O testemunho surpreendente do oficial do Exército Romano

 Em Igreja em Saída

Em artigo, Padre Saverio Paolillo (Padre Xavier), missionário Comboniano, integrante da Pastoral do Menor e da Pastoral Carcerária, reflete sobre o mistério da Páscoa de Jesus, tendo em conta a ótica do oficial do Exército Romano aos pés da cruz.
“Na cruz, você [oficial do Exército Romano] viu um Deus ‘impotente’, ‘rejeitado’, crucificado ‘fora dos muros da cidade’, maltratado como todos os que ainda hoje são ‘descartados’ pelos sistemas socioeconômico-religioso; torturado nos porões do palácio da mesma forma como ainda acontece hoje em delegacias e unidades de nosso falido sistema socioeducativo e penitenciário; executado num lixão como os milhares de jovens brasileiros sistematicamente eliminados por serem negros, pobres e moradores de periferias; perseguido e criminalizado como quem não abre mão de promover e defender a vida com dignidade”, consta em um dos trechos do artigo.

O testemunho surpreendente do oficial do Exército Romano 
“O oficial do exército, que estava bem na frente da cruz, viu como Jesus havia expirado, e disse: De fato, esse homem era mesmo Filho de Deus!” (Mc 15,39)
Prezado oficial do exército romano,
Você nos colocou em apuros. Poderia ter ficado calado, limitando-se a cumprir seu dever como seus companheiros. Um “bom soldado” obedece às ordens sem questioná-las. Você tinha apenas a tarefa de garantir a execução do condenado, sem se deixar afetar pelos acontecimentos. A exemplo de seus colegas de farda, você recebera a missão de torturar e maltratar impiedosamente o réu para servir de lição para os “baderneiros” e desestimular qualquer outra tentativa de colocar em risco a “segurança nacional”. Os “regimes de exceção”, como aquele a que você estava submetido, não toleram questionamentos e gostam de criminalizar quem ousa contestar a repressão e reivindicar a garantia dos direitos humanos.
A ordem que você recebeu foi de matar sem compaixão. Mas você não resistiu. Deu espaço aos seus sentimentos. Correu risco. A manifestação pública do próprio ponto de vista, sobretudo quando se trata de apoiar aqueles que, como Jesus, colocam em discussão os sistemas políticos, econômicos e religiosos que pisoteiam a dignidade humana e estão a serviço da cultura da morte, é considerada uma transgressão imperdoável nos regimes totalitários. Posturas como essas não têm “direito de cidadania” no quartéis e são incompatíveis com a carreira militar. Você chegou perto da corte marcial e do “pelotão de fuzilamento”. Mesmo assim, teve a coragem de quebrar o silêncio imposto pela cultura da obediência cega para exercer o direito de expressar seu ponto de vista. Pior ainda, você inventou de dar uma de teólogo, logo você, um homem rude, um pagão que de Deus não entendia absolutamente nada.
Acostumado, como você era, aos suntuosos cultos ao imperador e à adoração a divindades poderosas, de donde você tirou essa ideia que aquele homem acabado, condenado à morte por blasfêmia, “era mesmo Filho de Deus”? O que o levou a enxergar naquela cena de total fracasso a revelação do Absoluto? O que você viu para chegar a acreditar que aquele indivíduo que morria como um bandido da pior espécie, pendurado nu ao mais vergonhoso instrumento de tortura, fosse o próprio Deus? Você se deu conta da encrenca em que colocou todos nós que aceitamos o desafio de crer em Deus? Aquela sua sentença, lançada de repente entre insultos e palavrões, constitui o ponto final de qualquer nossa busca. Com aquela frase, você ditou o último capítulo de nossos tratados teológicos. A partir de suas palavras, qualquer tentativa de dar um rosto a Deus só pode ter esta conclusão.
Deus está aí, pendurado numa cruz. Quem quiser conhecê-lo não tem por onde correr: deve encarar as trilhas do Monte Calvário, deter-se na sombra da cruz e fixar o olhar no Crucificado. O verdadeiro semblante de Deus e, de consequência, o autêntico rosto do ser humano, criado à sua imagem e semelhança, é precisamente aquele do Servo de Javé pregado na cruz, “desprezado e rejeitado pelos homens, homem do sofrimento e experimentado na dor” (Is 53,3) “Eis o Homem” (Jo 19,5): está aí, na Cruz, o verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Coube a você a responsabilidade de desvendar o “segredo messiânico” que Marcos manteve escondido ao longo de seu Evangelho. Foi dado justamente a você o privilégio de revelar a verdadeira identidade de Jesus e a sua maneira toda original de ser Messias.
