Com saúde à beira do colapso por coronavírus, Amazonas isola 300 presos e não testa doentes

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Dezenas de detentos estão doentes e levantam suspeita de infecção pelo novo coronavírus na segunda cadeia mais populosa do Amazonas, a Unidade Penitenciária de Puraquequara (UPP), em Manaus, segundo a Pastoral Carcerária Nacional. A Agência Pública teve acesso a uma denúncia da entidade baseada em relatos de presos e familiares. Eles afirmam que detentos em situação suspeita de Covid-19 “não seriam levados para a enfermaria”, “permaneceriam algemados no ambulatório”, “que estariam sofrendo desmaios e tremores” e “que não estariam recebendo remédios”. A penitenciária abriga cerca de 1,3 mil presos, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

Em áudios obtidos com exclusividade pela Pública, detentos da UPP relatam medo de morrer, pedem socorro aos familiares e apelam por ajuda. Parte dos áudios foi gravada durante ligações feitas a parentes na presença de agentes penitenciários e outra foi vazada de dentro dos presídios e compartilhada em grupos de familiares de detentos.

Vitor Souza/Secom

“Hoje eu fui pro atendimento na enfermaria, muitos dos presos estavam passando mal aqui. Chegando lá em cima, a gente viu uma situação preocupante. Dentro da enfermaria tinha um interno que estava algemado, mas ele não estava na maca [com] os outros irmãos. Ele tava separado num quarto, isolado”, conta um detento da UPP.

Os relatos registrados nas gravações foram reforçados por dois familiares de internos do presídio, com quem a Pública conversou. “A maioria deles está gripado, teve um que estava com falta de ar”, conta Marta*, esposa de um preso.

Segundo Giovana*, familiar de outro detento da unidade, os presos “não estão recebendo orientação e estão achando que a dor no corpo é dengue e a febre alta é por malária”. Ela reclama de falta de atendimento médico e de remédios. “Meu parente é hipertenso, eu comuniquei a Seap [Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Amazonas] e comuniquei a unidade que ele é hipertenso, mas mesmo assim ele não foi ao médico. Hoje [31/03] ele fez essa ligação pra mim, de um minuto, e eu perguntei se ele tava tomando remédio, se ele foi no médico, e ele [respondeu] ‘eu não fui nada, eles não levam não’, conta. A Pública teve acesso ao áudio da conversa, gravada por Giovana*.

Além de falta de atendimento, os internos e seus familiares também denunciam falta de água e de ventilação nas celas e dificuldades para higienização dos espaços. Eles questionam ainda a superlotação das unidades e relatam represálias aos detentos e comida escassa e estragada.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomenda que as penitenciárias isolem presos que tenham tosse seca, dor de garganta, cefaleia, dificuldade para respirar, dentre outros sintomas, ou que tenham tido contato próximo com caso suspeito ou confirmado de infecção pelo coronavírus. O CNJ também indica que casos graves devem ser encaminhados imediatamente para unidades de saúde com condições de atendimento.

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) do Amazonas negou “veementemente a denúncia da Pastoral Carcerária”, informou que não há “registro de detentos infectados ou com sintomas da doença em nenhuma unidade prisional do Amazonas” e que, por não haver casos suspeitos, nenhum teste foi realizado até agora. A secretaria comunicou ainda ter isolado 300 presos do grupo de risco do restante da população carcerária e que todas as unidades prisionais têm celas para receber detentos que apresentem sintomas, “o que não aconteceu até o momento”. Segundo dados oficiais, ainda não há casos confirmados ou mesmo suspeitas de Covid-19 nos presídios do Amazonas.

Na última terça-feira, dia 7 de abril, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) afirmou ter impedido uma tentativa de fuga na UPP através de um túnel. No dia seguinte, cerca de 100 policiais militares realizaram vistoria nos presos.

O estado do Amazonas tem a segunda maior superlotação carcerária do país, atrás apenas do vizinho Roraima. São cerca de três pessoas presas para cada vaga, quase o dobro da média do Brasil. A cada cinco presos no estado, um foi condenado por tráfico de drogas, de acordo com dados do Depen.

