Por Débora Brito
Repórter da Agência Brasil
A Agência Brasil lançou um especial sobre o centenário de Nelson Mandela, com reportagens sobre seu legado. A reportagem abaixo analisa a importância das regras de Mandela, e como, no Brasil, o documento é tratado cotidianamente como “letra morta”, pois a superlotação e as violações de direitos humanos no cárcere é algo intrínseco ao sistema prisional. Para ler o especial completo, clique aqui.
A experiência de Mandela nas prisões da África do Sul e sua luta pelos direitos dos encarcerados inspiraram a Organização das Nações Unidas (ONU) a elaborarem as chamadas regras de Mandela, normas mínimas universalmente reconhecidas para orientar os países no tratamento dos presos.
Os países signatários são encorajados a promover condições humanitárias de encarceramento e valorizar o trabalho dos profissionais do sistema prisional como um serviço social.
As regras foram adotadas inicialmente em 1955, no Primeiro Congresso sobre Prevenção ao Crime e Tratamento de Infratores. Ao todo, são 122 regras que adotam um paradigma de encarceramento com foco na justiça e que reforçam a necessidade de se garantir a dignidade para os privados de liberdade.
A ONU reconhece que nem todos as práticas podem ser aplicadas uniformemente devido à diversidade das realidades jurídicas, sociais e econômicas dos países, mas quer que as normas sirvam de estímulo para adoção de medidas de combate à violação de direitos nos presídios.
As regras foram revisadas em 22 de maio de 2015, quando ganharam o nome do líder sul-africano. Na revisão, as normas foram adequadas a diversas legislações internacionais.
Direitos dos presos
As regras de Mandela entendem que a privação da liberdade por si só já é uma penalidade ao preso, que não deve ser submetido a condições extras de sofrimento nem perder sua dignidade durante o cumprimento da pena.
“A pena privativa de liberdade já traz em si um sofrimento que é a dificuldade de se autodeterminar, você não ter a possibilidade de se locomover, de ir e vir. A pessoa é privada também, no caso do Brasil, de direitos políticos. Provocar outros sofrimentos além do próprio sofrimento intrínseco da pena é ilegal, não deveria ocorrer”, explicou Francisco Crozera, assessor jurídico da Pastoral Carcerária de São Paulo.
A primeira regra do documento diz que nenhum preso deve ser submetido à tortura ou tratamentos e sanções cruéis, desumanas ou degradantes. Todos os presos devem ter acesso à alimentação de qualidade, água potável e a serviços de saúde física e mental. O detento só poderá ser isolado em confinamentos especiais, conhecidos como solitárias, sob autorização de autoridade competente.
Outra regra diz que “as celas ou quartos destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por mais de um preso”. Há também a recomendação para que as janelas sejam grandes o suficiente para permitir a entrada de luz natural e ar fresco para que as instalações sanitárias sejam limpas e adequadas.
O documento também estabelece que as regras devem ser aplicadas com imparcialidade, independentemente da condição social, cor, religião, gênero e outras características dos presos. E orienta o sistema prisional a não adotar vestimentas ou rotinas que possam denegrir a imagem pessoal do detento.
Entre as regras há ainda a recomendação para padronizar os procedimentos de registro dos presos e para que não haja a admissão em estabelecimento prisional de nenhuma pessoa que não tenha ordem de detenção válida. As regras também destacam a necessidade de cuidado diferenciado com crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência física ou mental no sistema penitenciário.
África do Sul
O governo da África do Sul vai lançar as regras este mês, no bojo da programação que celebra o centenário de Mandela. Segundo o Ministério da Justiça da África do Sul, o país tem atualmente mais de 163 mil detentos em 243 estabelecimentos prisionais. O déficit prisional sul-africano é de pelo menos 44 mil vagas.
Além de ser conhecido como o Dia de Mandela, data instituída pela ONU, o 18 de julho também é lembrado como Dia pelos Direitos dos Presos, em memória aos 27 anos de cárcere de Mandela.
“A figura de Mandela é muito importante para essas regras e o caráter simbólico tanto do lado da punição e da repressão, mas também do outro lado de tentar garantir os direitos, tentar uma mudança de política das pessoas que cuidam do cárcere, isso é o mais importante”, destaca Henrique Apolinário, advogado da organização de direitos humanos Conectas
Realidade brasileira
O Brasil participou ativamente do processo de revisão das regras de Mandela em 2015. O país tem 1498 estabelecimentos prisionais cadastrados, entre penitenciárias, cadeias públicas, hospitais de custódia, colônias agrícolas, casas do albergado e centros de observação criminológica. Atualmente, o sistema carcerário brasileiro tem 700 mil presos para cerca de 300 mil vagas.
