pastoral Carcerária. Leonardo Envall Dieckmann, da Pastoral Carcerária do Rio Grande do Sul, participaram como mediador. Como convidadas e convidado, Desireè Mendes, Irmã Joselene Barbosa Linhares e Pe. Eduardo Luis Haas.
Num primeiro momento, Vera apresentou brevemente as pessoas que participaram da live. Desireè Mendes: Microempresária, Confeiteira, 43 anos, mãe. Morou mais de 10 anos na Cracolândia, em São Paulo; foi internada diversas vezes para tratamento da dependência química. Também passou mais de uma dezena de vezes pela prisão. Hoje Desireè atua no programa estadual de recuperação de dependentes como educadora, e no “Projeto recomeço”, onde dá aula de gastronomia na Cracolândia.
Logo em seguida, Desireè partilhou alguns elementos da sua história de vida, marcada por muitas dores e, ao mesmo tempo, muitas superações. O início do uso de drogas ainda muito jovem – com 13 anos de idade – foi algo que desencadeou uma série de dificuldades em sua vida, como passagens por internações e pelo sistema carcerário. Desireè partilhou com bastante emoção as situações vividas por conta da maternidade, em que contou com o apoio da mãe no cuidado e educação dos seus filhos. O depoimento completo está disponível no Facebook da Pastoral Carcerária. Importante destacar as violências sofridas por ela, com marcas no corpo – exteriores – e na alma – interiores. Desireè, quando mencionou os dentes perdidos nas agressões sofridas pela polícia, por exemplo, afirmou: “As dores que senti no corpo, como dar à luz um filho algemada pelas mãos e pelos pés, não são tão intensas como as dores internas que senti”.
O foco da live era o Perdão e o auto-perdão. Desireè partilhou que consegue perdoar as diversas pessoas que passaram pelo caminho da sua vida nestes anos conturbados. Afirma, também, a dificuldade de se perdoar por tudo o que aconteceu. É um processo que ainda está vivendo, e que durará toda a vida, pois passa pela aceitação. Ainda um elemento a destacar da fala da Desireè, que foi emocionante para todos os que acompanharam a live, foi que, na sua última prisão, à noite, sozinha numa pequena janela da cela, olhava para fora e, num sentimento de impotência e abandono, chorou durante toda a noite. Contudo, nesta experiência que seria só de dor e solidão, ela experimentou que não estava só: alguém ouvia seu lamento. E ela conclui que Deus a escutava! A fé e a confiança em Deus – aí temos o elemento da espiritualidade – foram fundamentais para que ela iniciasse um processo de perdão, auto perdão e reconstrução da sua vida.
A segunda participante foi a irmã Joselene Barbosa Linhares. Ela é religiosa consagrada, tem 48 anos, é Barachel em direito, facilitadora com vasta formação na área de Fundamentos da Justiça Restaurativa/Espere, em Bogotá – Colômbia -, pelo Centro De Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), de Campo Limpo, SP, pela Escola Nacional de Mediação e Conciliação, Comunicação não violenta. Possui ainda Formação pela Escola Superior de Magistratura. Irmã Joselene trouxe uma ampla e conveniente fundamentação conceitual, cujo resumo reproduzimos a seguir.
“Para dialogar com esse princípio Evangélico [do perdão e auto perdão], que é também os fundamentos da ESPERE, pedi auxílio a algumas referências, isto é, autoridades na temática. São eles: Howard Zeher – Trocando as Lentes: Este quando nos oferece a própria imagem de trocar de fato as lentes interiores, que no mundo da religião chamaríamos de conversão. Converter a visão punitiva em uma visão restaurativa, aqui neste viés podemos acrescentar os valores de empatia, compaixão, misericórdia e amor. Amor no sentido ágape. O Bom Samaritano e a Samaritana no caminho da vida (Lc 10, 25-37), em nossa contemporaneidade tão necessária e urgente, para nos reconectar conosco mesmas/os, com o outro, com o universo de forma holística. Hannah Arendt: As implicações do perdão na esfera pública. É no poder do perdão que o individuo encontra sua redenção. Na obra A condição humana, a autora propõe uma concepção diferente de perdão, deslocando-o do âmbito religioso para o campo político. A novidade é olharmos e vivenciar o perdão no domínio público e político. No evangelho segundo Mateus 18, 21-22, encontramos a pergunta: quantas vezes devo perdoar? Neste contexto acolhemos a proposta diante de toda uma vida. Perdão não como passar a mão na cabeça, mas como sentido de recomeço, reconexão com a própria vida e com os laços rompidos advindos de circunstâncias pessoais ou sociais. A dimensão de responsabilidade e corresponsabilidade pessoal, social e planetária. Robin Cajarjian O perdão, porta para a paz mental. A autora nos recorda que: quando nos deixamos invadir pela raiva e o rancor, ficamos emocionalmente paralisados e perdemos o controle de nós mesmo. A dimensão de autocontrole é uma ferramenta emocional, que nos possibilita a capacidade de discernimento. Além de nos convidar a revisitar o que não significa perdoar:
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Justificar os comportamentos negativos…. Isso é ser condescendente com o erro!