A situação é ainda mais drástica porque, segundo o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o Amazonas é um dos estados brasileiros que pode entrar em fase de aceleração descontrolada de infecções por coronavírus nas próximas semanas, sem ter condições de internação em UTIs para os pacientes mais graves. Em 8 de abril, a Secretaria de Saúde do Estado divulgou 804 casos confirmados de Covid-19 no estado, com 30 mortes. O Amazonas é um dos cinco estados acima da média nacional calculada pelo Ministério da Saúde (os outros são o DF, SP, CE e RJ).

No dia 6 de abril, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB) afirmou que o sistema de saúde da capital havia colapsado pela falta de UTIs. O hospital Delphina Aziz, que desde março atende exclusivamente pacientes com Covid-19, está com lotação máxima nos leitos de UTI, sem capacidade para receber novas internações.

“Se o médico ou a equipe de enfermagem presente perceberem que os sintomas do paciente fazem com que ele precise de uma atenção além do que a unidade presta, como no caso do respirador, ele deve ser levado imediatamente para o Delphina Aziz, que é o hospital de referência’, afirma a promotora Christianne Correa, do Ministério Público do Amazonas.

Vidas em Jogo

A Pastoral Carcerária protocolou a denúncia ao Tribunal de Justiça (TJ-AM) e à Defensoria Pública do Estado (DPE-AM) em 24 de março. Em resposta à reportagem, o TJAM informou que recebeu a denúncia da Pastoral e a encaminhou à Ouvidoria do tribunal e à Seap, que declararam ser improcedente.

A Defensoria Pública do Amazonas afirmou não ter recebido denúncias de casos suspeitos ou confirmados de coronavírus até o dia 30 de março. Em nota, o órgão comunicou que “a Defensoria Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos esteve na Unidade Prisional do Puraquequara no dia 27 de março de 2020, onde realizou uma inspeção que confirmou não haver nenhum caso de Covid-19 naquela unidade prisional”.

No documento, a Pastoral Carcerária pede aos órgãos competentes a concessão de prisão domiciliar para detentos do grupo de risco, com suspeita ou expostos ao risco de contágio do coronavírus. Além disso, solicita a realização de inspeção nas cadeias e acompanhamento dos problemas de saúde apontados pelos presos. “Nós temos informações de diversos familiares, que mandaram para nós essa realidade, a situação lá dentro”, afirma a Irmã Petra Pfaller, coordenadora nacional da entidade. “Resolvemos denunciar essa questão de saúde, [porque] a gente percebe que os dados são realmente enganosos”.

O documento também foi entregue ao Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNCPT), que garantiu à Pública que “oficiará o estado do Amazonas, assim como todas as autoridades envolvidas no acompanhamento da execução penal, para prestação de esclarecimentos e imediatas intervenções”.

Conversas via videoconferências são monitoradas e curtas, dizem familiares
Os relatos de más condições e casos suspeitos de Covid-19 também aparecem em outras unidades prisionais de Manaus. A Pública conversou com um ex-interno, recém-saído do Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat), e com o familiar de um detento da mesma unidade. “Tem muita gente desmaiando, a gente chama eles para tirarem, eles dizem que não podem fazer nada, não dão assistência. Febre, dor de cabeça, muita dor no corpo, com tosse também. Toda vez ficam falando que não tem médico e não tem remédio”, conta Maicon*, que deixou o presídio na última semana. A unidade abriga cerca de 800 presos, mas tem capacidade para 486.

Segundo Gerson*, parente de preso no Ipat, a suspensão das visitas – medida adotada para evitar o contágio de coronavírus – dificultou a comunicação entre os internos e seus parentes. “Agora, eles estão adotando o sistema de videoconferência, que por lei são cinco minutos, mas quando a gente fala com nossos parentes, é um minuto ou dois minutos, e sempre um agente atrás do preso e um na frente, ‘bora, olha o tempo, rápido’. Ele não pode dizer nada sobre doenças ou o que ele sofre lá dentro. Eles são manipulados a falar o que a secretaria quer que fale”, afirma.

