No dia 28 de agosto de 2015, a Pastoral Carcerária Nacional recebeu denúncia relatando que presos da Penitenciária Nelson Hungria, em Contagem (MG), estariam sendo barbaramente agredidos, com sessões de espancamento por múltiplos agentes, sufocamento com sacola plástica, pancadas nos testículos, entre outras técnicas brutais de tortura.
O caso foi imediatamente enviado ao Ministério Público mineiro, para adoção das providências cabíveis, porém, passados quase seis meses, e após cobrança da Pastoral Carcerária, a Promotoria responsável, em 26 de fevereiro de 2016, determinou o arquivamento da denúncia, sem a realização de visita à unidade ou entrevista com os presos do local apontado na denúncia. Esse é apenas um dos 57 casos que até o momento estão sendo acompanhados pelo Programa de Prevenção e Combate à Tortura da Pastoral Carcerária, com apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos e OakFundation, e que desde meados de 2014 tem recebido e acompanhado denúncias de todo país, com o objetivo de analisar como esses casos são processados pelo Sistema de Justiça, e qual papel que esta prática abjeta tem desempenhado da gestão da barbárie prisional brasileira.
O relatório final do projeto será apresentado no mês de setembro, juntamente com outros levantamentos que estão sendo realizados sobre o tema, mas alguns resultados preliminares já merecem atenção e debate público, sendo importante ressaltar, antes de mais nada, que apesar de ser uma experiência de monitoramento extremamente relevante, nem de longe esses números representam a totalidade dos atos de tortura praticados no período, ou mesmo todos os casos denunciados pela própria Pastoral Carcerária, que na maioria das ocorrências atua localmente, sem um registro unificado.
Em São Paulo, onde foram feitas 29 denúncias de tortura desde o início do projeto, quase 2/3 são do interior ou região metropolitana, onde os mecanismos de fiscalização são mais escassos e os movimentos de defesa dos direitos humanos menos presentes. Outro dado de interesse é que 67% dos fatos denunciados ocorreram em unidades de prisão provisória, delegacias, presídios mistos ou no momento da prisão. Quanto ao gênero das vítimas, apesar de representarem cerca de 7% da população prisional total, 30% das denúncias tem mulheres como vítimas.
No plano nacional, dos 28 casos acompanhados em 12 Estados da federação, quase metade deles concentrados em Minas Gerais, Espírito Santo e Goiás, os resultados são similares. Cerca de 56% dos fatos ocorreram em unidades destinadas à presos provisórios, mistas ou no momento da prisão, e cerca de 35% envolvem vítimas mulheres.
O universo pequeno de casos não possibilita conclusões categóricas, apesar de apontarem indícios importantes, mas a forma como as instituições do Sistema de Justiça tem recebido e reagido aos casos é talvez o dado mais alarmante que se pode extrair deste levantamento preliminar.
Concebida como um importante instrumento de efetivação dos direitos e garantias fundamentais, e criada graças a mobilização de diversos movimentos e organizações da sociedade civil, a Defensoria Pública de São Paulo foi a principal destinatária das denúncias no Estado, porém, em mais de 80% dos casos, não informou qualquer providência[1] adotada. Quando ao Ministério Público e o Judiciário paulista, apesar de terem sido pouco acionados, jamais prestaram qualquer informação nos casos em que foram provocados.
Nos demais Estados, buscou-se encaminhar as denúncias para um leque mais amplo de instituições, e tanto a Defensoria Pública quanto o Ministério Público foram oficiados na mesma proporção, mas os resultados foram igualmente decepcionantes. Mesmo diante de uma política consistente de cobrança, em 65% dos casos, os defensores responsáveis não informaram qualquer providência, sendo que este número sobe para 85% em relação ao Ministério Público. No que toca o Judiciário, assim como em São Paulo, não foi recebida qualquer informação até o encerramento da pesquisa preliminar.
Segundo o assessor jurídico da Pastoral Carcerária de São Paulo, Francisco Crozera, “apesar da profusão de órgãos voltados para fiscalização do sistema penitenciário e de defesa e promoção dos diretos humanos, ainda estamos em busca de um modelo público mais eficiente para o encaminhamento e acompanhamento de casos de violação”.
As denúncias de tortura praticadas em ambientes de privação de liberdade demandam uma atuação célere e desburocratizada do Sistema de Justiça, pois não apenas os vestígios da prática somem rapidamente, ou podem ser facilmente ocultados, como a vítima precisa conviver diariamente com seu agressor, e tanto ela quanto o denunciante, que muitas vezes é seu familiar ou companheiro, ficam em situação de extrema vulnerabilidade.
Fazer-se presente nos espaços de privação de liberdade e entrevistar reservadamente possíveis vítimas e testemunhas deveria ser a primeira obrigação de Defensores, Promotores e Juízes quando confrontados com denúncias de tortura, no intuito de verificar a procedência ou plausibilidade das alegações, porém, isto está longe de ser a realidade. Ao contrário, em muitos casos, para realizar as mais simples providências preliminares, essas autoridades exigem denúncias minuciosas, desconsiderando o contexto autoritário e obscuro que esses atos ocorrem, e, por consequência, acabam por sepultar qualquer possibilidade de apuração dos fatos, invertendo a obrigação assumida internacionalmente pelo Estado brasileiro de prevenir e erradicar a tortura.
“As instituições do Sistema de Justiça, infelizmente, têm atuado estruturalmente mais obstaculizando do que promovendo a apuração dos casos de tortura. Apesar de dois relatores da ONU terem considerado tal prática como endêmica nas masmorras brasileira, a regra da tortura continua sendo a subnotificação, já que a chance de qualquer responsabilização dos envolvidos ou reparação das vítimas é baixíssima”, afirma o assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, Paulo Malvezzi.
A análise dos casos de tortura denunciados pela Pastoral Carcerária e as respostas dadas concretamente pelo Sistema de Justiça ainda serão objeto de análise mais aprofundada no decorrer do projeto, mas parece cada vez mais evidente que as recentes inovações institucionais e legais para combater tal prática apenas mudaram o perfil de sua ocorrência, representando pouco avanço no cotidiano violento das prisões brasileiras.
Gráficos sobre os casos no Estado de São Paulo
Gráficos sobre os casos do restante do País
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[1] Para fins do presente levantamento preliminar, considerou-se “providência” até a simples instauração de procedimento administrativo.