Artigo: A marginalização da População LGBTQIAP+ e o encarceramento brasileiro 

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?
(Papa Francisco na volta da viagem ao Brasil em 2013 por ocasião da participação na Jornada Mundial de juventude)

O mês de junho é marcado pela comemoração do orgulho LGBTQIAP+. Em diversas cidades do Brasil é realizada a Parada do Orgulho LGBT e, a de São Paulo, já foi reconhecida como a maior do mundo. No entanto, embora a parada seja um momento de festa, ela também é marcada por um histórico de lutas contra opressões que permanecem até os dias de hoje.

De fato, a população LGBTQIAP+ é constantemente vítima de violências e marginalizações, que se demonstram a partir de mortes violentas com indícios de ódio, ameaças, agressões – físicas, psicológicas, patrimoniais, sexuais, morais, etc. -, bem como a partir de opressões estruturais – como a dificuldade de se firmar no mercado de trabalho e a não rara negativa de fornecimento de diversos serviços.

De acordo com os dados do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBT+ no Brasil publicados em 2022, entre os anos de 2000 a 2022,  5.635 pessoas morreram em função do preconceito e da intolerância. Especificamente em relação a travestis e mulheres transsexuais, o cenário se agrava ainda mais: em 2022, 58,24% das mortes violentas com vítimas LGBT+ foram de pessoas travestis ou mulheres trans.

No entanto, a existência dessa violência não é uma questão recente. Na realidade, está amplamente vinculada a outros setores da sociedade e ao aparelho repressivo estatal.

Ao longo da história, a Igreja Católica desempenhou um papel significativo na formação e influência das leis e normas sociais e, com o avanço da colonização portuguesa no Brasil, a política de dominação e controle cultural ganharam cada vez mais força. Nesse cenário, as expressões da sexualidade e as relações afetivas dos povos originários foram duramente repreendidas, controladas, uniformizadas e disciplinadas pela Igreja Católica e pelo Estado.

A ideia do pecado, a criação da imagem de seres imorais e a imagem da salvação da vida após a morte foram alguns dos pontos repreendidos durante esse processo de aculturação, no qual a cultura europeia se impunha sobre a cultura de outros povos. 

Nesses períodos em que a Igreja tinha poder e influência consideráveis, como justamente no período colonial, suas visões e ensinamentos morais foram incorporados nas leis seculares. A condenação da homossexualidade como pecado e a disseminação de estereótipos negativos sobre as pessoas LGBTQIAP+ contribuíram para a construção de uma cultura e ambiente social que marginalizavam e discriminavam esses indivíduos. Essa marginalização e discriminação muitas vezes resultavam na aplicação de leis criminais que criminalizavam a homossexualidade e puniam as pessoas por sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Nesse sentido, a própria história da Parada do Orgulho LGBT advém, no plano internacional, da Revolta de Stonewall, que ocorreu em 1969 nos Estados Unidos, ocasião na qual pessoas lutaram contra a opressão policial e a criminalização da homossexualidade (ser homossexual somente foi completamente descriminalizado, nos EUA, mais de 34 anos depois).

No mesmo período, no Brasil, vivíamos os anos de ditadura militar, época severamente marcada por violências, torturas e prisões ilegais. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregou à então Presidenta Dilma Rousseff relatório que deu destaque inédito à perseguição e aos abusos sofridos por pessoas gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.

Dentre as principais transgressões ressaltadas pelos pesquisadores da CNV , podemos falar das constantes operações policiais com o intuito de ameaçar e prender pessoas LGBT+, cuja prática de “limpeza” resultou na detenção arbitrária de pelo menos 1,5 mil indivíduos apenas na cidade de São Paulo. Também foram observados casos de tortura, agressões físicas e extorsões direcionadas principalmente a travestis. Rafael Freitas, pesquisador da PUC-SP e um dos responsáveis pelo relatório da CNV,  aponta, ainda, a situação mais degradante do cárcere para esse segmento da população, com humilhações, sem fornecimento de alimentação e com torturas mais brutais em razão de suas sexualidades ou identidade de gênero.

Já na década de 80, a epidemia de Aids assolou o mundo, e a população LGBT+ foi a mais vitimada – não somente pela doença em si, mas também pelos estigmas impostos a essa parcela da população (por exemplo, a partir do primeiro relato da enfermidade, a Aids recebeu o ́apelido ́ de “síndrome do compromisso gay”). Tal contexto reforçou o discurso moral e preconceituoso imposto em desfavor da comunidade LGBTQIAP+, ampliando a sua marginalização na sociedade.