“Sem dúvida, o Brasil negligencia este legado. As condições das prisões no Brasil são lamentáveis. Nós temos um sistema em que as prisões estão superlotadas com pessoas que estão lá mofando, morrendo aos poucos, sem ter tido a oportunidade de serem ouvidas e terem julgamento digno”, critica a relatora da 3a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban (2001), Edna Roland.
A ativista destaca ainda que o sistema é feito para não recuperar ninguém e acaba gerando mais criminalidade e violações em todas as áreas como, justiça, educação e saúde.
A organização de Direitos Humanos, Conectas, destaca que, apesar de ter se comprometido com vários tratados internacionais de defesa dos direitos humanos dos presos, o país viola praticamente todos os princípios e trata as regas de Mandela como “letra morta”.
“O descumprimento dessas regras no Brasil passa pelo hiper encarceramento e pelo seu aspecto mais visível que é a superpopulação carcerária, população basicamente muito maior do que a capacidade máxima suportaria”, afirmou Henrique Apolinário, advogado e assessor do programa de Violência Institucional da Conectas.
O advogado explica que, como o documento não é vinculante, o Estado cumpre as regras se quiser ou conforme a realidade do país. Para serem válidas, as medidas devem ser implementadas por meio de projetos de lei e políticas públicas e é neste estágio que o Brasil está.
De acordo com a Pastoral Carcerária, alguns estados brasileiros têm condições de cumprir parte das regras. Entretanto, de forma geral, a superlotação nos presídios do país impede que as normas sejam implementadas de forma satisfatória.
“A superlotação dificulta completamente a aplicação das regras mínimas, dificulta a assistência jurídica, a assistência social, a assistência material ao preso. O Estado não tem capacidade de abrigar adequadamente as pessoas que prende, porque está prendendo uma quantidade muito maior do que a capacidade que as unidades têm”, analisa Crozera.
O assessor jurídico completa que o fenômeno do encarceramento em massa se intensificou nos últimos 30 anos e que, para interrompê-lo, o Estado deve restringir a pena de prisão a casos mais graves e extremos.
“As próprias regras de Mandela enfatizam a necessidade de se buscar penas alternativas e justiça restaurativa para diminuir o número de presos provisórios, ou seja, resguardar a pena privativa de liberdade ou a custódia dos presos provisórios a casos mais extremos, e não utilizar isso para toda e qualquer situação”, argumenta o especialista.
A Agência Brasil entrou em contato com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.
Depois de ser condenado a prisão perpétua em 1964, Nelson Mandela passou quase três décadas de sua vida preso, a maior parte do tempo na Ilha Robben, local escolhido pelo governo da África do Sul para isolar presos políticos e autores de crimes considerados hediondos.
Nas experiências de privação de liberdade, Mandela testemunhou as precárias condições do sistema prisional sul-africano. Em sua biografia, Mandela conta que foi colocado em celas insalubres, sem nenhuma ou pouca iluminação e ventilação, sem local apropriado para higiene, e que passou fome e frio. Todos eram maltratados com xingamentos e alguns chegaram a ser torturados física e psicologicamente.
“Dizem que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que esteja dentro de suas prisões. Uma nação não deveria ser julgada pelo modo como trata seus mais altos cidadãos, mas os mais pobres – e a África do Sul tratava seus cidadãos prisioneiros como animais”, relatou Mandela em sua biografia.
O sistema segregacionista também operava dentro das prisões, onde presos não africanos recebiam melhor tratamento, roupas e comida em relação aos presos negros e africanos. Diante das más condições das prisões, Mandela se tornou porta-voz dos direitos dos presos.
Durante os 18 anos em que esteve detido na ilha Robben, Mandela assumiu a liderança nos movimentos de reivindicação por melhores condições na rotina da prisão.
A liderança rendeu algumas melhorias para os presos, mas também algumas penalidades a Mandela, que foi colocado várias vezes em celas solitárias.
Mandela foi diagnosticado com tuberculose, doença infecciosa que atinge centenas de encarcerados em prisões insalubres de todo o mundo.
“A prisão não só rouba sua liberdade, mas tenta tirar sua identidade. Por definição é um estado autoritário que não tolera independência ou individualidade. Como um lutador pela liberdade e como homens, precisamos lutar contra a tentativa da prisão de roubar estas qualidades”, escreveu Mandela.