Um universo complexo
A complexidade do universo em que estamos vivendo e a profunda crise mundial que se manifestas nos conflitos que hoje são globais, mesmo que, aconteçam a distancias planetárias, acabam afetando a inteira coletividade. A recente experiencia da COVID criou ainda maiores distancias entre os seres humanos acentuando medos que foram incentivando e acerbando o individualismo e,demonstrou, mesmo com os negacionismos sócio político religioso que tudo está interligado. Isso significa que precisamos de uma ecologia integral que inclua claramente as dimensões humanas sociais, ambientais.
“As razões, pelas quais um lugar se contamina, exigem uma análise do funcionamento da sociedade, da sua economia, do seu comportamento, das suas maneiras de entender a realidade. Dada a amplitude das mudanças, já não é possível encontrar uma resposta específica e independente para cada parte do problema. É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza”.
Este texto sintetiza com clareza que estamos diante de uma crise global cuja solução não se dá nem com medidas punitivistas e tanto menos com soluções apressadas e superficiais. É preciso buscar soluções integrais que não parem em planos economicistas e tanto menos populistas ou de efeito midiático.
Diante da crise que engloba a sociedade como um todo, apolarização das ideias, a democracia fantasma, as instituições profundamente em crise, o avanço do fundamentalismo socio político religioso que se tornou ideologia dominante e se concretizou nos atos de 8 de janeiro de 2023, continuamos vivendo a incerteza constante de possíveis golpes de estado que nenhum dos poderes constituídos, e ainda menos o judiciário conseguirá conter e até evitar. É preciso ter consciência que mesmo que a Suprema Corte esteja julgando e condenando uma parte consistente daqueles que depredaram bens públicos da praça dos três poderes, isso poderá num futuro não longínquo ser a centelha que vai fazer reacender a chama do ódio que o punitivismo nunca conseguirá apagar, se não mudarmos e atualizarmos nossos sistemas reconhecendo que fazemos parte de ecossistemas abrindo-nos para permitir reconhecer como as diferentes criaturas se relacionam.
As diferentes ecologias
Fica cada vez mais evidente que nossos sistemas e estruturas são cada vez mais incapazes de responder e encontrar soluções e por isso quando pensamos que tudo no universo está interligado e as diferentes realidades dependem umas das outras, não podemos deixar de pensar em diferentes ecologias que extrapolam do antigo conceito para abraçar o universo na sua pluralidade e unicidade complexa. Neste sentido vai o convite de Papa Francisco na Laudato Si:
Dado que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que tenha em conta todos os aspectos da crise mundial, proponho que nos detenhamos agora a refletir sobre os diferentes elementos duma ecologia integral, que inclua claramente as dimensões humanas e sociais.
Ecologia ambiental, económica e social
A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isto exige sentar-se a pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência duma sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado. Por isso, os conhecimentos fragmentários e isolados podem tornar-se uma forma de ignorância, quando resistem a integrar-se numa visão mais ampla da realidade.
A Laudato Si proporcionou e questionou o olhar da realidade até então, as lentes usadas eram muito fragmentadas. Hoje seria impossível ter uma visão limitada a um só espaço, é preciso colocar novas lentes para enxergar todas as dimensões de um universo onde umas garantes e dão sustento a outras. Por isso hoje quando falamos de ecologia não podemos esquecer a economia que por sua vez apela para um humanismo que engloba diversos saberes que abrem para um horizonte mais amplo e que integra muitas mais realidades.
Além disso, o crescimento económico tende a gerar automatismos e a homogeneizar, a fim de simplificar os processos e reduzir os custos. Por isso, é necessária uma ecologia económica, capaz de induzir a considerar a realidade de forma mais ampla. Mas, ao mesmo tempo, torna-se atual a necessidade imperiosa do humanismo, que faz apelo aos distintos saberes, incluindo o económico, para uma visão mais integral e integradora. Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos, e da relação de cada pessoa consigo mesma, que gera um modo específico de se relacionar com os outros e com o meio ambiente. Há uma interação entre os ecossistemas e entre os diferentes mundos de referência social e, assim, se demonstra mais uma vez que «o todo é superior à parte».
