MULHERES, PRISÕES E CUIDADO: COMO O FIM DAS SAÍDAS TEMPORÁRIAS AMEÇA O COMBATE À TORTURA NO CÁRCERE

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Na semana passada, a Pastoral Carcerária Nacional protocolou pedido de ingresso como Amicus Curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 7.672/DF que, proposta pela Associação Nacional de Defensores e Defensoras Públicas frente à Lei nº 14.843/2024, trata da inconstitucionalidade do fim das saídas temporárias de pessoas presas e da exigência da realização do exame criminológico como requisito obrigatório para a progressão de regime.

A saída temporária é instrumento fundamental do regime semiaberto, auxiliando no desenvolvimento da autodisciplina da pessoa presa, na manutenção e reinserção da pessoa no convívio familiar e social e, também, na própria gestão prisional – já que a mera existência desse instituto incentiva o cumprimento das regras da prisão a fim de que, em algum momento, a pessoa presa possa fruir desse direito. Para além disso, sabe-se que o sistema penitenciário brasileiro vive um contexto de encarceramento em massa, contabilizando 832.295 pessoas privadas de liberdade e sob custódia das polícias, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Publica de 2023. Assim, para além das finalidades supramencionadas, a discussão do instituto das saídas temporárias perpassa, necessariamente, o estado de coisas inconstitucional decorrente da violação generalizada de direitos fundamentais vigente nas unidades prisionais do Brasil.

A Pastoral Carcerária Nacional atua, há mais de 50 anos, denunciando violações prestadas no sistema prisional brasileiro, sendo que, de acordo com o relatório “Vozes e Dados da Tortura”, publicado em 2023, quase metade (48,43%) dessas denúncias partiram de familiares de pessoas presas. As informações notificadas, por sua vez, não raramente advêm de indivíduos contemplados pelo direito à saída temporária, visto que as pessoas presas, quando no seio familiar, sentem-se suficientemente seguras para explicitar as torturas ocorridas nas unidades prisionais. 

Aqui, a questão de gênero ganha centralidade à medida que a presença de mulheres no sistema prisional não se refere somente àquelas que já estão privadas de liberdade, mas, essencialmente, às que transitam pelo cárcere em visitas e às que têm seus vínculos afetivos mobilizados e capitalizados por agências estatais. No intuito de assegurar a manutenção da vida de seus parentes privados de liberdade, o trabalho de cuidado desenvolvido por familiares mulheres é, no limite, a força que abastece as unidades prisionais do país. 

Diante de tamanha dependência entre homens privados de liberdade e suas mães ou companheiras, bem como da permeabilidade do cárcere e do estabelecimento de relações dentro e fora dos muros, o peso da responsabilidade pela pessoa presa é sentido pelas mulheres – seja pela transferência de todos os cuidados envolvidos à pessoa privada de liberdade, seja pelas obrigações de vida cotidiana que passam a recair integralmente sobre elas, tendo em vista que não podem mais contar com seus companheiros e familiares encarcerados. 

Nesse ínterim, as violências e violações de direitos ocorridas no cárcere ultrapassam os corpos vitimados e invadem, invariavelmente, a vida cotidiana das mulheres que se relacionam com pessoas presas. Essas repercussões são experimentadas e enfrentadas a partir de linhas de raça, de classe social e de gênero, visto  que são as mulheres que ficam incumbidas de reconstruir as vidas e os vínculos afetivos tolhidos, seja a partir dos agenciamentos na vida doméstica ou da produção de resistências no mundo público.

O protagonismo das familiares de pessoas presas, enquanto denunciantes da tortura vivenciada no cárcere, assim como as recorrentes denúncias ocorridas em meio às saídas temporárias, escancaram a importância da manutenção dos vínculos familiares no acompanhamento das condições de vida de pessoas privadas de liberdade. Nesse sentido, buscamos, enquanto Pastoral Carcerária Nacional, contribuir para o julgamento da “ADI das Saidinhas”,  mantendo-nos ativos na luta pelo desencarceramento e, afinal, pelo mundo sem cárceres.

BIBLIOGRAFIA:

https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf 

https://carceraria.org.br/combate-e-prevencao-a-tortura/pastoral-carceraria-lanca-relatorio-vozes-e-dados-da-tortura-em-tempos-de-encarceramento-em-massa 

https://static.poder360.com.br/2024/05/nota-DPU-saidinha-27mai2024.pdf 

https://doi.org/10.22409/antropolitica.i.a56478 

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