
(Uma reflexão para o Dia Internacional dos Direitos Humanos – 10 de dezembro
O Brasil enfrenta uma das mais complexas crises sociais de sua história recente: dependência química crescente, pobreza persistente, exclusão social, encarceramento em massa e violação sistemática de direitos humanos. Esses fatores se entrelaçam, alimentando um ciclo de sofrimento que atinge especialmente as populações mais vulneráveis.
Em meio a esse cenário, a Justiça Restaurativa surge como um chamado urgente. Ela não deve ser vista apenas como técnica ou política pública, mas como um projeto ético de humanidade. No entanto, ela só poderá florescer plenamente quando o país enfrentar, sem medo, as estruturas que continuam negando dignidade à sua própria gente.
Este artigo se insere no marco do Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro), lembrando que Justiça Restaurativa e Direitos Humanos caminham lado a lado. Não há possibilidade de reparação social enquanto a injustiça estrutural insistir em permanecer.
Dependência química e os limites da resposta institucional
Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), parte do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD III), estima que 11,4 milhões de brasileiros de 14 anos ou mais já usaram cocaína ou crack ao menos uma vez na vida — cerca de 6,6% da população. Desses, 1,19 milhão são considerados dependentes de cocaína, o que representa 0,72% da população acima de 14 anos.
Os dados do Sistema Único de Saúde (SUS) revelam a dimensão da crise: foram 400,3 mil atendimentos em 2021 relacionados a transtornos por uso de álcool e outras drogas — um crescimento de 12,4% em relação a 2020. Ainda assim, trata-se apenas daquilo que é registrado. Milhares permanecem fora de qualquer radar de cuidado ou acolhimento.
A dependência química, portanto, não é apenas um problema de saúde individual, mas um fenômeno social que se intensifica na ausência de políticas públicas abrangentes, territoriais e comunitárias.
A pobreza como ferida aberta e persistente
Mesmo com políticas de proteção social implementadas nas últimas décadas, o Brasil ainda convive com 59 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, o equivalente a 27,4% da população, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais (IBGE, 2024).
A pobreza vai muito além da renda insuficiente. Ela é a ausência de direitos básicos: moradia adequada, acesso à saúde, educação de qualidade, saneamento, segurança, alimentação e oportunidades reais de desenvolvimento. Lares fragilizados tornam-se mais vulneráveis à violência, ao uso problemático de substâncias e à ruptura de vínculos comunitários e familiares.
Sem enfrentar essa raiz estrutural, nenhum programa de segurança, nenhuma política de saúde e nenhum projeto de pacificação poderá ser plenamente eficaz.
O encarceramento massivo e o impacto nas redes sociais
Segundo dados recentes da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), o Brasil ultrapassou a marca de 900 mil pessoas privadas de liberdade em 2024/2025 — uma das maiores populações carcerárias do mundo.
Cada pessoa presa representa, no mínimo, uma família atingida: filhos, mães, avós, companheiros e comunidades inteiras que sofrem emocional, econômica e socialmente. Utilizando a estimativa simbólica de que “uma pessoa presa afeta três”, chegamos a milhões de vidas impactadas indiretamente pelo encarceramento.
Trata-se de uma teia de sofrimento que não termina nas grades. Ela se espalha pelas casas, escolas, serviços públicos e territórios vulneráveis, alimentando ciclos de exclusão e violência.
10 de dezembro: um chamado para unir Direitos Humanos e Justiça Restaurativa
No Dia Internacional dos Direitos Humanos, é imprescindível reafirmar que não há Justiça Restaurativa verdadeira em um país que segue negando direitos fundamentais. Direitos Humanos não são um discurso utópico; são a base mínima para que qualquer processo restaurativo possa existir. Restaurar exige reconhecer, reparar, responsabilizar e transformar — e nada disso é possível onde a violação é contínua.
A violação de direitos no sistema prisional: feridas que o Brasil insiste em não ver
A situação brasileira é profundamente marcada por violações graves e persistentes, especialmente no contexto prisional. Entre os grupos mais afetados estão:
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Mulheres privadas de liberdade: Enfrentam condições degradantes, como falta de higiene, ausência de assistência ginecológica, carência de absorventes e violência institucional. Muitas dão à luz algemadas, em completo desrespeito à dignidade humana.
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População LGBTQIA+ encarcerada: Sofrem violência física, psicológica e sexual dentro do sistema prisional, são segregadas de forma inadequada e raramente têm seus direitos respeitados.
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Crianças encarceradas junto às mães: Um aspecto particularmente chocante é a presença de crianças vivendo em unidades prisionais, sob o eufemismo de “berçários”. Esses espaços, muitas vezes sem ventilação adequada e sem estímulos, configuram uma forma de confinamento que viola convenções internacionais de proteção à infância.
Como falar em Justiça Restaurativa quando um bebê inicia sua vida em um ambiente de privação de liberdade? Como acreditar em ressocialização quando mães e lactentes vivem em condições indignas, privadas de apoio adequado?
Justiça Restaurativa: cura profunda, não paliativo
A Justiça Restaurativa não pode ser reduzida a encontros pontuais ou discursos de pacificação. Ela exige presença territorial, equipes capacitadas, compromisso com a escuta, enfrentamento das causas estruturais, aproximação com famílias e comunidades, e coragem para tocar onde dói.
Ela começa onde o Estado costuma não entrar: nas periferias, nas escolas vulnerabilizadas, nos presídios, nas unidades socioeducativas, nos abrigos e nos territórios invisibilizados. Sem garantir direitos, justiça e dignidade, a restauração se torna retórica. Para que a Justiça Restaurativa se realize plenamente, é preciso que o Estado assuma a responsabilidade por suas omissões históricas.
Perguntas que o Brasil precisa fazer e que as autoridades precisam responder
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Como restaurar vínculos em um país que insiste em violá-los?
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Como promover paz se ainda negamos direitos básicos?
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Como construir reintegração se faltam água e atendimento médico nas unidades prisionais, se mulheres seguem parindo algemadas, se pessoas LGBTQIA+ são alvo de violência e se crianças crescem atrás de grades disfarçadas?
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Até quando o encarceramento continuará sendo a resposta para a pobreza?
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Quem fiscaliza essas violações e quem responde por elas?
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Quem se responsabiliza pelas vidas destruídas pelas políticas públicas insuficientes?
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Até quando o Estado seguirá negando direitos enquanto cobra responsabilidades?
Essas perguntas não podem mais ser empurradas para o futuro.
Responsabilidade compartilhada e a urgência da ação
O Brasil precisa decidir se continuará fingindo normalidade enquanto milhões sangram ou se enfrentará, com coragem, suas feridas mais profundas.
No Dia Internacional dos Direitos Humanos, lembramos que a paz verdadeira não se constrói sobre exclusão, abandono e encarceramento em massa. Ela se constrói sobre dignidade, justiça, reparação e compromisso coletivo.
Para quem escolheu o caminho da Justiça Restaurativa, este é o momento de agir. É hora de abrir caminhos, fortalecer comunidades, enfrentar injustiças e construir, com coragem e humanidade, uma cultura de paz que seja real, concreta e transformadora.
Porque a Justiça Restaurativa só florescerá plenamente quando a injustiça deixar de ser regra e o respeito aos direitos humanos se tornar a base de toda ação pública.
Vera Dalzotto
Assessora Nacional da Pastoral Carcerária – Justiça Restaurativa