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Negar ou reprimir a raiva e a dor, demonstra que tudo está bem, quando, na realidade, estamos aborrecidos e incomodados.
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Mudar o comportamento e as atitudes das pessoas que nos agrediram.
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Perdão também não é reconciliar-me com o outro. Este é outro processo. O perdão é um processo de cura de si mesmo, autoacolhimneto e autocuidado…
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O perdão não é esquecimento, mas é recordar como experiência e não mais como dor ou amargura.
Segundo Casarjian, o perdão, como processo, exige de nós mudar as percepções a cada instante, optando por uma visão mais profunda, ampla e abrangente, que permite assumir uma posição mais compreensiva em relação aos outros. Sendo o perdão uma forma de vida, nos transforma, de vítimas das circunstâncias e dos outros, em co criadores/as de nossa realidade. Se eu não perdoar, o outro continuará a ter poder sobre mim. Ele determinará meus pensamentos e sentimentos. O perdão me liberta do poder do outro. Papa Francisco pergunta: Quem sou eu para julgar? O perdão e a tolerância como caminhos para a paz e a harmonia de cada um de nós e de todo o mundo. Deus perdoa tudo! Somos nós que não sabemos perdoar. Somos nós que não encontramos as estradas do perdão, muitas vezes por incapacidade ou por ser mais fácil encher os cárceres do que ajudar a seguir em frente quem errou na vida.
No ordenamento Jurídico Brasileiro temos a figura do “ne bis in idem”. Um dos princípios fundamentais do direito penal nacional e internacional é o princípio da vedação à dupla incriminação ou princípio no bis in idem. Tal princípio proíbe que uma pessoa seja processada, julgada e condenada mais de uma vez pela mesma conduta. Tendo em vista a necessária observância de princípios e regras de nosso ordenamento jurídico à Constituição Federal, fonte de validade de toda norma, importa apontar a origem do princípio em questão: É certo que a Constituição Federal de 1988, ao estatuir a garantia da coisa julgada (art. 5º, XXXVI) procurou assegurar a economia e a certeza jurídica das decisões judiciais transitadas em julgado, servindo, em outro giro, como fundamento do princípio ne bis in idem, em seu aspecto processual. Por outro lado, o princípio da legalidade, insculpido na Carta Magna, em seu artigo 5º, XXXIX, serve de base ao aspecto substancial do princípio ne bis in idem, concretizando os valores da justiça e certeza a ele inerentes (MASCARENHAS, 2009, p.3). No Direito Penal, tal princípio atua como forte intervenção no que se refere à promoção imensurável de Justiça, que é o principal objetivo do Direito, bem como a valorização da pessoa humana, visando a preservar suas garantias. O princípio ne bis in idem, que vem do direito romano e faz parte da tradição democrática do direito penal, nada mais é do que corolário do ideal de justiça, uma vez que determina que jamais alguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. (SILVA, 2008, p.2).
No entanto, quando uma pessoa perde sua liberdade de ir e vir, é tutelada pelo Estado-Juiz, estas pessoas sofrem inúmeros e reintegrados julgamentos: pela mídia facciosa e sensacionalistas, pelas elites de nosso País e por toda sociedade que a rotula e a coloca numa situação de eterna condenada, isto prova que o sistema prisional não ressocializa e tampouco reintegra nenhuma pessoa. Este sistema amputa vidas, tira possibilidades de crescimento e fere a dignidade da pessoa em sua inteireza. Além do instituto, que diz: que a pena não vai além do apenado, mas a famílias, amigos, filhos passam a sofrer da mesma sorte, sofrem as consequências da pena e da privação de liberdade como se preso este fosse. São inúmeras penas psicológicas, sociais e até religiosa imputada a uma pessoa provada de liberdade. Rótulos que a classe econômica mantém até os dias atuais.
O que nos move é: “o amor ao poder ou o poder de amar”? Quando se trata de emoções é inadequado qualificar como: boas e ruins são simplesmente emoções, porém o que faço é que está sob minha responsabilidade. Santo Inácio tem um princípio que diz: na desolação ou exaltação não se toma decisão. Espera, silencia, para só depois de forma refletida se posicionar frente ao fato concreto passando pelo crivo do discernimento dos espíritos.