Em conclusão não podemos esquecer a grande importância da Ecologia Social como esteio das relações humanas e das próprias instituições que as regulam:
Se tudo está relacionado, também o estado de saúde das instituições duma sociedade tem consequências no ambiente e na qualidade de vida humana: «toda a lesão da solidariedade e da amizade cívica provoca danos ambientais». Neste sentido, a ecologia social é necessariamente institucional e progressivamente alcança as diferentes dimensões, que vão desde o grupo social primário, a família, até à vida internacional, passando pela comunidade local e a nação. Dentro de cada um dos níveis sociais e entre eles, desenvolvem-se as instituições que regulam as relações humanas. Tudo o que as danifica comporta efeitos nocivos, como a perda da liberdade, a injustiça e a violência. Assim, por exemplo, o consumo de drogas nas sociedades opulentas provoca uma constante ou crescente procura de produtos que provêm de regiões empobrecidas, onde se corrompem comportamentos, se destroem vidas e se acaba por degradar o meio ambiente.
A ecologia cultural
Podemo-nos perguntar o que tem a ver a ecologia com a cultura, mas se formos entrar na visão holística dos povos nativos, podemos entender como a preservação da natureza alcança o patrimônio histórico, artístico e cultural que faz parte da identidade comum de um lugar e é a base de uma cidade habitável.
É preciso integrar a história, a cultura e a arquitetura dum lugar, salvaguardando a sua identidade original. Por isso, a ecologia envolve também o cuidado das riquezas culturais da humanidade, no seu sentido mais amplo. Mais diretamente, pede que se preste atenção às culturas locais, quando se analisam questões relacionadas com o meio ambiente, fazendo dialogar com a linguagem técnico-científica com a linguagem popular. É a cultura – entendida não só como os monumentos do passado, mas especialmente no seu sentido vivo, dinâmico e participativo – que não se pode excluir na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente.
Também quando falamos de cultura damo-nos conta que a compreensão dos povos nativos é bem diferente da nossa, sua densidade de significados e conteúdos a transformam de um conceito de consumo que nós temos num precioso e valioso tesouro que integra e constitui a vida em sua essência mais profunda. Por essa razão o querer impor nosso mundo tecnicista não é solução, o demonstra a falência de nossa relação com os outros seres que compõem um universo bem mais amplo que nosso restrito horizonte.
A visão consumista do ser humano, incentivada pelos mecanismos da economia globalizada atual, tende a homogeneizar as culturas e a debilitar a imensa variedade cultural, que é um tesouro da humanidade. Por isso, pretender resolver todas as dificuldades através de normativas uniformes ou por intervenções técnicas, leva a negligenciar a complexidade das problemáticas locais, que requerem a participação ativa dos habitantes. As soluções meramente técnicas correm o risco de tomar em consideração sintomas que não correspondem às problemáticas mais profundas. É preciso assumir a perspectiva dos direitos dos povos e das culturas, dando assim provas de compreender que o desenvolvimento dum grupo social supõe um processo histórico no âmbito dum contexto cultural e requer constantemente o protagonismo dos atores sociais locais a partir da sua própria cultura.
Nesse sentido Papa Francisco nos diz que é imprescindível dialogar com as tradições culturais, com os tesouros que estão escondidos no coração das culturas indígenas, afro e tantas outras que fazem parte de nosso universo e constituem o rosto do continente latino-americano.
O desaparecimento duma cultura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento duma espécie animal ou vegetal. A imposição dum estilo hegemónico de vida ligado a um modo de produção pode ser tão nocivo como a alteração dos ecossistemas.
Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os principais interlocutores, especialmente quando se avança com grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para eles, a terra não é um bem económico, mas dom gratuito de Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado com o qual precisam de interagir para manter a sua identidade e os seus valores.
A Ecologia da vida cotidiana
Interessante é que a Laudato Si, que é o texto de apoio para falar da passagem do mundo do Cárcere à Terra sem males, nos traz uma nova dimensão da Ecologia, àquela que faz parte da vida do dia a dia, do que acontece minuto por minuto num universo enganoso, liquido, gasoso ao qual nos adaptamos, mas que ao mesmo tempo devemos trabalhar e melhorar para também ter melhor qualidade de vida.