A realidade de criminalização de pessoas LGBTQIAP+, por sua vez, não é mais realidade no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, ao redor do globo, há países que ainda criminalizam juridicamente o simples fato de uma pessoa LGBTQIAP+ existir. Muitos desses países preconizam penas privativas de liberdade altas, chegando a mais de 10 anos de prisão, incluindo países que prevêem penas de prisão perpétua ou até mesmo pena de morte, conforme dados da Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA).

Nesse sentido, o Sumo Pontífice da Igreja Católica, o Papa Francisco, declarou, na viagem apostólica à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul, que a criminalização da homossexualidade era uma injustiça: “A criminalização da homossexualidade é um problema que não se deve ignorar. O cálculo é de cinquenta países, mais ou menos, que de uma forma ou de outra chegam a esta criminalização. Alguns falam de um número maior… Bem, pelo menos cinquenta. E alguns deles – creio que serão dez – têm também a pena de morte, às claras ou escondida, mas pena de morte. Isto não é justo, as pessoas homossexuais são filhos de Deus, Deus ama-as, Deus acompanha-as.

No Brasil, ainda que não exista a tipificação, pessoas LGBTQIA+ enfrentam preconceitos do sistema penal em todo o percurso: desde a abordagem, passando pelo julgamento, até o encarceramento. Com efeito, o cárcere é um ambiente de violações sistemáticas de direitos humanos (tanto por meio de agressões, quanto por questões estruturais, como a superlotação e o não fornecimento de locais adequados, alimentação e medicamentos, por exemplo). Todavia, grupos já vulnerabilizados, como a população LGBTQIA+, são ainda mais expostos e sofrem ainda mais com as violências de unidades prisionais.

Em 2014, com o objetivo de mitigar os abusos sofridos pelas pessoas LGBT no ambiente prisional, foram estabelecidos parâmetros de acolhimento por meio da Resolução Conjunta nº 1 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT). Essa resolução contém diretrizes relacionadas ao uso do nome social de acordo com a identidade de gênero, à criação de espaços específicos para vivências e à permissão de visitas íntimas. Contudo, não há dados suficientes para aferir se essas orientações são seguidas.

Durante sua visita ao Brasil em 2015, Juan Mendez, o relator da Organização das Nações Unidas encarregado de combater a tortura, elaborou um relatório que tratava da situação do sistema prisional no país. Entre os pontos enfatizados pelo especialista, destaca-se a questão das práticas de tortura que são infligidas à população LGBT+ nas prisões. Mendez deixou claro sua preocupação com esse grupo específico, reconhecendo que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais são especialmente vulneráveis aos impactos negativos resultantes das deficiências do sistema prisional brasileiro.

Inicialmente, importa destacar que é difícil quantificar a população LGBTQIA+ presa, pois muitas têm receio de se autodeclarar pertencentes dessa população devido a possíveis riscos de sanções tanto administrativas, quanto por outras pessoas presas. Na pesquisa “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnósticos dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”, nas 508 unidades prisionais que responderam ao formulário de pesquisa, foram identificadas 4.748 pessoas que se autodeclararam LGBT. No entanto, acredita-se que tal número reflete uma subnotificação: segundo dados da pesquisa “Passagens: Rede de Apoio a LGBTs na prisão”, da ONG Somos, financiada pelo Fundo Brasileiro de Direitos Humanos, há estimativas de que só em São Paulo pode haver cerca de 5 mil pessoas LGBT presas.

O Brasil ocupa a triste posição de ser o país com maior número de assassinatos de travestis em todo o mundo, e é esse padrão de violência que se repete nas prisões.

Além disso, as pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e estão atualmente encarceradas no sistema prisional brasileiro enfrentam também outras formas de violência, resultantes de diversos elementos. Essas violências incluem desde a ausência de uma área específica destinada a essa comunidade até a maneira como os funcionários públicos que atuam nas prisões as tratam, bem como os abusos sofridos por outras pessoas presas. Algumas das violências que a população LGBTQIAP+ encarcerada no Brasil enfrenta são: a imposição de cortar o cabelo, a negação de tratamentos hormonais, a falta de acesso a cuidados médicos, o assédio sexual em troca de alimentos e a violência física, manifestada por meio de agressões e estupros.

Ademais, há sempre uma vulnerabilidade devido à precariedade das políticas institucionais que abordam esse segmento, visto que as medidas destinadas a reduzir os riscos enfrentados por essa população no sistema prisional são frequentemente apoiadas por sistemas passageiros, sem garantia real de continuidade.

Neste mês do orgulho, a Pastoral Carcerária Nacional, presença da Igreja Católica nos cárceres, se coloca ombro a ombro com a população LGBTQIAP+ dentro e fora das prisões na luta por igualdade e na luta contra a violência de Estado. Juntas e juntos por um mundo sem cárceres!

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