Como funciona a Es.pe.re, iniciativa pioneira de justiça restaurativa nos presídios do RS

 Em Justiça Restaurativa, Notícias

Por Fernanda Canofre
Do Sul 21
Irmã Imelda começa a contar a história e parece reviver cada detalhe do momento diante de seus olhos. A voz se emociona conforme o relato avança. Em um dia de 2013, ela explicava a teoria da iugoslava Olga Botcharova sobre ciclos de violência, dentro de um presídio do Rio Grande do Sul, quando um dos presos a interrompeu. A ideia de Botcharova a que ela se referia defende que se uma pessoa vítima de violência não consegue quebrar o ciclo de vitimização, isso pode levá-la a se tornar agressor, usando a vingança como justificativa para seus atos. Para o homem que se levantou, aquela era a história de sua própria vida. Na época, ele cumpria pena por mais de um homicídio.
“Ele se levantou do grupo e disse: Irmã, eu me achei. Todo mundo ficou quieto e eu também parei. Ele falou: eu tinha três anos, estava com o meu pai numa cancha de bocha, de repente veio um homem na frente do meu pai e disse ‘isso não vai ficar assim, eu vou te matar’”, lembra a Irmã. Segundo o preso, o episódio gerou dentro dele um medo grande de perder o pai, de não ter a quem recorrer para pedir ajuda e o sentimento foi crescendo durante os anos. Na primeira oportunidade que teve de conseguir uma arma, o homem que havia ameaçado o pai virou seu primeiro assassinato.
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“Aquilo ficou com ele tantos anos que mudou a personalidade. E a defesa dele foi o quê? Toda vez que ele se sentia ameaçado, a partir disso, ele tinha a arma para responder”, analisa Irmã Imelda. Esse é apenas um dos “inúmeros relatos” que a Irmã costuma ouvir nas suas atividades com a Escola de Perdão e Reconciliação – a Es.pe.re – mas ela tem cuidado em comentar sobre as histórias para evitar problemas aos presos e presas. “A gente precisa ter sigilo nessas questões”.
Irmã Imelda Jacoby é uma das maiores referências no Brasil sobre a Es.pe.re. Ela conheceu a iniciativa em 2010, durante um curso promovido pela Pastoral Carcerária para seus agentes – tanto religiosos, quanto voluntários. O projeto surgiu dentro da cultura política de perdão e reconciliação usada pela prefeitura de Bogotá, Colômbia, nos anos 1990 para mediar resoluções pacíficas de conflitos entre as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), o Estado e suas vítimas. Uma alternativa à justiça punitivista que funciona ainda no país sob o nome de “territórios de paz”. No Brasil, o projeto foi implantado pela ONG Cdhep (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular) e chegou à Pastoral como ferramenta para implementação da justiça restaurativa.
Assim que foi apresentada à ela, no entanto, Irmã Imelda encontrou algo que buscava desde que começou seu trabalho com presos no início dos anos 1980, e levou-a imediatamente para Passo Fundo, cidade na região norte do Rio Grande do Sul, onde vive. O trabalho que ela e um grupo de cinco voluntários desenvolvem lá é uma das primeiras experiências de justiça restaurativa com adultos no Brasil. A primeira com a Es.pe.re. Atualmente, há escolas do gênero em 9 estados do país.
O trabalho com presos e agentes
O funcionamento da Es.pe.re parece simples. Irmã Imelda trabalha com presos, agentes penitenciários e de segurança em cursos de 40 horas, com 10 módulos baseados nos quatro eixos fundamentais da justiça restaurativa: cognitivo, emocional, comportamental e transcendental. O objetivo é fazer com que o indivíduo reconheça em si mesmo virtudes e falhas, durante o processo, para que aprenda a “manejar a raiva, rancor e desejos de vingança” e “a desenvolver uma cultura onde violência não seja tolerada”. “É a possibilidade de mudança, começando com uma mudança minha. Com fazer uma análise própria, porque os comportamentos nossos geram uma cadeia de reações”, explica ela.
Só parece simples. Fazer com que pessoas aceitem falar em voz alta sobre seus maiores medos e inseguranças, que podem ser a raiz de ciclos de violência, não é nada fácil. Irmã Imelda conta que é comum enfrentar resistência de administradores dos presídios que não veem a ideia com bons olhos, assim como de agentes que se recusam a participar. Segundo ela, é importante que o curso seja realizado com agentes que trabalham com presos, antes de chegar até eles. O que nem sempre é possível. No entanto, ela ressalta que “quando as pessoas se entregam ao processo”, vê “coisas extraordinárias acontecerem”.