Para se poder falar de autêntico progresso, será preciso verificar que se produza uma melhoria global na qualidade de vida humana; isto implica analisar o espaço onde as pessoas transcorrem a sua existência. Os ambientes onde vivemos influem sobre a nossa maneira de ver a vida, sentir e agir. Esforçamo-nos por nos adaptar ao ambiente e, quando este aparece desordenado, caótico ou cheio de poluição visiva e acústica, o excesso de estímulos põe à prova as nossas tentativas de desenvolver uma identidade integrada e feliz.
E Papa Francisco insere dentro a ecologia da vida cotidiana outra que chama de “HUMANA” que a fantasia dos pobres consegue desenvolver numa rede de comunhão e de pertença. Se olharmos isso acontece também dentro dos muros das prisões, não querendo com isso justificar ou aprovar este espaço de segregação humano e social.
Admirável é a criatividade e generosidade de pessoas e grupos que são capazes de dar a volta às limitações do ambiente, modificando os efeitos adversos dos condicionalismos e aprendendo a orientar a sua existência no meio da desordem e precariedade. É louvável a ecologia humana que os pobres conseguem desenvolver, no meio de tantas limitações. A sensação de sufocamento, produzida pelos aglomerados residenciais e pelos espaços com alta densidade populacional, é contrastada se se desenvolvem calorosas relações humanas de vizinhança, se se criam comunidades, se as limitações ambientais são compensadas na interioridade de cada pessoa que se sente inserida numa rede de comunhão e pertença. Deste modo, qualquer lugar deixa de ser um inferno e torna-se o contexto duma vida digna.
E aqui temos a constatação de como se pode superar a realidade de ambientes hostis e passiveis manipulações por parte do crime devido ao anonimato pelo qual as pessoas passam e a experiência comunitária criativa que gera novas possibilidades de vida.
Inversamente está provado que a penúria extrema vivida nalguns ambientes privados de harmonia, magnanimidade e possibilidade de integração, facilita o aparecimento de comportamentos desumanos e a manipulação das pessoas por organizações criminosas. Para os habitantes de bairros periféricos muito precários, a experiência diária de passar da superlotação ao anonimato social, que se vive nas grandes cidades, pode provocar uma sensação de desenraizamento que favorece comportamentos antissociais e violência. Esta experiência de salvação comunitária é o que muitas vezes suscita reações criativas para melhorar um edifício ou um bairro
Para não nos alongar demais, temos outros elementos importantes para falar da Ecologia da vida cotidiana que aqui não iremos tratar como a questão da falta de habitação, a qualidade dos transportes, a poluição, a integração no bairro e na cidade, o reconhecimento da dignidade peculiar do ser humano e aceitação do seu próprio corpo.
A Terra sem males
Na mitologia guarani, a terra sem males (Yvy marãe’ỹ em guarani) faz referência ao mito de uma terra onde não haveria fome, guerras ou doenças. Este paraíso tupi-guarani se configuraria numa ilha real que a grande maioria dos guaranis consideram estar localizada a leste, em alguma parte no Oceano Atlântico. Para se chegar a ela seria necessário estar no estado de perfeição que os indígenas denominam aguyjé (um estado espiritual). A ilha, portanto, não seria visível a qualquer mortal e se assim fosse a mesma se moveria para longe, pois somente os que estivessem em estado de perfeição poderiam adentrar.
Na ilha moraria o deus criador Nhamandu, sua casa seria uma cabana. Dentro estariam o Jaguar Azul (Jaguarový ou Charía) e o Morcego Originário (Mbopí recoypý)[2], ambos contidos pelo deus, pois se soltos o Jaguar Azul destruiria a humanidade e o Morcego Originário engoliria o sol. Do lado de fora da cabana estaria uma serpente, o que muitos acreditam ser uma Caninana. A cabana de Nhamandu estaria rodeada de trevas, mas em seu tórax ainda brilharia a luz criadora, a mesma que ele portava no começo da criação, e isso iluminaria os seus arredores.
De acordo com os índios muitas aves migratórias vão para este lugar e retornam também. Aves como araras, tangarás e sabiás. Na ilha, tanto a fauna como a flora falariam como os humanos.