O padre Leonel Narváez fundador da Escola do Perdão e Reconciliação em Bogotá-Colômbia nos apresenta a árvore da paz sustentável.
NECESSIDADE SUBJETIVAS:
Raiva, rancor e vingança
NECESSIDADES ECOLOGICAS: verdade, justiça, reparação, pactos não repetição
NECESSIDADES OBJETIVAS:
casa, trabalho, educação e saúde.
Neste aspecto apresentado, a dimensão subjetiva é a parte onde cada pessoa tem o controle, autodomínio, Este alimenta toda árvore e como cada dimensão está interligada, conectada é a forma que damos, externalizamos como ações nas dimensões: pessoal, interpessoal, institucional, cargos/serviços que assumimos. O que está vivo em mim? O que está latente? Roberto Crema nos conduz a observar que necessitamos romper o ciclo da normose, Olga Botcharova nos alerta para termos a coragem de romper o circulo da violência.
Estar em nossas mãos… Porém um alerta também nos traz padre Leonel Narváez: quando diz que temos mestrado, doutorado no mundo intelectual, mas, todavia somos analfabetos quando se trata de lidar com nossas próprias emoções. Santo Inácio, nos exercícios espirituais, nos alerta sob a ótica das suas bandeias ou sobre a monção dos espíritos, aqui entra a capacidade de autodomínio e a capacidade de discernimento cotidiano. Olhando a árvore apresentada à dimensão de suas raízes é o que estar latente em nós e reverberamos ao universo, ao outro, as duas dimensões objetivas e ecológicas nos são garantias e direitos fundamentais á vida planetária de forma universal. Cuidemos da vida, cuidemos do planeta e permitamos que o outro viva em plenitude”. Até aqui a fala da irmã Joselene.
O último a dar sua participação, foi o padre Eduardo Luis Haas. Ele é Reitor do seminário maior São Joao Batista da Diocese de Montenegro, RS; tem 36 anos, é formado em Filosofia e Teologia; possui capacitação em FJR/Espere e Práticas restaurativas. E atua como membro da Pastoral Carcerária. Pe. Eduardo foi convidado a ajudar, na conversa feita, a conhecer melhor o sacramento de reconciliação e sua eficácia na liberdade.
Pe. Eduardo iniciou falando da dimensão antropológica dos sacramentos: Jesus Cristo é Deus que se fez ser humano, assumiu nossa vida e nossa história. Então, Jesus que passou a vida fazendo o bem, curando, perdoando, reconciliando, conclui sua existência terrena morto injustamente, de forma violenta, na cruz. Contudo, a vida de Jesus não é um fracasso. Ele veio para promover a reconciliação da humanidade com Deus e das pessoas entre si. E Jesus aponta, como grande remédio para o pecado – que é o fechamento voluntário do ser humano ao amor – a misericórdia divina. Quando Jesus é morto e sepultado, parece que tudo acabou. Contudo, os cristãos creem na ressurreição, na vida nova e eterna que Jesus inaugurou na sua morte: porque morreu amando e perdoando, Jesus destruiu a morte. Pe. Eduardo enfatizou que o único remédio para o mal, o pecado, a injustiça, a morte é o amor: amar, perdoar, reconciliar. As relações humanas não serão mudadas à base da força e da violência, da repressão ou da lei. Só o amor pode transformar.
Uma ferramenta que a Igreja Católica dispõe seus fiéis é o sacramento da reconciliação. Pe. Eduardo destacou que este sacramento tem uma estrutura restaurativa: a pessoa deve, antes de tudo, tomar consciência do pecado. Este passo tem relação com o reconhecimento, assumir a responsabilidade. Depois, decide que quer ser diferente, faz o propósito de não mais pecar. Procura o sacerdote e, num rito religioso, confessa seus pecados – esse elemento tem relação com a expressão da dor, a verbalização. Depois, ouve do ministro da Igreja uma palavra de encorajamento e de perdão. Por fim, é convidado a praticar uma obra restaurativa, que se chama de penitência, e que tem o intuito de reparar o mal feito. Ou seja, as religiões têm ferramentas importantes que podem ajudar numa espiritualidade restaurativa. A fé cristã não pode ser usada para gerar divisão, violência, separação.
A conversa durou 1h30min. Testemunho de vida, fundamentação teórica, ligação antropológica e religiosa: tudo isso para mostrar que perdão e auto perdão são possibilidades restaurativas na construção de pessoas novas e, por consequência, de um mundo melhor. Se ficou interessado/a, a live está disponível na página do Facebook da Pastoral Carcerária Nacional.