Localizado a menos de 2 quilômetros do Ipat, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), que abriga cerca de 3,6 mil detentos, também tem relatos semelhantes. “Apareceu três casos dessa parada aqui na cadeia, mano. É doido, a cadeia tá toda com preso com medo de morrer, a gente tá mandando os familiares vir aqui pra frente. Nós não vamos morrer preso aqui não, tá doido”, conta um preso em áudio obtido pela reportagem.

Denúncias podem atingir metade dos presos do Amazonas

Mais da metade dos presos em regime fechado no estado do Amazonas está nas unidades prisionais apontadas nas denúncias de suspeitas de Covid-19 — são mais de 2,2 mil detentos nos três locais, segundo dados do Depen. Ao todo, são cerca de 5 mil detentos nas três unidades somando todos os regimes de pena.

A Unidade Prisional de Puraquequara é a segunda mais populosa do estado. Cerca de uma a cada dez pessoas presas no Amazonas está na prisão. Com cerca de 1,3 mil detentos e por volta de 165 em regime fechado, além de superpopulosa, Puraquequara está superlotada: são 2,2 presos para cada vaga, valor acima da média brasileira, que é de 1,6 preso por vaga. A maioria dos presos (88%) são provisórios, sem condenação. E mais de um quarto das pessoas presas em Puraquequara (27%) cumpre pena por tráfico de drogas.

O atendimento de saúde na prisão é privatizado. Em 2018, o Ministério Público de Contas do Amazonas questionou os contratos da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) com a Umanizzare Gestão Prisional e Serviços SA, empresa que faz a gestão da penitenciária de Puraquequara. Ela havia sido acusada de cobrar acima da média nacional para os serviços médicos. Segundo dados do Depen, existe um consultório na penitenciária, onde são prestados atendimentos clínicos gerais e de psiquiatria.

A promotora Christianne Correa trabalha com a perspectiva de que a doença chegue aos presídios do estado. De acordo com ela, a atenção básica de saúde nas unidades prisionais “é melhor que antigamente” – há poucos anos, equipamentos básicos como máscaras, seringas, cilindros de oxigênio e medidores de pressão, por exemplo, existiam em pouca quantidade ou apresentavam danos, situação que hoje é melhor controlada. No entanto, ainda há limitações, que podem complicar o atendimento em um cenário de pandemia. “Hoje, as unidades estão preparadas no nível de uma unidade básica de saúde. O resto é atribuição da Susam [Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas]”, destaca.

“Quarentena da Quarentena”
Theo Eduardo Costa, coordenador do Núcleo de Atendimento Prisional (NAP) da Defensoria Pública do Amazonas, vai pela mesma linha. “O problema é que a assistência à saúde nas unidades prisionais é direcionada para casos de baixíssima complexidade, e não estão estruturadas para casos mais graves”, aponta. Ele ressalta que, segundo a Seap, hoje existem, apenas na comarca de Manaus, 273 presos que se encaixam no grupo de risco para a Covid-19 – a Defensoria, inclusive, impetrou, no dia 20 de março, um pedido de Habeas Corpus coletivo para que seja concedida a essas pessoas a progressão de regime.

Costa também chama a atenção à insuficiência de leitos nos presídios do estado para o tratamento de casos mais leves: ele explica que, ainda com base em dados da Seap, há só 39 leitos para mais de 5 mil presos na comarca de Manaus.

Na visão do defensor, outro aspecto que torna a situação no sistema prisional ainda mais grave é o isolamento radical a que os presos têm sido submetidos com o fim das visitas presenciais e do encontro com advogados. “É como colocar gasolina no fogo, pois provoca um isolamento extremo ao preso”, coloca. Ele menciona, especificamente sobre o caso do Amazonas, que a Defensoria Pública vinha atendendo “aproximadamente 2.400 a 2.500 presos por mês e de uma hora para outra isso foi interrompido.”

“Se os cidadãos já estão sentido os efeitos de uma quarentena leve imposta há pouco mais uma semana, os presos estão na quarentena da quarentena, em um espaço minúsculo com quase duas dezenas de outros presos na mesma cela, com racionamento de água, falta de produtos higiênicos básicos, calor extremo durante o dia, umidade extrema durante a noite, proliferação de doenças infectocontagiosas e pouquíssima exposição à natural assepsia promovida pela luz solar”, completa.

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