É manifesto que o sistema prisional brasileiro sempre foi, desde a sua origem, marcado por violência e violações de direitos. O expressivo aumento da população carcerária agravou ainda mais as condições precárias e desumanas das prisões tanto em relação à estrutura física, quanto em relação à assistência material, com a ausência de distribuição de itens essenciais para a sobrevivência, como alimentos e produtos de higiene básica, além da garantia de serviços vitais como assistência médica e jurídica.
Diante dessa estrutura contínua de violações de direitos e descumprimento das normas constitucionais e internacionais, em 2015, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceito Federal (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF), com o intuito de discutir a situação dos presídios brasileiros.
Em outubro de 2023, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ADPF nº 347, reconhecendo a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro e a omissão dos poderes políticos frente a esta situação, fixando o prazo de seis meses para que União, Estados e Distrito Federal elaborem um plano de intervenção, com diretrizes para reduzir a superlotação dos presídios, o número de pessoas presas provisoriamente e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena.
Contudo, o julgamento da ação está sendo ignorado pelo Congresso Nacional que, em uma corrida sem qualquer embasamento em dados objetivos ou em estudo de impacto orçamentário, está em vias de aprovar o Projeto de Lei (PL) nº 2253/2022, que extingue o direito à saída temporária, amplia o uso do monitoramento eletrônico e torna o exame criminológico obrigatório para toda e qualquer progressão de regime.
Por este motivo, faz-se necessário ampliar o debate público sobre a política de morte e de violência do sistema prisional, com a participação da sociedade civil diretamente afetada por ela.
Passados mais de oito anos do início do julgamento da ADPF 347, as condições de desumanização, precariedade e negação de direitos dentro do sistema penitenciário não se alteraram. Embora reconhecido o “estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional brasileiro logo no início da ação, com o julgamento das medidas cautelares, pouco foi feito para, de fato, enfrentar este cenário.
Entre os anos de 2000 e 2022 o Brasil expandiu em 372,5% sua população carcerária. No ano 2000, o Brasil contava com 174.980 pessoas privadas de liberdade, já em 2022, esse número encontrava-se em 826.740, entre homens e mulheres (cis e trans), pessoas idosas, com deficiência, indígenas e outros grupos populacionais. Mais de um terço está preso provisoriamente, enquanto aguarda o julgamento. As denúncias de violações de direitos aumentaram em 98,8%, no período entre 2016 e 2022.
Além disso, os presídios tornaram-se cada vez mais herméticos, obstaculizando a entrada de familiares de pessoas presas, entidades de prestação de assistência religiosa e órgãos de fiscalização.
Na esteira do cenário descrito, o conteúdo do PL nº 2253/2022 apresenta uma intensificação do estado de coisas inconstitucional. Isto porque, com a possível aprovação da extinção das saídas temporárias, passaria a inexistir diferença material entre os regimes fechado e semiaberto. O único ponto de diferença seria que as pessoas presas em regime fechado podem exercer trabalho externo apenas em obras públicas, enquanto as pessoas presas em regime semiaberto podem exercer outras formas de trabalho externo. Contudo, dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) demonstram que menos de 5% de pessoas encarceradas exercem trabalho externo, de modo que esta única diferença entre os regimes seria, na prática, completamente esvaziada.
Já com a aprovação da obrigatoriedade do exame criminológico para toda progressão de regime, trata-se de imposição que carece de embasamento científico. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) vedou a “elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinquente”, entendendo que tais conceitos não correspondem ao standard científico a que a Psicologia se propõe atualmente.
O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), igualmente, problematiza a realização dos exames criminológicos. Como se não bastasse, o desmonte histórico das equipes técnicas prisionais faz com que não existam profissionais suficientes para suportar a demanda que adviria da obrigatoriedade de realização de exame criminológico para toda e qualquer progressão de regime. Teremos, portanto, um agravamento da já reconhecida superlotação dos presídios e um possível colapso do sistema prisional.
A ampliação das hipóteses de monitoração eletrônica, igualmente prevista no PL, subverte a lógica que inicialmente justificou a utilização de tais equipamentos e revela a sanha punitiva do legislador. Ao invés de utilizar a tornozeleira eletrônica como uma alternativa ao cárcere, passa-se a utilizá-la como uma ferramenta de reforço do estigma enfrentado por pessoas que saem do sistema prisional, de forma indiscriminada e sem necessidade de fundamentação em concreto.
