A tortura no Brasil não surgiu com a ditadura civil-militar. Ela deita raízes profundas em nosso passado, constituindo-se como um verdadeiro instrumento histórico de controle de populações marginalizadas, e que ameaçam o status quo. Do pelourinho ao DOI-CODI, do camburão aos presídios, a tortura permanece absolutamente atual e em constante transformação.
No cárcere, essa prática abjeta é uma ferramenta de gestão, utilizada para disciplinar a crescente população aprisionada, por meio da violência e ameaça, e como forma de agravar ilegalmente a pena aplicada pelo judiciário.
Conforme amplamente verificado na experiência prática da Pastoral Carcerária, pelos relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNCPT), e do Relator Especial da ONU sobre o tema, a tortura nos presídios brasileiros é endêmica, e os avanços institucionais recentes, como aprovações de leis que criminalizam a prática e instituem políticas para sua prevenção, bem como a estruturação de órgãos com competência para fiscalizar espaços de privação de liberdade, como os Mecanismos nacional e estaduais, e as Defensorias Públicas, em nada diminuíram sua ocorrência.
Além das sessões de espancamento, afogamento, eletrochoques e sufocamento, que permanecem extremamente presentes no cotidiano prisional, a ausência de serviços básicos, a hiperlotação das celas, a alimentação deficiente, a insalubridade do ambiente, os transportes violentos, os regimes de isolamento, os surtos viróticos e bacteriológicos, os procedimentos disciplinares humilhantes, as revistas vexatórias, os partos com algemas, entre tantas outras situações rotineiras que provocam extremo sofrimento físico e mental, mostram que a tortura já não se aplica apenas de forma individualizada e metódica. Ela também se constitui como um conjunto torturante de procedimentos e condições degradantes de aprisionamento, que formam o próprio ethos desse sistema.
Nessa perspectiva estrutural de tortura, o aumento exponencial de 267,32% da população prisional nos últimos 14 anos, ancorado no encarceramento massivo e seletivo de pretos, jovens e periféricos, e numa desastrosa política punitivista e de guerra às drogas, nos leva a conclusão inequívoca de que nunca tantas pessoas foram objeto de tortura no sistema prisional brasileiro, e que as atuais políticas de prevenção e combate dessa prática fracassaram de forma retumbante.
Sem desconsiderar completamente o valor e utilidade do que já foi feito, é urgente que os movimentos e organizações da sociedade civil, que efetivamente lutam pela erradicação da tortura, compreendam que esse objetivo jamais será alcançado sem a erradicação do próprio sistema carcerário, que se estrutura invariavelmente em torno de práticas torturantes. Lutar pelo desencarceramento, portanto, é também lutar contra a tortura e a barbárie que esta prática encarna.
Paulo Cesar Malvezzi Filho
Assessor Jurídico da Pastoral Carcerária Nacional
*Artigo publicado na edição de agosto da Revista Mundo e Missão
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