Luisa Cytrynowicz: quantos mais vão precisar morrer?

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

A Pastoral Carcerária Nacional enviou uma equipe para Manaus após o recente massacre nas prisões. Um mês após o massacre, o fato parece ter caído no esquecimento da sociedade. Esse texto foi escrito pela assessora jurídica da Pastoral que foi à Manaus, com o objetivo de não deixar que as 55 vidas e a dor dos familiares se percam.

Além dos muitos relatos, o texto fala da impunidade de toda a situação e lança uma pergunta ao poder público do Amazonas, a Umanizzare e as instituições do sistema de justiça: quantos mais vão precisar morrer até que se considere inaceitável que essas unidades prisionais continuem existindo?

Quantos mais vão precisar morrer?

Às famílias que depois que seus filhos morreram não atendem mais o telefone, dizem até que elas nem vivem mais em Manaus; à mãe que rezava o terço na segunda-feira, orando pelas famílias que perderam seus parentes no domingo, e foi interpelada por alguém que veio lhe dizer que o luto também era seu – seu filho havia sido assassinado pela manhã;

À senhora que recentemente viu seu filho sair do semi-aberto, mas não pode enterrar o sobrinho, cujo desaparecimento na chacina do COMPAJ de 2017, sem que constasse na lista de mortos, ainda não foi explicado; à mulher que correu desesperada para a entrada do ramal na segunda-feira, após a primeira leva de mortes, na certeza de que o conflito se estenderia, e ao implorar para que a polícia entrasse, escutou em retorno: “deixe que se matem entre eles”; ao ex-agente da Umanizzare que acordava apavorado durante a noite tendo pesadelos com os presos sendo torturados pelo Choque;

Às tantas famílias que se aglomeraram na porta das unidades em busca de notícias conforme circulavam os boatos de mortes e receberam nas mãos, ali mesmo, uma lista de nomes e a informação de que todos os que estivessem nela haviam morrido; à moça que nos dias que se seguiram pediu desesperada à assistência social da unidade notícias sobre seu irmão, já que as visitas estão suspensas por tempo indeterminado e as notícias de feridos são obscuras, e recebeu como única resposta: “se ele não morreu, está vivo”;

À venezuelana que está em busca de alguma informação sobre os estrangeiros presos, preocupada que muitas famílias vivem em outros países sem ter notícias de seus parentes; ao agente da Pastoral Carcerária que escuta tudo isso e diz, preocupado, que teme que a lista de mortos do massacre de 2019 seja maior: imagina se um desses venezuelanos apenas some – corpo, nome – sem que sua família tenha condições de reclamar por sua vida, quem ia dizer que ele um dia esteve lá?;

À senhora que perdeu seu irmão dentro do sistema prisional poucos anos atrás, fruto de agressões e omissões de cuidado, e que chorou tudo de novo essa semana, pensando nas famílias dos 55 mortos; à familiar que teve seu corpo tão invadido em uma revista vexatória, que nunca mais retornou para visitar; ao homem que foi morto na prisão na segunda-feira, poucas horas antes de o seu alvará de soltura chegar; a todos aqueles que apanharam do Choque, inclusive com cachorros, nos últimos meses nas unidades prisionais de Manaus; aos que receberam refeições estragadas, comida azeda;

À equipe da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Manaus, que após as mortes de 2017 ficou quase 6 meses sem conseguir visitar e que agora também está com as visitas suspensas por tempo indeterminado; aos tantos homens assassinados, cujos corpos ficaram congelados em um caminhão frigorífico na porta do IML, pois não havia espaço lá dentro para a quantidade de mortos que chegavam; aos três homens que acabavam de ser detidos, algemados e enfiados no camburão como bichos, que chegavam ao IML para serem examinados e descerem ao presídio, no mesmo momento em que mais um corpo era liberado para o enterro;

Às mães que lembraram o carinho que receberam dos filhos na última visita. Eram tantos “eu te amo” que só agora elas entendiam que os filhos se despediam, eles já sabiam que iam morrer; à mãe que estava na fila para visitar seu filho no domingo, quando os agentes lhe expulsaram com metralhadora na cabeça, pois já haviam começado as mortes e que, na segunda pela manhã, recebe a notícia de que também seu filho foi assassinado; ao agente da Umanizzare que carregou pilhas de corpos e pedaços de gente em carrinhos de lixo para fora do complexo em 2017 e nunca recebeu um pingo de assistência psicológica;

Às milhares de pessoas que continuam aprisionadas em condições degradantes nas cadeias de Manaus; aos presos das unidades prisionais onde ocorreram as mortes, que desde então – talvez desde muito antes, ninguém sabe dizer ao certo – não foram ouvidos por nenhuma instituição de controle externo para saber sobre as condições de aprisionamento; aos presos que saíram das unidades prisionais nestes últimos dias e fizeram saber que estão “carecando” os presos no IPAT, que a comida por vezes não chega, água nem pensar, que cortaram o banho de sol.

Que desde as mortes estão colocando os presos em “um tal de procedimento”: tem que ficar “igual um feto no chão, acocado, com as pernas encolhidas, a mão no pescoço e a cabeça abaixada”. Que jogam spray de pimenta o tempo todo; aos familiares que imploram por uma visita dos direitos humanos para que não seja apenas a palavra delas denunciando; às tantas familiares que rodam Manaus denunciando o cotidiano de tortura nas unidades prisionais e àquelas cujo grito de socorro resta sufocado pelo medo;

Às que já tiveram suas carteirinhas de visita cortadas por levantarem a voz frente às humilhações; aos mais – quanto mais? – de 100 mortos nas unidades prisionais de Manaus nos últimos anos. A todos eles o poder público do Amazonas, a Umanizzare e as instituições do sistema de justiça devem uma resposta: quantos mais vão precisar morrer até que se considere inaceitável que essas unidades prisionais continuem existindo?

Luisa Cytrynowicz
Assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional

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