Na contramão das alterações que a aprovação do projeto de lei podem trazer, a ADPF 347 trouxe um avanço significativo na prevenção e combate à tortura nos cárceres brasileiros com a determinação de realização das audiências de custódia em todo o país. Se antes a pessoa presa aguardava meses até que tivesse a primeira audiência no âmbito do poder judiciário, após a determinação, se tornou obrigatório que toda pessoa presa fosse apresentada a um/a magistrado/a no prazo de 24 horas, conforme já preconizava a Convenção Americana de Direitos Humanos.
No entanto, a garantia das audiências de custódia também vem sofrendo diversos ataques, sobretudo desde o início da pandemia de Covid-19, quando as instituições do sistema de justiça passaram a entender como possível a sua realização de forma virtual, formato adotado desde então em muitos locais do Brasil. É imprescindível apontar que a decisão que autorizou a realização das audiências de custódia de forma virtual ignora completamente o que foi debatido na ADPF 347 acerca do sistema prisional brasileiro e do quadro sistemático de tortura praticada contra pessoas que são privadas de liberdade, além desconsiderar outras ilegalidades que podem ocorrer no momento da prisão.
Não podemos deixar de lembrar que a audiência de custódia é essencial para a garantia de direitos das pessoas privadas de liberdade e tem impacto direto na realidade de qualquer pessoa que venha a ter sua liberdade cerceada pelo sistema de justiça.
O julgamento da ADPF 347, além de reconhecer o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional, chamou à responsabilidade todos os Poderes que se omitem – ou, ainda, agem para arrefecê-lo – durante décadas com relação ao tema.
As poucas tentativas do Poder Público de supostamente melhorar o sistema prisional, são iniciativas de construção ou privatização de unidades prisionais, ou seja, políticas que não enfrentam o cenário de violações cometidas no cárcere, apenas as pulveriza e tira da sua responsabilidade objetiva o dever de garantir a integridade física e psicológica das pessoas mantidas sob sua custódia.
A aposta em melhorias do sistema prisional a partir da construção de novas vagas – privatizadas ou não – é extremamente falaciosa e problemática. Colchões, vagas em enfermarias, celas de castigo, “seguro”, inclusão e o uso de containers ou shelters são consideradas pelas administrações prisionais como vagas, ainda que não possam ser destinadas à permanência adequada de pessoas.
Ainda, não é possível falar de justiça criminal sem pautar a seletividade penal – a maioria das pessoas presas hoje são jovens (43,1%), negras (68,2%) e pobres. Logo, se há uma população que é alvo do sistema prisional, a lógica de construção de novas unidades prisionais perpassa, necessariamente, pela criminalização destes alvos. Ademais, não há qualquer indício de que a construção de novos presídios diminua a superlotação: das 20 unidades prisionais inauguradas entre 2010 e julho de 2016 no estado de São Paulo, 18 já registravam superlotação em agosto de 2016. Entre 2020 e 2022 – e, portanto, durante a pandemia da Covid-19 -, das unidades prisionais visitadas pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de São Paulo, 81,48% delas estavam superlotadas.
Quanto à privatização do sistema prisional, em 2017 e 2019, unidades prisionais amazonenses, dos quais inclui-se o COMPAJ (Complexo Anísio Jobim), foram palco de massacres que contaram mais de 100 vidas presas ceifadas. À época, o próprio Ministério Público do Amazonas recomendou ao governo que o Estado se abstivesse de “renovar os contratos de prestação de serviços e administração de quaisquer das unidades prisionais do Estado do Amazonas”, aduzindo ainda que “o modelo de gestão prisional adotado parece revelar ser incapaz de solver as mazelas que se revelam em todo o sistema carcerário estadual” .
Por isso, considerando que a decisão que julgou procedente em parte os pedidos feitos na ADPF 347 determinou a elaboração de planos estaduais e federal para a superação do estado de coisas inconstitucional, partimos para a análise dos possíveis efeitos concretos dessa ação, a fim de evitar que sejam adotadas iniciativas inócuas, que não atinjam os objetivos esperados.
Vivemos em um país altamente militarizado, dentro e fora das unidades prisionais: somente no ano de 2023, tivemos operações policiais que deixaram centenas de mortos e milhares de pessoas presas em São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro.