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“A experiência que nós tivemos nesses últimos anos, percebemos a gratidão daqueles agentes que fazem os cursos, porque eles dizem que nunca existe uma possibilidade de cuidar deles”, conta ela, salientando que as longas jornadas de trabalho e efetivo reduzido contribuem para a situação de estresse extremo deles. Acostumada a viajar por todo o país, Irmã Imelda conta que em seu último curso, realizado no Pará, com administradores de unidades prisionais, um policial militar da polícia ostensiva acabou confessando a ela atos de extrema violência executados na função. “Ele disse que se soubesse disso antes não teria feito coisas horríveis que ele nominou para mim”. A Irmã evita nomear quais seriam as “coisas horríveis” respeitando o sigilo de seus ciclos de perdão.
Para uma das voluntárias que trabalha com ela, na Pastoral em Passo Fundo, Vera Dalzotto, a iniciativa é a “única saída” para os problemas da superlotação dos presídios no país. A população carcerária do Brasil é hoje a quarta maior do mundo. O país passou da marca de 622 mil presos, número apontado no último Infopen (relatório sobre o sistema prisional), que trabalha com dados de 2014.
“Eu penso que a grande jogada da sociedade está aí, em uma justiça que restaura. Em eu perceber, identificar em mim as minhas violências”, diz Vera. “É uma cadeia. Todos sofrem com isso, como também se beneficiam com uma ação boa”. Na Pastoral, o foco de trabalho de Vera é voltado a situação de mulheres presas, um dos grandes desafios do Brasil atualmente. Entre 2000 e 2015, o número de mulheres presas no país aumentou 567%. A maioria das prisões por causa do tráfico de drogas. Em um alojamento com 30 presas, em Passo Fundo, Vera só conseguiu colocar levar uma delas para o curso da Es.pe.re, mas conta que foi suficiente para ver resultado.
“Antes um conflito que era gerado porque uma usou a vassoura e não colocou no lugar, o que para nós poderia ser um conflito pequeno, mas naquele contexto de confinamento vira algo enorme, a pessoa que participou do curso conseguia mediar”, relata ela. “Depois do curso, [as presas] passaram a fazer acordos dentro do alojamento. O que é muito difícil de acontecer dentro desse contexto. Porque dentro do alojamento tem dependentes químicas, outras com delitos uns mais sérios, outros menos, é um misto muito grande de situações e personalidades. Essa pessoa que fez o curso levou para dentro do alojamento os acordos”.
‘Existe coisa pior do que estamos fazendo?’
O trabalho da Irmã Imelda com a Pastoral começou quase por acaso no início dos anos 1980, em Carazinho, cidade a 48km de Passo Fundo. O presídio local precisava de uma pessoa que fizesse atendimento espiritual para os presos, ela foi e nunca mais parou. A casa onde vive hoje, pertencente a Congregação de Irmãs Notre Dame, fica estrategicamente a poucas quadras de distância do Presídio Regional de Passo Fundo e do Case (Centro de Atendimento Socioeducativo), que abriga adolescentes infratores. “Eu acredito na possibilidade de o ser humano se recuperar. A mentalidade [da sociedade] é ‘bandido bom é bandido morto’, mas são pessoas humanas como eu, que falharam. Eu também falho”, diz.
Em uma sociedade em que 70% da população concorda com essa máxima – de que “bandido bom é bandido morto” – Irmã Imelda se acostumou com o preconceito por ser integrante da Pastoral Carcerária. Uma Pastoral que, nas palavras dela, “não dá status”. “Eu tenho tarja, como os presos também”, ri ao responder à pergunta. “Já me falaram assim: por que não vai trabalhar com criancinha? E eu já trabalhei com criancinha! Não é fácil, mas já pensou abandonar? Eu olhando para as nossas unidades prisionais, eu fico imaginando, como é que nós seremos olhados no futuro. Existe coisa pior do que o que nós estamos fazendo? Não existe coisa pior, gente. Seres humanos confinados. Nem bicho pode ser tratado assim porque vem o Ibama e multa. Mas ser humano pode”.
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Ver até 24 pessoas dividindo um espaço projetado para no máximo 4, vasos sanitários no chão que à noite fazem o esgoto subir nas celas, pessoas com feridas na pele por causa de baratas, piolhos e outros insetos, são cenas de rotina que, para ela, retratam ao vivo como essas pessoas perdem aos poucos sua dignidade. “Eles já se olham e não acreditam [em nada], acham que nasceram pra serem ruins mesmo. Como é que tu vai aguentar 24 horas por dia aquilo?”, questiona.

