O coordenador nacional da Pastoral Carcerária, Padre Valdir João Silveira, participou do VI Encontro dos Conselhos da Comunidade do Paraná, que ocorreu dos dias 25 a 28 de setembro.
Em 2016, a Pastoral lançou o mais completo relatório sobre tortuna no cárcere no país. O documento confirma que “os nossos presídios são extensões do que aconteceu nos campos de concentração”. A Pastoral Carcerária analisou 105 casos e constatou inúmeros casos de discriminação em razão de raça, etnia, gênero ou orientação sexual, espancamentos, estupros, empalações e omissões.
Na palestra, Padre Valdir fala sobre a Violação de Direitos Humanos no Cárcere. Confira os principais trechos:
O massacre do Carandiru é o grande marco do sistema prisional do Brasil, mas ele faz parte de uma grande relação de massacres. Não está isolado.
No Brasil, a cada 100 mil habitantes, 316 estão presos. Nós temos dificuldades de saber quantos presos temos. Não existe nenhum dado mais ou menos preciso. […] Em 2012 o Brasil assumiu o terceiro lugar do mundo em população carcerária.
Presos provisórios somam 34% nas cadeias e, segundo a ministra Cármen Lúcia, presidente do Conselho Nacional de Justiça, custam R$ 6,4 bilhões por ano. Dessa população julgada, de acordo com estudos, 37% ou é inocente ou já cumpriu todo o tempo de prisão. Além disso, há 500 mil mandados de prisão expedidos e não cumpridos no país, de acordo com o CNJ.
Eu visito todo o país, todas as penitenciárias. Tem locais com celas de homens, celas de mulheres e celas de menores. Não há grades. As violações, aí, são altíssimas.
O sistema carcerário do Brasil é caracterizado por produzir massacres, torturas e mortes. […] Só nos primeiros 15 dias do ano, 142 pessoas foram mortas em presídios do país. No ano passado, foram quase 400.
O Estado tem obrigação de dar kit higiene, mas a grande maioria dos estados do Brasil não dá. Ou os presos ganham em quantidade insuficiente, ou, quando ganham, os materiais são de baixa qualidade e aí as mulheres não conseguem usar sequer um absorvente. No Brasil, na maioria das unidades, ou as famílias levam os kits ou as facções dão higiene para os presos.
A violência sexual ainda se mantém forte nos presídios. Não sei se no Paraná ainda se faz revista vexatória nas famílias ou não. Em São Paulo, a maioria ainda faz, embora seja ilegal. É um estupro coletivo feito todo final de semana nas famílias. É um estupro isso. É crime e se reproduz em todo o Brasil.
A prisão tem uma pedagogia própria, de retirar o saber do preso de viver em sociedade para aprender a sobreviver na clandestinidade. O Estado determina o que você vai ler, o que você vai ver, o que você vai conversar, como vai andar, qual roupa vai usar, como vai cortar o cabelo, a hora que você vai ao banheiro. Você arranca da pessoa toda a sua individualidade, a sua privacidade, sua iniciativa. Num comparativo, é como se, aqui fora, você prender um corredor por ele não saber correr. Você amarra ele no poste. O preso está lá por cometer um crime, por não saber viver em sociedade, então o Estado isola para depois devolver para a sociedade. E ainda chama de reintegração social.
A eutanásia é a morte antecipada sem dor. Mistanásia é morte antecipada com dor, pelo descaso social, pelo abandono, pela dor do sofrimento que a sociedade impõe. Morte desperdiçada. O presídio serve para matar jovens no Brasil. É um local de mistanásia social, onde se antecipa a morte das pessoas.
O Conselho da Comunidade de São Paulo não quer aceitar nem familiar, nem egresso. Ora, você quer que a sociedade aceite, mas o Conselho rejeita?
Quem melhor conhece o sistema prisional é quem visita, quem tá lá dentro. Temos três níveis de conhecimento sobre o sistema prisional: o superficial, que olha de fora, a Academia faz muito isso, pesquisa olhando para o rato de laboratório; aquele que trabalha dentro, visita, vai até a sala do diretor, mas não entra no porão, nas celas, no pátio, na enfermaria, no seguro; e quem conhece, porque não trabalha com ideias, mas com a realidade.
A possibilidade de morrer dentro do presidio é dez vezes maior do que na sociedade. Ainda se morre por tuberculose, doenças sanadas fora. […] Tem milhões parados em Brasília porque as unidades não pedem convênio na área da saúde. Compete ao Conselho da Comunidade cobrar isso em parceria com o município.
No começo de setembro eu estava no presídio federal de Mossoró (RN). Os presos de lá querem estudar, mas os livros que receberam fala em trabalho em equipe, trabalho para consultar na internet. Os livros que vão para o presídio falam de outra realidade. Falta produzir material próprio para a educação em presídios.
Não uso mais a expressão direito humano. Direito tem toda uma definição elitizada. Tem que ser defesa dos humanos.
Se nós queremos que o Estado seja ético em sua conduta, os Conselhos da Comunidade têm que ser também.
A Pastoral Carcerária faz parte de uma Agenda Nacional Pelo desencarceramento. Conseguimos algumas vitórias já, como a Súmula Vinculante 56, escrita junto com a DPU (Defensoria Pública da União). Diz que a pessoa condenada no semiaberto não pode ficar no fechado. Já estava na lei, mas para cumprirem tivemos que entrar com essa ação no STF. […] Outra pauta é a descriminalização do usuário de droga. Parece algo absurdo. A Pastoral tem acompanhado esse tema em nível internacional. A Holanda fez a descriminalização, fecharam 19 presídios por falta de criminosos. Numa viagem eu visitei uma cadeia e falei com um preso condenado por latrocínio, um crime bárbaro. Esse rapaz pegou seis meses de condenação. Falei com o juiz do processo: ‘doutor, latrocínio, só seis meses?’. Ele disse: ‘Padre, quanto mais tempo no presídio, pior fica. Ele vai sair e será incluído no programa de justiça restaurativa’.
Rondônia é um exemplo das contradições do Brasil. É aquela mesma situação calamitosa, mas tem um presídio chamado Acuda, que é uma referência nacional. É o único do Brasil em que a maioria dos funcionários são egressos, o diretor de segurança é egresso. Tem terapia, trabalho, outra forma de lidar. E ao lado tem o Urso Branco. Em São Paulo tem os Centros de Ressocialização, que faz um trabalho qualificado de estudo e trabalho, a comunidade tem acesso ao presídio.
Sou Padre e para nós o Papa Francisco é a grande referência. O critério com que tratares os pobres será o mesmo com que seremos julgados, ele ensina. […] Na cruz, Jesus convidou para entrar no Céu com ele um colega de cadeia. “Hoje mesmo estará no Céu comigo”. O Papa afirma que enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos, será impossível desarraigar a violência.