Relatório Preliminar do CNJ denuncia torturas, agressões e violações de direitos humanos nas prisões em GO

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No dia 02 de junho de 2023, o CNJ divulgou relatório preliminar sobre o sistema prisional do Estado de Goiás, após inspeções realizadas em 19 unidades prisionais. 

O documento disseca o sistema goiano, mostrando, por meio dos relatos coletados, uma série de questões que violam os direitos e dignidade da população encarcerada, como torturas e agressões, superlotação, atendimento de saúde precário, alimentação de péssima qualidade e insuficiente, agressões a advogados e defensores públicos, constrangimento das e dos familiares que realizam visitas, entre outras.  

Há 26.789 pessoas privadas de liberdade no Estado, dentre as quais 30% destas estão presas sem condenação definitiva. Isso representa um aumento de 113% na última década e o estado registra a 10ª maior taxa de encarceramento do país.

Superlotação

A inspeção constatou que a maioria dos estabelecimentos prisionais do estado funcionam em situação de superlotação. 

“E mesmo entre as unidades que operam abaixo de sua capacidade, foi possível verificar celas superlotadas em detrimento de celas vazias, caso do Especial Núcleo de Custódia, que abriga 3 pessoas em celas projetadas para 1, mesmo com uma taxa de ocupação de 15%”, diz o relatório.

As transferências de presos, sem transparência ou autorização do Judiciário, são corriqueiras, muitas vezes com a “vaga justificativa de ‘mau comportamento’”. 

O relatório afirma que os presos também cumprem quase que a totalidade de suas penas em regime integralmente fechado, por fatores como a demora no trâmite dos pedidos, a ausência de defesa, a exigência rotineira de exames criminológicos que, em sua maioria contra-indicam a progressão, constatações de “maus comportamentos prisionais” não apurados nem formalmente constatados.

Advogados e servidores 

Os/as advogados/as enfrentam problemas burocráticos, entraves administrativos e foram relatadas situações de humilhação e agressão dentro das prisões contra eles.

O relatório também vê com preocupação a situação dos servidores penais. Há 1.854 concursados efetivos e 1.761 Vigilantes Penitenciários Temporários (VPTs), número abaixo do considerado mínimo para atender a demanda do serviço, que seria de 5.000 policiais penais, de acordo com o CNJ.

Essa sobrecarga afeta a saúde mental dos servidores, havendo “um número significativo de profissionais afastados por se encontrarem em sofrimento mental. Outros que solicitaram o afastamento tiveram seus pedidos indeferidos. Os relatos apresentados demonstram situações de excesso de carga de trabalho e elevado risco de suicídio por parte de policiais penais que não se encontram em condições psicológicas de exercer suas atribuições e seguem trabalhando, considerando as condições precárias a que estão submetidos pela própria natureza do trabalho”.

Estrutura das unidades

Em relação à estrutura dos estabelecimentos prisionais, relatos das pessoas privadas de

liberdade dizem que dias antes da inspeção do CNJ, houve distribuição de colchões, novos uniformes e filtros de água, antes inexistentes ou em péssimo estado de conservação. 

Mesmo com essas melhorias, a inspeção constatou que “a estrutura precária desses locais saltou aos olhos (…) No geral, as celas, super ocupadas, não possuem ventilação cruzada, são escuras e não possuem energia elétrica”.5

Esse cenário se agrava com a ausência de atividades físicas ou lúdicas atribuídas às pessoas privadas de liberdade, que passam 22 horas “na tranca” e têm apenas duas horas de banho de sol por dia, por vezes em cubículos inadequados e a céu aberto, ou em horários pouco convenientes ou convencionais. Verificou-se, ainda, estabelecimentos prisionais com banho de sol somente duas vezes por semana.

A água é gelada e suja, além de ser racionalizada, sendo liberada em alguns estabelecimentos somente duas vezes por dia e durante uma hora. Não há água potável própria para consumo e os familiares podem levar apenas 15 litros por interno, segundo relatos.

Materiais de higiene e fome

O acesso aos materiais de higiene é escasso e há relatos de que só ocorre dias antes das inspeções. A distribuição de itens básicos como papel higiênico é proibida, sendo as famílias responsáveis por fornecer esses materiais, tanto para o cuidado pessoal dos internos quanto para a limpeza da prisão.

O Conselho recebeu com preocupação relatos de fome nos presídios de Goiás, devido à qualidade precária e quantidade insuficiente das refeições. Existe uma disparidade na oferta de refeições, variando de três a quatro por dia, com um longo intervalo entre a última refeição do dia anterior e a primeira do dia seguinte. O café da manhã é composto apenas por achocolatado e pão.

Os insumos fornecidos pelos familiares, conhecidos como “cobal”, foram reduzidos aos poucos e apresentam quantidades e especificações diferentes, dependendo da prisão. Durante as revistas para entrar no presídio, os alimentos podem ser descartados. A suspensão da prática de “cobal” ou a ameaça de acabar com ela são frequentemente aplicadas como forma de punição, conforme relatos.

Familiares constrangidas

As visitas são limitadas a 40 minutos, mas devido aos procedimentos de deslocamento, muitas vezes se reduzem a apenas 20 minutos. Nas unidades especiais, as visitas são virtuais, enquanto nas regionais ocorrem no parlatório, com pouco contato físico e relatos de pessoas privadas de liberdade algemadas. O agendamento de visitas por meio de um site dificulta o acesso para quem não possui acesso à internet.

