Na noite do dia 17, a Pastoral Carcerária Nacional fez uma live de lançamento do relatório Vozes e Dados da Tortura em Tempos de Encarceramento em Massa.
Participaram do evento Mayra Balan, assessora jurídica da PCr; Carolina Dutra, do setor jurídico da PCr; Ir. Petra Pfaller, coordenadora nacional da PCr; Elaine da Paixão, da Frente Estadual pelo Desencarceramento da Bahia; e Ana Claudia, agente da PCr e integrante da coordenação estadual do Mato Grosso.
A live foi marcada por reflexões sobre o sistema prisional e pelo levantamento de dados do relatório, que sustentaram argumentos e casos trazidos pelas convidadas.
Elaine costuma dizer que não conhecia a violação que o Estado cometia contra os familiares. “A sentença não pesa só em quem está detido, atinge pais, parceiros e filhos”, ela afirma tirar forças para continuar na luta através de outros familiares e das redes de apoio.
Ela também aponta as diferenças entre o sistema prisional feminino e o masculino. Reflete que mulheres encarceradas não recebem visitas porque a maioria dos seus companheiros já estão presos e suas mães estão cuidando dos netos. “Os homens têm mulheres para visitá-los, a exclusão é diferente”.
Para Elaine, não voltar com as visitas depois da pandemia foi algo cômodo, facilitando burlar a lei de execução penal. “Quando voltaram as visitas nós não reconhecemos os nossos. Pessoas fracas e com tuberculose, tiveram mães que relataram não reconhecer os próprios filhos, eles que as reconheceram”.
Ana Claudia acredita que sua motivação vem de Cristo e explica que o MT é lar de um povo religioso, que devem servir a missão de visita aos encarcerados, que nasceu junto ao cristianismo. “Nós vemos nosso Cristo morto por tortura na imagem dos nossos irmãos e irmãs encarceradas”.
A agente conta sobre a Força Tarefa de Combate à Tortura no estado. “O MT é um estado mais conservador, tivemos um processo de militarização muito forte nos últimos anos, dentro da polícia, política, nos espaços de controle social. Neste cenário, recebemos uma enxurrada de denúncias extremamente graves”.
A Força Tarefa, que realiza inspeções nos presídios, feitas pela Corregedoria do TJ e a Defensoria do Estado, contam com a participação de juízes, defensores e uma entidade da sociedade civil, que acompanha os processos.
São feitos levantamentos sobre questões de violência e estruturais, como falta de água, alimentação e remédios. Os casos mais graves, como flagrantes de tortura, são conduzidos de imediato pela defensoria e pelos juízes.
Os integrantes participam do processo de triagem, passando por todas as celas sem a supervisão da polícia penal, e sim de uma polícia externa.
Mayra Balan acredita que a pastoral chama os jovens. “A idéia de visitar as pessoas presas vem de um progressismo que é jovem”, mas destaca que a alta participação de pessoas mais velhas revela que essa parte da população também preza pelos direitos humanos.
A advogada explica que depois da pandemia foi adotado um encaminhamento online que trouxe uma taxa de respostas maior que o encaminhamento físico, mas diz não estar feliz com as ações tomadas pelas autoridades.
“O Ministério Público recebe a denúncia e envia para o diretor da unidade prisional, e esse diretor responde que isso não ocorre. Em nenhum momento os presos foram ouvidos, não foi feito exame de corpo de delito ou inspeção in loco”.
Mayra acredita que as denúncias provocam os órgãos a estarem nos presídios e observar essas situações. “Nós temos documentado que avisamos que estava acontecendo um princípio de motim, falta de água ou de comida. Em alguns lugares, autoridades competentes visitam e fazem algo com as nossas denúncias”.
Mas ela percebe que o Estado não tem nenhum interesse em lidar com as denúncias de forma efetiva e tratar as pessoas com dignidade. “Quem está preso são pessoas pretas, pobres e periféricas, que são feitas pela sociedade para serem marginalizadas. É uma dura realidade, mas precisamos lidar e lutar contra ela”.
Carolina Dutra confessa sentir comoção trabalhando na pastoral. “Eu me vejo muito nas pessoas encarceradas, acho que tem uma empatia nas pessoas da mesma cor que eu, pretas. Poderia ser eu, presa no lugar delas”.
O relatório mostra que em 2022 houve um aumento de 37% nas denúncias recebidas pela PCr. Carolina afirma que as denúncias em que não houver identificação de quem denuncia são muito maiores.
“Existe muito medo das pessoas que estão denunciando. Nós entendemos que a partir do momento em que a pessoa denuncia, ela fica suscetível à represália, e o familiar que está preso pode sofrer com agressões e outros tipos de violência”.
Sobre as ocorrências mais comuns, Carol coloca a falta de assistência material em primeiro lugar, o que inclui a insalubridade de alimentação. Há denúncias de marmitas com pedaços de vidro e alimentos crus que podem resultar em problemas de saúde. A falta de itens de higiene básica, como absorventes, papel higiênico, pasta de dente, e também há pessoas que não possuem colchão, travesseiro ou roupas.
Outra questão é a falta de assistência médica. “Uma pessoa que não se alimenta, ou então que come caco de vidro, comida crua e estragada, logo vai ficar doente, e não tem um médico na unidade. Uma negligência vai resultar em outra negligencia”.
O relatório também descreve muitas denúncias de agressões físicas e verbais aos presos, e agressões verbais contra os familiares que vão realizar a visita.
Ao analisar os dados do relatório, as advogadas apontam a discrepância entre São Paulo, Minas Gerais e Goiânia com os outros estados, mas isso não indica que os locais são mais torturantes ou têm mais violações.
“Toda prisão é torturadora da mesma forma, não existe um presídio que seja mais digno, nenhuma prisão é digna para ninguém. SP, MG e GO são estados muito populosos e que têm mais conhecimento sobre a pastoral. Há várias variantes”, esclarece Mayra.
Sobre os resultados das denúncias, apesar das respostas rápidas por parte dos órgãos responsáveis, algumas são apenas para informar que um processo foi instaurado. Em um dos casos, receberam uma resposta que o órgão de execução penal acusava a pastoral de denúncia irresponsável. “Disseram que não havia possibilidade de ouvir todos os presos. Recebemos respostas rápidas, mas não soluções”, afirma Mayra.
Carol finaliza o resumo do relatório afirmando que a maioria das denúncias recebidas são de homens. As mulheres cis e a população LGBTQIA+ acabam abandonadas e silenciadas ao serem presas, não conseguem denunciar as próprias violências sofridas, e seus familiares não conseguem acessá-las dentro do sistema prisional.
“A partir da visita do familiar, ele consegue ter noção da realidade lá dentro, para depois denunciar. Se o familiar não visita quem está encarcerado, a denúncia não chega para nós. Essa diferenciação de gênero explicita o machismo”.
Ir. Petra encerrou a live convidando os interessados a ingressarem na Pastoral Carcerária. Ela reforça que a visita ao cárcere não é fácil e sabe que o ambiente é violento, mas afirma que visitar e acolher familiares também é uma ação profética.