Em entrevista à Pastoral Carcerária, Monique Cruz, pesquisadora da Justiça Global, crítica as diretrizes do Plano Nacional de Segurança Pública,
lançado em janeiro pelo Governo Federal, ressalta as propostas da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, e enfatiza que “o que resolve essas questões é adoção de fato de políticas voltadas ao desencarceramento e a garantia da cidadania das pessoas, dentro e fora dos muros da prisão. Os grandes responsáveis pelo encarceramento em massa no Brasil sequer são citados no plano: o racismo institucional e a política de drogas brasileira”.
Qual a opinião da Justiça Global sobre o Plano Nacional de Segurança Pública?
Monique Cruz – A Justiça Global percebe essa “criação de um plano nacional de segurança” como uma resposta paliativa a uma ebulição social de opiniões e críticas acerca do sistema carcerário brasileiro. O plano apresentado por Alexandre de Moraes não tem informações consistentes, os dados são desatualizados, as “soluções” são pensadas de cima para baixo dentro da organização das unidades federativas de modo a sequer demonstrar conhecimento sobre as realidades dos estados, quiçá dos municípios, o que torna o plano quase que fantasioso. Além disso, é possível perceber a partir das declarações do ministro e o que foi apresentado, que o plano é atravessado de forma profunda por uma lógica bélica e de controle das populações, que a nosso ver é utilizada para justificar (ainda que de forma frágil) o gasto público com armas e tecnologia de vigilância. Diante uma conjuntura adversa em que a população está a cada dia mais alijada de direitos sociais, onde a violência estatal é regra e o “tráfico de drogas” se tornou o inimigo número um do Estado brasileiro, o gasto público voltado para mais punição, será mais facilmente aceito pela população. O plano tem um caráter fortemente conservador. Se verificarmos mais a fundo as informações contidas na apresentação do ministro, percebermos como há, por exemplo, uma ideia retrógrada de intervenção nas famílias (houve apresentação de um ponto do plano chamado “programa família forte” que trata de “estabelecimento de regras e rotinas de convivência”), assim como um forte caráter racista e criminalizador da juventude negra. O plano prevê o “apoio e qualificação para o trabalho de jovens negros”. Então, política pública de segurança pública é colocar a juventude negra para trabalhar? Me parece que o retrocesso político no país foi maior do que pensávamos, não voltamos décadas, voltamos séculos, onde a população negra era considerada patologicamente criminosa. São muitos absurdos.
Há algo de positivo? O que há de negativo?
Monique Cruz – Impossível pensar algo positivo dentro de um plano que – se houvesse aplicabilidade a partir do que foi apresentado – prevê mais punição, criação de vagas, consequentemente, aumento no encarceramento, que é um dos grandes problemas que assola o Brasil hoje. Algumas das propostas poderiam ser úteis, mas que não foram criadas pelo plano. Por exemplo, penas alternativas, já existe em lei; controle de armas, que é uma prerrogativa de qualquer Estado nacional, enfim, são propostas que são repaginadas ou repetidas, mas que não são colocadas em prática por escolha política daqueles que detém o poder no país. Mais punição não resolve o problema da criminalidade. Muitos de nós, pesquisadores do tema, vimos apontando isso por inúmeros vieses. O plano, de maneira geral, traz um viés conservador, punitivista, encarcerador, criminalizador e bélico.
Resolve o problema carcerário, da superlotação, do aprisionamento em massa e da violência?
Monique Cruz – Para nós é explicito que não resolve. O que resolve essas questões é adoção de fato de políticas voltadas ao desencarceramento e a garantia da cidadania das pessoas, dentro e fora dos muros da prisão. Os grandes responsáveis pelo encarceramento em massa no Brasil sequer são citados no plano: o racismo institucional e a política de drogas brasileira. O racismo é uma prática sistêmica no Brasil. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Defensoria Pública do Estado afirma que pessoas negras têm 32% mais chances de serem mantidas presas provisoriamente nas audiências de custódia realizadas na capital fluminense. Quanto a política de drogas, como dissemos, o crime de tráfico de drogas e associação para o tráfico tem sido os grandes responsáveis pela exacerbação nas taxas de encarceramento no país, o caso das mulheres presas por tráfico é desesperador: houve um aumento de 567% em 14 anos. E quando falamos de racismo, estamos falando de três em cada cinco mulheres presas por tráfico serem negras, muitas por portarem irrisórias quantidades de substancias ilícitas.
Qual o melhor caminho para se elaborar um plano desse porte? Ouvir a sociedade civil não poderia ser um caminho?
Monique Cruz – Se houvesse de fato interesse político em garantir segurança pública no país, o primeiro passo seria abandonar a lógica da guerra nas ações estatais. Identificar um inimigo e querer eliminá-lo só retroalimenta uma realidade aterradora de violência que atinge de forma cabal as populações mais pobres, majoritariamente negra, mas também indígena (como vimos nos estados do norte do país nos recentes episódios de massacre). A implementação de políticas públicas voltadas a garantida da cidadania das pessoas, e principalmente a adoção de iniciativas como a Agenda pelo Desencarceramento que vem com propostas concretas e exequíveis diante do atual Estado de Coisas Inconstitucional identificado nas prisões brasileiras, nos parece um caminho a ser seguido. Na Agenda, propostas para a alteração da política de drogas, desmilitarização das polícias e políticas públicas e para o enfrentamento ao racismo são apresentadas como os principais meios de enfrentar as questões de segurança pública no país.
Entrevista concedida a Edcarlos Bispo de Santana/Pastoral Carcerária