Além disso, o Ministério da Justiça e Segurança Pública aumentou o alcance da antiga FTIP (Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária), agora FPN (Força Penal Nacional), para diversos estados da federação. Vale ressaltar, foi a FTIP que introduziu, em todos os estados do país, a posição de “procedimento” – na qual as pessoas presas, na maioria das vezes nuas, devem ficar sentadas no chão de cócoras com os joelhos encostando nas costas da pessoa da frente e com as mãos atrás da nuca por horas a fio, enquanto policiais e/ou agentes penitenciários, na maioria das vezes fardados e sem identificação, revistam suas celas – e a técnica de tortura de quebra de dedos.
Esta militarização tem o aval dos Governos estaduais e federal e o endosso da opinião pública. Como, então, deixar a cargo destes atores a superação do Estado violador presente nos presídios brasileiros?
Ainda, vivemos em uma sociedade punitivista, que fomenta o discurso falacioso – à direita e à esquerda – de que punições mais severas e o aumento do número de pessoas presas supostamente aprimoram a segurança. O PL nº 2253/2022, por exemplo, se fundamenta na falsa informação de que a saída temporária de pessoas presas agrava a criminalidade, ignorando o dado de que mais de 95% das pessoas que gozam do direito à saída temporária retornam regularmente à unidade prisional para a continuidade do cumprimento da pena.
Como, então, construir alternativas à violência estrutural do sistema penitenciário brasileiro?
Não se trata de uma resposta simples, mas podemos tentar contribuir para o debate. Em 2013 – fazendo, portanto, 10 anos em 2023 -, foi apresentado ao Governo Federal o documento da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, atualmente contando com 10 pontos para incidir nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, fomentando o desencarceramento de pessoas presas.
A decisão proferida pelo STF incorpora o documento, por exemplo, quando determina que juízes e juízas fundamentem o porquê da não aplicação de penas alternativas à prisão. Ocorre que precisamos avançar.
Ao redor do globo, o movimento antiprisional já ganhou um novo rosto: o das/dos familiares de pessoas presas e das pessoas que sobreviveram ao sistema carcerário. São elas que têm produzido conhecimento qualificado do assunto – ainda que não sejam vistas como detentoras dessas análises.
Como o alvo do sistema prisional são pessoas pretas e pobres, consequentemente também o são familiares e sobreviventes. Por isso, entendemos que uma das respostas para as perguntas que fizemos anteriormente é essa: permitir que familiares e sobreviventes detenham poder paritário na elaboração de planos para dirimir as mazelas do sistema prisional brasileiro.
Entendemos que o estado de coisas inconstitucional dos presídios brasileiros só pode ser superado com o desencarceramento das pessoas presas e com a adoção de novas formas de resolução de conflitos. Para isso, é preciso quebrar o círculo acadêmico-institucional, incorporando também o saber empírico e científico de pessoas presas, suas/seus familiares e sobreviventes do sistema prisional, garantindo a ampla participação destas pessoas na elaboração dos planos de intervenção que deverão ser implementados pelo Governo Federal e pelos governos estaduais.
Ainda, considerando que há um prazo de 6 meses para a apresentação do plano nacional de intervenção, é imprescindível que organizações da sociedade civil e movimentos sociais cobrem as instituições incumbidas de dar concretude a esta decisão. O enfrentamento às violações cometidas no cárcere é urgente e necessário e não pode ser esquecido novamente pelo Poder Público que tanto se omitiu.
Por fim, em face desse cenário no qual a prisão é instrumento de controle social e não garante a segurança, a saúde e a dignidade de pessoas encarceradas, é urgente a reflexão sobre como a aplicação da prisão como política pública estatal e não como último recurso é a regra no sistema de justiça criminal. Cabe ao Poder Judiciário assumir a sua contribuição histórica para o catastrófico estado de coisas inconstitucional do sistema prisional e se comprometer a atuar ativamente para romper com a lógica irracional do encarceramento em massa.
Pastoral Carcerária Nacional – CNBB
Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)
Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Conectas Direitos Humanos
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Instituto das Irmãs da Santa Cruz (IISC)
Agenda Nacional pelo Desencarceramento
Associação Amparar de Familiares e Amigos de Presos/as e Internos/as da Fundação Casa (AMPARAR)