O bem viver
Este sonho da terra sem males, ou como afirmam outros o Bem viver, traz novo olhar e entendimento sobre nossa sociedade, sua economia, suas relações onde mesmo as maiores dificuldades encontram no bem comum as respostas aos desafios do dia a dia fortalecendo a vida do povo em sua coletividade, dando espaço e fala a todos sem distinção.
Isso não significa que no meio dos povos nativos não existam dificuldades e desafios, mas existe sim um diferencial que infelizmente estão abandonando, o do processo restaurativo expressão de superação de individualismos, de ódios, de violências e vinganças, onde no lugar da segregação tem a inclusão na comunidade, onde em lugar da punição existe a educação, onde em lugar da pena existe a responsabilização.
O processo restaurativo
A esse respeito lembro no dia de minha chegada na Missão Catrimani na terra Yanomami, um grupo de jovens que tinham estado na cidade tinham trazido publicidade da campanha política de um dos seus maiores inimigos dos povos indígenas atraídos naturalmente pela novidade. Em nossa sociedade essa atitude teria reservado uma severa punição para estes jovens, o que naturalmente levaria ao surgimento neles de um sentimento de raiva, ódio e até confronto com as pessoas mais experientes e as próprias lideranças.
Bem diferente foi a reação e a atitude da comunidade à qual os jovens pertenciam. A comunidade foi convocada para encontrar uma solução ao caso e não criar uma história que transformasse os jovens em culpados. A primeira atitude foi escutá-los, entender o que tinha acontecido na cidade e o que os teria levado a pensar que aquele senhor seria um candidato bom para eles. O passo seguinte foi apresentar a eles a preocupação da comunidade por meio da fala do “tuchawa” a fim de que compreendessem que a atitudes deles não era correta ou melhor a realidade que lhe fora apresentada era bem diferente. Depois dessa fala toda a comunidade vai participar expressando seu sentir e dando algumas orientações aos próprios jovens ajudando-os a compreender o que isso significava para a comunidade. O passo final foi o compromisso que é também um ato concreto, voltar a cidade para devolver os panfletos ao dono dizendo assim a ele que não eram seus aliados.
Conclusão
Diante de quanto fomos estudando, lendo e argumentando, tomamos consciência que o processo da verdadeira justiça não passo pelo cárcere, aliás ele é estruturalmente contrário e maléfico pela sociedade enquanto alimenta e acentua a crise socioambiental fomentando e alimentando suas causas geradoras que ameaçam a ecologia integral e oequilíbrio da própria Casa Comum.
Os povos indígenas, primeiros habitantes deste nosso imenso país, ensinam-nos que existe uma relação diferente com os outros seres que povoam este planeta, e a importância de estabelecer um equilíbrio que respeite a individualidade de todos e ao mesmo tempo favoreça a coletividade e o bem comum. Isso os leva a entender que é essencial a preservação do meio ambiente, das florestas, dos rios, do ar e principalmente da Mãe TERRA por eles considerada como genitora.
Por isso eles não compreendem a nossa posse da terra, assim como nosso sistema econômico que cria desigualdade e conflitos que levam ao fenômeno que tem caraterizado o controle social da pobreza, das crises sociais, das periferias urbanas e existenciais, criminalizando os movimentos sociais e os próprios cidadãos gerando como resultado o ENCARCERAMENTO EM MASSA, alimentado por uma cultura homofôbica, militarista, armamentista, gerando extermínio e morte.
Eis porque o sonho/profecia da TERRA SEM MALES concretizado pelo PROCESSO CIRCULAR DA JUSTIÇA RESTAURATIVA é essencial para este momento para passar da punição à responsabilização num caminhar junto alimentando o processo ecológico integral que, nos leva à restauração social de passar de inimigos e ameaças a “Fratelli e SorelleTutti”, todos irmãos e irmãs, construindo uma amizade social que não ignora os conflitos, mas por meio de lentes diferentes vai tecendo e fortalecendo novas relações, não mais as do ódio, da vingança e da violência, mas as de um mundo que não precisa mais de cárceres porque sua civilização está fundada no AMOR.