Xeque-mate nos teólogos de todos os tempos, enrolados na rede de seus dogmas, demasiadamente convencidos de suas teorias para se deixarem surpreender e encantar pelo Mistério. Cansado daqueles que procuram enquadrá-lo em seus conceitos e falam dele com ar de professor, Deus escolheu um “leigo” como você para se tornar conhecido.
Xeque-mate nos sacerdotes que pretendem ter a exclusiva sobre Ele e o manipulam de acordo com seus interesses. Farto daqueles ministros de culto que, no lugar de aproximá-Lo do povo, como Ele deseja, torná-No inacessível com a imposição de uma longa lista de regras e rituais, Deus quis que fosse você, um pagão, “um de fora”, para dar testemunho da verdade sobre ele e revelar seu amor misericordioso.
Xeque-mate em todos aqueles que estavam esperando um Messias forte e poderoso, que vinha impor, pela força das armas, o predomínio do povo escolhido. Destituído de qualquer forma de poder, servo sofredor, alérgico às armas e obstinado construtor da paz, Deus escolheu logo você, um militar de carreira, um especialista em poder, armas e defesa do orgulho nacional, para apresentá-lo ao mundo como o Deus frágil, desarmado, servo e solidário com os últimos.
Xeque-mate nos Seus próprios amigos: em Judas que o traiu, em Pedro que o renegou e nos outros que, na hora do sufoco, se deram à fuga. Decepcionado com suas expectativas, seus delírios de grandeza, a busca obsessiva do poder e o desejo de carreira, Deus escolheu você, um “inimigo”, para mostrar que não veio para mandar e desmandar, mas para servir e dar a vida.
A você, homem comum e, ainda mais, descrente, foi concedida a oportunidade de entender que a cruz é a revelação paradoxal do Deus cristão. Nesse cenário montado pela crueldade humana onde você foi recrutado para interpretar cenas de extrema violência, aquele homem com a aparência de falido, julgado sumariamente, coroado com uma coroa de espinhos, coberto de cusparadas e insultado pelo povo, descartado para favorecer Barabás, bofetado e abandonado por todos, surpreendeu você com um papel que o desconcertou e, ao mesmo tempo, o deixou fascinado.
O que você viu n´Ele para chegar à sua conclusão?
Você foi testemunha de muitas crucificações. Quem sabe quantas vezes já fora chamado para escoltar até o patíbulo os “meliantes” condenados à pena capital. Sem contar aqueles que você executou em supostos atos de resistência. Contudo, esta crucificação pareceu-lhe diferente. Alguém morrer “desse jeito” nunca você tinha visto. Uma lança muito mais afiada daquela que perfurou o lado do corpo de Jesus transpassou sua armadura e tocou seu coração.
Em vez da habitual cena macabra de uma execução, você viu um homem inocente morrer sem amaldiçoar seus algozes. Você viu um homem inocente morrer invocando o perdão de Deus sobre todos aqueles que o torturavam. Você viu um homem inocente sendo assassinado brutalmente sem prometer vingança e sem que o ódio tomasse conta de seu coração. Você viu um homem inocente morrer oferecendo sua vida para a salvação de todos, até mesmo de seus inimigos. Você viu um inocente renunciar a si mesmo, se deixar espoliar de suas prerrogativas divinas, desistir de seus privilégios e doar-se incondicionadamente a todos com um amor que quanto mais se oferece mais gera vida. Com seus próprios olhos, você viu no Crucificado um amor tão “louco” que lhe pareceu humanamente impossível. Permanecer na Cruz até o fim, sem aproveitar de seus poderes extraordinários para se safar e morrer por amor não são atitudes ao alcance de qualquer um. O ser humano, impulsionado pelo instinto de sobrevivência, faz de tudo para “colocar a salvo sua própria pele”. Só Deus é capaz de se colocar em apuros até arriscar sua pele para salvar a nossa. Somente Deus e apenas aqueles que inspiram sua vida n´Ele são capazes de colocar em risco suas vidas para amar até as últimas consequências. Foi este amor dirigido também a você, mesmo a você e apesar de você, que o deixou transtornado e lhe permitiu captar com o coração uma realidade que os olhos não conseguiriam enxergar nunca. Foi amando-o que Deus o evangelizou.
