Artigo: A fome e o sistema carcerário brasileiro

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias, Saúde no cárcere

Dai-lhes vós mesmos de comer (Mt 14,16)  

A tortura e o sistema carcerário nacional são sinônimos, a privação das pessoas de suas liberdades e as diversas formas de violências, de tratamento humilhantes e degrandes dentro do cárcere constituem a tortura cotidiana a que as pessoas pessoas presas são submetidas.

Segundo dados do relatório “Vozes e dados da tortura em tempos de encarceramento em massa” publicado pela Pastoral Carcerária no inicio do 2023, que abrangeu 369 denúncias dentre 1° de janeiro de 2021 a 31 de julho de 2022, 55,15% das denúncias envolveram negligências na prestação de assistência material – dentro de tais violações está a falta de alimentação em quantidade e qualidade adequadas para o consumo. 

A Campanha de Fraternidade de 2023 sobre “Fraternidade e Fome” tem como objetivo geral “Sensibilizar a sociedade e a Igreja para enfrentar o flagelo da fome, sofrido por uma multidão de irmãos e irmãs, por meio de compromissos que transformem esta realidade a partir do Evangelho de Jesus Cristo.”  A insegurança alimentar é analisada como uma forma de tragédia, de negação da própria existência no texto base da CNBB, em seu 5° do texto base a CNBB expressa com palavras claras: 

 Na sociedade humana, a fome é uma tragédia, um escândalo, é a negação da própria existência. Na verdade, o alimento para o ser humano não constitui somente uma necessidade natural, mas representa ainda um fator cultural, porque é veículo de relações entre as pessoas, é um princípio de aliança e de comunhão.” 

A fome é repudiada por afrontar direta e imediatamente todos os princípios fundamentais da Doutrina Social da Igreja (DSI), e é uma realidade que traz à tona a importância de olharmos para a realidade do outro, daqueles que não têm acesso àquilo que deveria ser básico. 

O acesso à alimentação de qualidade, nutritiva e em quantidade adequada é direito fundamental do ser humano, a garantia e a promoção da segurança alimentar e nutricional da população é um direito que está assegurado pela Constituição Federal. 

Apesar dessa garantia constitucional, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 produzido pela ONU em 2022 escancara uma dura realidade. De acordo com a pesquisa, a insegurança alimentar aumentou cerca de 15,5% entre o final de 2020 ao início de 2022, em um pouco mais de um ano, cerca de 14 milhões de novos brasileiros estão em situação de fome. 

Se fora das grades a insegurança alimentar já é um problema enorme enfrentado por milhares de brasileiros, dentro delas a situação é ainda pior. Relatos que denunciam a distribuição de alimentos crus, estragados, azedos e vencidos em unidades prisionais em todo o Brasil são recorrentes nas denúncias recebidas pela Pastoral Carcerária Nacional. 

Dentre os diversos casos que recebemos diariamente que denunciam a questão da fome, destacamos alguns:

 O primeiro relato denunciou uma série de violações, dentre elas estavam agressões físicas, agressões verbais, violência psicológica e por fim, falta de assistência material. 

O relato descreveu que as pessoas presas não estavam recebendo alimentação dentro da unidade prisional, e durante as visitas familiares, por conta da fraqueza, as pessoas presas desmaiavam de fome em frente aos seus familiares. 

Já a segunda denúncia relatou que as marmitas entregues na unidade prisional continham alimentos crus, estragados ou não cozidos, e por conta da insalubridade da alimentação, diversas pessoas presas estavam enfermas. 

O relato ainda acrescentou que para além da qualidade da alimentação, as pessoas presas estavam enfrentando problemas com o período de entrega das marmitas. Segundo a denúncia, havia apenas café da manhã e jantar na unidade prisional. O jantar era entregue no final da tarde, e o café da manhã era entregue no final da manhã. As pessoas presas dessa forma eram submetidas a 17 horas de jejum compulsório. 

Cabe ressaltar, ainda, que a terceirização da alimentação nos presídios contribui para reforçar a insegurança alimentar das pessoas presas. Isto porque, desde que o Estado passou a delegar esta responsabilidade a empresas privadas, são constatados casos de corrupção na execução dos contratos. Em 2020, o The Intercept Brasil publicou reportagem que denunciava o escândalo das quentinhas no estado do Ceará, em que havia fortes indícios de que a empresa ISM Gomes de Mattos, responsável pela alimentação de 14 penitenciárias do estado, recebia por refeições duplicadas nos mesmos presídios e por refeições para presídios que ainda estavam em construção ou desativados.

Na mesma matéria jornalística é relatado que pessoas que passaram por unidades prisionais cuja alimentação era feita pela ISM Gomes de Mattos ingeriam a mistura de papel higiênico e pasta de dente para “enganar a fome”, bem como informaram que muitos alimentos chegavam em más condições de preservação – “azedos” – e o frango, principal proteína animal, era constantemente entregue cru.

No mesmo sentido, no estado de Goiás, o Tribunal de Contas do Estado (TCE-GO) apontou indícios de que a empresa responsável pela alimentação no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia foi beneficiada no processo de licitação. Enquanto isso, o Relatório de Inspeção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), que visitou a Casa de Prisão Provisória e a Penitenciária Coronel Odenir Guimarães – ambas unidades do Complexo – relatou que os presos informaram a má qualidade da alimentação fornecida.

Para além da quantidade, qualidade e orçamento da comida fornecida nos presídios, também existe hoje a “pena de fome”. Este termo, trazido pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de São Paulo no relatório produzido a partir da inspeção em 27 unidades prisionais do estado durante a pandemia da COVID-19, designa as inúmeras violações ao direito de alimentação das pessoas presas. 

Nesta pena de fome está incluído o jejum compulsório. Isto é: as pessoas presas são obrigadas a permanecer em longos períodos de jejum – segundo o relatório do NESC, em 51,9% das unidades prisionais o intervalo entre a última refeição do dia até a primeira do dia seguinte é de 14 e 15 horas. Em 14, 8%, o intervalo é de 15 a 16 horas. Tal situação não é exclusiva do Estado de São Paulo e se repete em diversos estados. 

Neste sentido, gostaríamos de repensar o termo “tragédia” para designar a fome. Tanto nos presídios, quanto fora deles, a fome atinge um grupo determinado de pessoas – pessoas negras, pobres e periféricas – que são marginalizadas socialmente. Logo, nos parece que a fome é utilizada como um instrumento de tortura – pelo Estado e pela iniciativa privada – para essa população. Trata-se de uma escolha política, e não de uma tragédia, não prover segurança alimentar para as pessoas negras e pobres. Impor a pena de fome às pessoas presas também se trata de uma escolha política, e não de uma tragédia. 

O que vivenciamos hoje, com diversos casos de severa desnutrição de populações excluídas socialmente, trata-se de uma escolha política de quem detém o poder. Pode ser visto como uma tragédia, mas nunca sem caracterizar muito bem seus culpados.

Nos presídios, o Estado e as empresas de quentinhas atuam conjuntamente para gerar insegurança alimentar na população encarcerada. E é contra isso que nós, enquanto Pastoral Carcerária, temos de lutar. O Evangelho já nos ensina: “pois eu estava com fome, e não me destes de comer” (Mt 25,42). Não podemos, portanto, deixar que nossos irmãos e irmãs encarcerados vivam em um lugar em que se escolhe provocar a fome: devemos lutar para retirá-los dos muros e das grades que os torturam.

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