Tortura prisional no Brasil é política de Estado, constata Pastoral Carcerária em estudo

 Em Combate e Prevenção à Tortura

“A experiência prisional é uma experiência de tortura. A tortura não é simplesmente um ato, é um sistema, que não pode ser enfrentado apenas na perspectiva penal”
DSC_8426_foto Luciney MartinsEsse foi um dos apontamentos do advogado Paulo Cesar Malvezzi Filho, assessor jurídico nacional da Pastoral Carcerária, que coordenou os trabalhos de elaboração do relatório “Tortura em tempos de encarceramento em massa”, apresentado na quinta-feira, 20 de outubro, no auditório Flamínio Fávero, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Além de Paulo, compuseram a mesa de lançamento do relatório, o Padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária; Maria Gorete Marques de Jesus, do Núcleo de Estudos da Violência da USP; Rodolfo de Almeida Valente, advogado e ex-assessor jurídico da Pastoral Carcerária no Estado de São Paulo; e a Prof. Dra. Mariângela Tomé Lopes, da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que mediou a atividade.
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O estudo da Pastoral Carcerária, feito com o apoio da Oak Foundation e do Fundo Brasil de Direitos Humanos, mostra o resultado de dois anos de acompanhamento e análise de 105 casos de tortura registrados em 16 estados e no Distrito Federal e que foram denunciados às autoridades pela Pastoral.
Torturas sistemáticas e obscuras
Paulo Malvezzi enalteceu a coragem dos presos e de seus familiares que denunciaram os casos de tortura, dada a vulnerabilidade em que estão no sistema prisional, e lembrou que o relatório é somente uma amostragem perto da expressiva quantidade de casos de tortura que acontecem nas prisões do país e que não chegam ao conhecimento público.
O advogado explicou que as 105 denúncias foram recebidas por meio de um formulário disponível no Site da Pastoral Carcerária e também pelos integrantes da Pastoral, em conversas com os presos, durante visistas as unidades prisionais.
Paulo detalhou, ainda, que todas as denúncias foram oficializadas às autoridades dos poderes Executivo e Judiciário as quais competia alguma iniciativa, foram feitas cobranças periódicas de algum posicionamento, mas que em nenhum dos 105 casos houve responsabilização dos agentes torturadores, o que indica que o sistema de Justiça (Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) é corresponsável pela tortura difundida nas prisões brasileiras.
“O Ministério Público tem, com certeza, o pior índice de atuação. Somente em 1% dos casos atuou de forma adequada. No caso do Judiciário esse percentual foi de 6% e na Defensoria foi de 10%, muito pouco”, lamentou Paulo Malvezzi.
Dados da Barbárie
Do total de casos relatados, 66% referem-se a expediente de tortura física, mas, segundo Paulo, “os casos não se resumem a uma única violação, sempre há uma articulação de violências em quase todos eles”.
O estudo também indica que embora o número de mulheres encarceradas no país corresponda a 5,9% da população prisional, elas perfizeram mais 40% dos casos analisados.
O relatório cita, ainda, as “evoluções” dos mecanismos de tortura adotados pelos agentes do Estado, como os grupos de intervenção, que entram nas unidades prisionais sem identificação para “conter” de maneira violenta as rebeliões e motins dos presos; o aumento do uso de armas não letais, como spray de pimenta, que deixa marcas quase imperceptíveis no preso torturado; e os castigos coletivos, que fazem que uma conduta supostamente indevida de um encarcerado penalize todo um grupo de presos, que acaba penalizado com a retirada de direitos por um período, com o banho de sol.
Quanto à atenção da Justiça aos casos de tortura, o relatório mostra que 1/3 das vítimas citadas não foram ouvidas por juízes, defensores ou promotores públicos; 100% dos exames de corpo de delito foram realizados fora dos padrões estabelecidos e em mais de 70% dos casos, testemunhas chaves do episódio de tortura não foram ouvidas. Além disso, os presos que denunciam as situações recorrentemente sofrem retaliações dentro do sistema prisional, têm seus relatos desqualificados enquanto há supervalorização das versões apresentadas pelos agentes do Estado.
Diante dos dados, Paulo foi enfático: “Não há forma de reparar esse sistema. A tortura é estrutural no sistema. Precisamos percorrer um caminho de desencarceramento dessa população. Você estando preso é quase certeza de que será torturado”.
Análises
DSC_8414_foto Luciney Martins
Para o Padre Valdir João Silveira, a sociedade brasileira não tem ciência do que se passa nas prisões, mas precisa conhecer, pois não cabe a indiferença diante dos fatos. “Seremos condenados pelas gerações futuras por aceitarmos conviver harmoniosamente e pacificamente enquanto existem irmãos nossos enjaulados, em condições piores que as dos animais”, enfatizou.
Ainda segundo o Padre, “o sistema prisional é feito para destruir a pessoa. Quem comete um delito aqui fora é preso, mas o sistema prisional comete delito contra os presos todos os dias. Então, qual é o crime organizado que mais mata no Brasil?”, indagou.
Maria Gorete Marques de Jesus enalteceu a Pastoral Carcerária pelo comprometimento na luta permanente pelo combate à tortura e comentou que o relatório mostra, com uma linguagem acessível e fundamentada, como “a tortura e o cárcere são formas estruturantes do nosso sistema punitivo” e de como o sistema busca ocultar o que acontece para não responsabilizar o Estado como o protagonista desses casos. Para ela, é urgente descontruir a ideia de que a punição com prisão é um mecanismo de justiça.
Rodolfo Valente, ao citar outros casos em que claramente o Estado agiu com torturador dos presos, mas não foi responsabilizado, ressaltou que há uma completa barbárie na administração penitenciária, mas que a tortura não resulta da maldade ou bondade de quem a pratica em no nome do Estado, mas é fruto da histórica luta de classes. “A tortura não cria só o sujeito rebaixado. Ela constrói os juízes que permitem a morte. É importante pensarmos em que perspectiva construiremos essa luta. Não mais deve ser uma luta para melhorar os presídios, nem para melhorar o Direito, mas sim uma luta pelo fim das prisões, pelo fim das classes sociais”.
No fim do encontro, foi reforçado o compromisso da Pastoral Carcerária Nacional por um mundo sem prisões, livre de qualquer modelo de encarceramento, propósito que está detalhado na Agenda Nacional pelo Desencarceramento.

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