Um deus poderoso teria sido óbvio demais. Não teria provocado nenhuma surpresa em você. De deuses dotados de poderes extraordinários você conhecia aos montes. Na Cruz, ao contrário, você encontrou um Deus fraco, frágil, nu, sem efeitos especiais, que não se impôs com o uso da força, não inventou moda para se tornar atrativo, não realizou shows para seduzir multidões e não foi atrás de sólidos argumentos para ser convincente. Na Cruz, você viu o rosto do Pai misericordioso, cuja alegria é a recuperação dos pecadores, a libertação dos oprimidos, a vida dos mais pobres e a solidariedade com os marginalizados. Na Cruz e pela Cruz, você não se sentiu desprezado e condenado, apesar de toda a maldade de que você estava sendo cúmplice, mas se sentiu amado. Na Cruz, você conheceu um Deus que não pensa em si mesmo e não quer nada para si, mas deseja a sua e a nossa felicidade. Na cruz, você conheceu um Deus que quer acabar com tudo aquilo que arranca a dignidade e a vida das pessoas, não através de medidas extraordinárias, mas indo em direção às “periferias existenciais”, mergulhando no sofrimento daqueles que são descartados pela sociedade, compadecendo-se com a situação dos empobrecidos, compartilhando seus desafios, tornando-se pobre com os pobres, sofrendo o mesmo processo de criminalização de quem assume a causa dos oprimidos e persiste em defender os direitos dos excluídos, percorrendo com eles e ao passo deles o caminho difícil, mas esperançoso da libertação.
Na cruz, você viu um Deus “impotente”, ”rejeitado”, crucificado “fora dos muros da cidade”, maltratado como todos os que ainda hoje são “descartados” pelos sistemas socioeconômico-religioso; torturado nos porões do palácio da mesma forma como ainda acontece hoje em delegacias e unidades de nosso falido sistema socioeducativo e penitenciário; executado num lixão como os milhares de jovens brasileiros sistematicamente eliminados por serem negros, pobres e moradores de periferias; perseguido e criminalizado como quem não abre mão de promover e defender a vida com dignidade. No Crucificado, você encontrou um Deus que conhece a dor inocente por tê-la padecida em sua própria pele e, do alto da cruz, solidariza com todos os crucificados de todos os tempos, permanecendo ao lado deles até o dia em que todos eles serão despregados de suas cruzes e conquistarão o direito a viver a vida em plenitude.
No Crucificado, você teve uma prova inequívoca da solidariedade de Deus. Pode constatar que Deus não é poder que oprime e mata, mas a plenitude do amor que liberta e dá vida. A cruz lhe apareceu como a certificação da qualidade do amor de Deus, aquele mesmo amor que, antes de qualquer coisa, surpreendeu você, o deixou desarmado e o envolveu com absoluta gratuidade.
Graças a esse seu testemunho, sabemos agora que Deus ama de verdade, que é capaz de tudo para salvar-nos, que não está só na beleza, nas maravilhas da criação, no esplendor de nossos templos, na riqueza de nossas liturgias… mas especialmente no sofrimento, na aflição, no rosto desfigurado das vítimas de todos os tempos, sempre pronto a estender a mão e oferecer o perdão àqueles que caem com frequência, que custam a crer e têm dificuldade a viver com coerência.
À luz do Gólgota e do testemunho daquilo que você viu, agora sabemos que, para ser discípulos de Jesus, é preciso se deixar regenerar pelo amor que brota de suas chagas, carregar a cruz que pesa nos ombros dos pobres e lutar para erradicá-la, porque o filho de Deus veio entre nós e morreu na Cruz para que todos tenham vida em abundância.
Seguir Jesus é participar de sua vida testemunhando seu amor misericordioso que encontra sua máxima expressão na Cruz de Jesus.
Ser cristão significa estar com Deus, amar como ele ama e se posicionar do lado dos oprimidos.
Obrigado pelo seu testemunho. Interceda por nós, porque, fixando os nossos olhos na cruz e nos crucificados ao redor do mundo, possamos nos reconhecer em Sua maneira de ser, de amar e servir.
Que essa conversão seja a marca registrada desta nossa Páscoa. Queira Deus nos conceder a graça de um dia, alguém, olhando para o nosso jeito de viver e morrer, poder sussurrar de cada um nós: “Esse/a de verdade era un/a filho/a de Deus!”.
Saudações a todos e saudades de todos vocês.
Deus diga bem de todos nós.

Padre Saverio Paolillo (Padre Xavier), missionário Comboniano, integrante da Pastoral do Menor e da Pastoral Carcerária e atuante no Centro de Direitos Humanos Dom Oscar Romero – CEDHOR – Paraíba.

E-mail: saverio.comboniano@gmail.com

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