A Irmã lembra de uma vez, quando trabalhava com um presídio de mulheres, em que algumas presas a convidaram para passar a noite com elas. Outro grupo disse rapidamente que ela não precisava fazer aquilo, “o que elas precisavam mesmo é que ela voltasse todas as semanas”. “Porque é cruel. Você está entendendo o que elas quiserem passar? Queriam me poupar para ter a possibilidade de eu voltar”.
Por outro lado, nas caminhadas rotineiras que faz por Passo Fundo, Irmã Imelda diz que é comum encontrar pessoas que param para cumprimentá-la e agradecer por seu trabalho. Há pouco mais de um mês, ela caminhava por um dos bairros residenciais da cidade, quando um homem trabalhando em uma construção a chamou perto da grade. Disse que a conheceu dentro do presídio e que agora estava tendo uma nova chance e lembrava do que havia aprendido. “Eu tenho muitos casos assim, de pessoas que passaram e que conseguem sair. Precisa ter muita força de vontade. Mas é possível”, afirma.
Solução política é mais presídios
Durante o curso da Es.pe.re, há um momento em que o monitor pede que os participantes lembrem de um momento em sua infância em que viveram algo bom e de outro no qual fizeram algo bom para alguém. Segundo Irmã Imelda, é nesse momento que muitas das pessoas se redescobrem “como boas, na essência”. Em muitos casos, presos manifestam aí a vontade de se encontrar com suas vítimas e pedir perdão.
A Irmã lamenta, no entanto, que a Pastoral Carcerária sozinha não tenha pernas para atender e realizar todos os serviços que isso exige. Em seu núcleo, por exemplo, ela conta com apenas 5 pessoas. “Nós estamos ainda num período de preparação. Para facilitar um ciclo entre vítima-ofensor-comunidade é preciso estarmos muito bem preparados, porque o facilitador precisa estar focado, sem privilegiar um ou outro, permanecer neutro, porque as respostas precisam brotar das pessoas. Tanto da vítima, quanto do ofensor. E a comunidade precisa se responsabilizar junto”, explica ela.
A Irmã diz que também é comum ouvir tanto de presos que participam do projeto, quanto nas visitas de fiscalização que faz a presídios do Rio Grande do Sul, que eles gostariam de ser ouvidos dentro de seus próprios processos judiciais. Enquanto um dos diferenciais da justiça restaurativa é dar voz às vítimas, ela afirma que da forma em que o sistema está montado, os ofensores também são calados. “É um advogado que vai falar por ele, mas ele não pode se expressar. Eu já escutei presos dizer ‘eu queria falar a verdade, mas meu advogado não deixa’”, relata.
O Departamento Penitenciário Nacional (Depen), setor do Ministério da Justiça e Segurança Pública responsável pela administração da questão no território nacional, já vem trabalhando com cursos e atividades que reforçam alternativas da justiça restaurativa em unidades pelo país. Em 2006, um projeto de lei de autoria da sociedade civil foi apresentado à Câmara dos Deputados pedindo a regulamentação da implementação de projetos de justiça restaurativa no país. Em 2010, o PL foi apensado a uma proposta do senador José Sarney (PMDB), que introduzia mudanças no Código Penal, e ainda aguarda parecer de uma Comissão Especial no Senado.
“Hoje o preso está ali, mas amanhã pode não estar. Porque [no Brasil] não existe prisão perpétua, não existe pena de morte, ele é parte de uma sociedade. A responsabilidade pela saída desse preso e a chance de mudança dele é da sociedade”, salienta Vera.
Mas enquanto isso, em meio a crise do sistema carcerário que se prolonga há décadas, o Plano Nacional de Segurança, apresentado pelo ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, que deixou o cargo para assumir como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), nomeado por Michel Temer (PMDB), não cita nenhuma linha sobre projetos de justiça restaurativa. Ao invés disso, o Plano, lançado logo após os massacres ocorridos em prisões no norte do país, dá uma resposta de jogo político à sociedade: incentivos para construção de mais presídios e ampliação da rede prisional federal. O Rio Grande do Sul foi definido como sede de uma das cinco futuras prisões federais.
“Não vai resolver coisa nenhuma. Vão encher esses presídios de novo? Eu sou absolutamente contra e nós da Pastoral somos contra. Construção de presídio, chega. É preciso ter uma política diferenciada, investir na educação, recuperar esses nossos irmãos que são dependentes de drogas. O lugar deles não é no presídio, gente. É tratamento de saúde que precisa”, avalia a Irmã Imelda do alto de quase 4 décadas de experiência. “Estamos nesse modelo desde o século XVIII, está na hora de mudar. Não resolve, não vai recuperar ninguém, pelo contrário”.

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