Por Gianfranco Graziola
Se em 2018 celebramos as bodas de ouro, o cinquentenário da segunda Assembleia do Episcopado Latino-americano conhecida como Medellín, 2019 nos traz mais uma data celebrativa, a dos 40 anos da terceira Assembleia do Episcopado Latino-americano que, do lugar de sua realização no México é conhecida como Conferência de Puebla. Convocada pelo papa Paulo VI, confirmada por João Paulo I e sucessivamente por João Paulo II, que participou de sua abertura, realizou-se do dia 27 de janeiro ao dia 13 de fevereiro de 1979.
Na introdução do documento, resultado de intenso trabalho colegial, os bispos afirmam referindo-se a Puebla: “ela é acima de tudo um espírito: o espírito de uma Igreja que se projeta com renovado vigor a serviço de nossos povos cuja realização há de seguir o chamado de vida e transformação de quem colocou seu tabernáculo no coração de nossa própria história”.
Por essa razão, mais que um tratado de teologia, um discurso sistemático e metódico sobre a compreensão da fé, o documento de Puebla tem caráter pastoral, fonte de inspiração para a caminhada da Igreja na América Latina. O mesmo abre pistas, ilumina, denuncia e anuncia, e, sobretudo, incita à criatividade, ao prosseguimento do processo evangelizador indicado em Medellín dentro de suas limitações e preocupação com a ortodoxia, reflete, no seu todo, dez anos de prática de uma Igreja que se definiu pela libertação dos pobres. E justamente aqui se encontra a sua força e autoridade.
Importante em Puebla foi a sua preparação que teve a participação e o envolvimento das bases ao ponto que o resultado final é tudo o que dessa Assembleia esperavam os pobres da América Latina, os agentes de pastoral, os profetas e os teólogos. O documento contém propósitos e incentivos libertários, mas não fornece projetos nem procura detectar os movimentos históricos libertadores que estão em andamento na América Latina. Essa tarefa compete aos cristãos engajados, às Comunidades Eclesiais de Base, às Igrejas particulares.
Novo método
Um dado interessante que sobressai de Puebla é que em relação à vida da Igreja riscos existem. Eles, porém são uma dimensão da fé. A caminhada da fé está sempre envolta em obscuridade e penumbra: “agora vemos em espelho e de maneira confusa” (1Cor 13,12). E é correndo risco que se realiza a entrega pessoal a Deus e ao próximo.
Puebla inaugura e codifica um novo método teológico pastoral na América Latina baseado em três passos: Ver, Julgar, Agir. O documento se desdobra em cinco partes: visão pastoral da realidade da América Latina (primeira parte) – Ver; desígnio de Deus sobre a América Latina (segunda parte) – Julgar; a evangelização na Igreja da América Latina: comunhão e participação (terceira parte); a Igreja missionária a serviço da evangelização na América Latina (quarta parte); opções pastorais (quinta parte) – Agir.
Em tudo isso existe, porém um eixo articulador que perpassa todo o documento que é: a opção preferencial pelos pobres. Ela é o princípio articulador, a alma, o princípio a partir do qual devem ser examinadas e lidas a visão pastoral da realidade, a verdade integral sobre Jesus Cristo e sobre o homem, a Igreja, a evangelização. Neste contexto a pobreza não é a “evangélica”, mas a “anti-evangélica”, que é sinônimo de exploração de opressão, de situação desumana. Trata-se da pobreza de dimensão sociopolítica, isto é, generalizada e estrutural, produto de situações e estruturas econômicas sociais e políticas que dão origem a esse estado de pobreza, embora haja também outras causas da miséria. Eis porque os bispos não receiam afirmar que, na América Latina, “o melhor serviço ao irmão é a evangelização que o liberta das injustiças, o promove integralmente e o dispõe como filho de Deus”.
Por isso “a Igreja condena aqueles que tendem a reduzir os espaços da fé à vida pessoal ou familiar, excluindo a ordem profissional, econômica, social e política, como se o pecado, o amor, a oração e o perdão não tivessem aí relevância”. É por isso que a situação de miséria, marginalização, injustiça e corrupção, que fere o continente latino-americano, exige do Povo de Deus e de cada cristão um autêntico heroísmo no seu compromisso evangelizador, para que se possa superar tão grandes obstáculos.
A partir de Puebla, muda também o entendimento da Doutrina Social da Igreja que jamais tinha usado em relação ao capitalismo tons da mesma severidade demonstrada com relação ao marxismo e socialismo, e avança neste sentido ao descrever o estado de escandalosa pobreza da América Latina onde mostra que essa pobreza generalizada é gerada pelo sistema capitalista. Caracteriza-o como idolatria da riqueza, materialista e praticamente ateu, não receia em denominá-lo como “sistema de pecado”, e a realidade por ele implantada, como “injustiça institucionalizada”. Consequentemente substitui a tradicional linguagem desenvolvimentista e reformista pela linguagem libertadora.
E neste contexto surge a íntima relação entre a evangelização e a defesa dos direitos humanos, políticos e sociais, num continente que vive em “permanente violação da dignidade da pessoa”.
Evangelii Nuntiandi
De fundamental importância nesse momento tem sido a iluminação da Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, o Evangelho ao Povo, expressão do Sínodo de 1974, onde o papa Paulo VI, afirma que a evangelização supõe o conhecimento da realidade e o compromisso do Povo de Deus para superar “a situação de miséria, marginalização, injustiça e corrupção, que fere o continente”. Isso leva a afirmar que, no social, no econômico, no político, existe, pois, um teológico implícito, uma referência ao Reino de Deus e à salvação. Enfim a encarnação se realiza historicamente num contexto sociopolítico de opressão.
Uma releitura e reapropriação de Puebla, não apenas como um fato celebrativo, mas como um caminho de país e continente latino-americano em âmbito sociopolítico eclesial, será uma ótima ferramenta para encarar o momento presente e viver com maior intensidade a Campanha da Fraternidade de 2019: “Fraternidade e políticas públicas” e o seu lema: “Serás libertado pelo direito e pela justiça” (Is 1, 27).
Gianfranco Graziola, imc, é missionário em São Paulo