A padronização de vestimentas imposta aos familiares causa estigma e constrangimento, especialmente para as mulheres. 

Atendimento médico insuficiente

Houve relatos de atendimento médico insuficiente, uso excessivo de ansiolíticos, falta de acesso para os que precisam e falta de médicos especialistas e dentistas. Além disso, alguns estabelecimentos prisionais não oferecem tratamento antirretroviral para pessoas soropositivas.

Em unidades femininas, a falta de ginecologistas resultou em mulheres visivelmente grávidas, ou com suspeitas, que não realizaram teste de gravidez e não foram consideradas grávidas pela administração, impossibilitando o pré-natal e a aplicação da Resolução CNJ nº 369. Além disso, os procedimentos de revista física representam riscos para as gestantes.

População LGBTQIA+ marginalizada

O Conselho destaca a marginalização da população LGBTI. Durante as inspeções, foram relatados casos de repressão, discriminação e transfobia por parte das equipes das unidades, incluindo a proibição ou repressão de demonstrações de afeto, separação de casais homoafetivos, proibição do uso de acessórios considerados femininos para pessoas transexuais e negação de hormonioterapia em unidades masculinas.

“Apenas dois estabelecimentos prisionais visitados possuíam alas LGBT, enquanto outras unidades indicaram não possuir esse público, essa classificação não ocorria pela autodeclaração conforme a Resolução CNJ nº 348”.

Tortura


Há evidências claras de maus-tratos sistematizados e generalizados nos estabelecimentos prisionais de Goiás. Pessoas entrevistadas descreveram o uso de balas de borracha e eletrochoques com fotos para provar.

Durante as inspeções, o Conselho registrou pessoas com feridas visíveis, isoladas dos demais, e a existência de salas destinadas à tortura em muitos estabelecimentos prisionais. “Foram documentadas fotos de hematomas, marcas de balas de borracha e choques elétricos. (…) O DMF e a Corregedoria Nacional de Justiça estão acompanhando esses casos junto às autoridades locais, recomendando uma investigação rigorosa”, aponta o relatório.

O CNJ identificou evidências de tortura sistemática nos estabelecimentos prisionais inspecionados. Essa situação pode estar relacionada ao chamado “procedimento”, um conjunto de regras que restringem os direitos das pessoas privadas de liberdade, sob o argumento de controle e segurança das unidades.

O “procedimento” foi percebido como um método de controle baseado no medo e na ameaça nas unidades prisionais e fora delas. A falta de investigação adequada ou insuficiente das responsabilidades nos casos denunciados é preocupante e a apuração de denúncias de tortura e maus-tratos não possui transparência.

O que diz a Pastoral Carcerária Nacional

Não é de hoje que denunciamos as mazelas do sistema prisional goiano. Dos 611 casos de tortura típica e estrutural registrados em nosso banco de dados entre 1º de junho de 2018 e 1º de junho de 2023, 56 são do estado de Goiás. No último ano (de 1º de junho de 2022 a 1º de junho de 2023), de 177 casos de tortura, 14 são do estado de Goiás.

Durante estes anos, reportamos diversas situações de violações de direitos às autoridades do Estado e no âmbito nacional. Em 2016, a atual Coordenadora Nacional da Pastoral Carcerária, Irmã Petra Silvia Pfaller, denunciou a superlotação no Centro de Triagem do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia – na época, a unidade estava com 500 pessoas presas para 212 vagas.

Em fevereiro de 2018, a Pastoral Carcerária Nacional se manifestou sobre a rebelião que ocorreu no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, que resultou na morte de 9 pessoas presas e 14 feridos. Na época, analisamos da seguinte maneira a situação:

“O que ocorre no início de 2018 não é mera coincidência. As medidas adotadas pelo poder público para “resolver a crise” do sistema carcerário após os massacres do ano passado foram no sentido de aumentar a repressão e o encarceramento, com propostas como a construção de novas unidades prisionais.

Em nota escrita após os massacres de 2017, a Pastoral Carcerária Nacional já avaliava que essas medidas não iriam resolver nada; pelo contrário, iriam aprofundar a violência nas prisões.

“Na atual conjuntura, não podemos cair na falácia das análises simplistas e das medidas que pretendem apenas aplainar o terreno até o próximo ciclo de massacres”.

As rebeliões ocorridas no dia 1º de 2018 mostram, novamente, que o sistema carcerário não está em crise. Ele cumpre a sua função perfeitamente: torturar e matar a população que está atrás das grades, em sua maioria pobre e negra. Violações de direitos, superlotação, condições sub-humanas, tortura e mortes fazem parte do cotidiano do sistema carcerário brasileiro.”

Em 2019, novamente no Complexo, denunciamos à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Tribunal de Justiça situação de violações de direitos que culminaram na fuga de 24 pessoas presas e posteriores retaliações

Em 2022, fazendo coro a mais de 140 entidades de defesa dos Direitos Humanos, a Pastoral Carcerária Nacional divulgou a “Nota Pública em Defesa da Lei: a tortura é expressamente proibida em território brasileiro”. Além de denunciar o alarmante aumento de 126% dos casos de torturas nos presídios de Goiás, as entidades cobraram do governo do estado a sua imediata apuração, incluindo as que envolvem o atual policial penal Josimar Pires Nicolau do Nascimento, atual diretor-geral de Administração Penitenciária de Goiás e seu antecessor tenente-coronel da PM Franz Rasmussen Rodrigues. Na carta, foi trazida reportagem do El País, em que Nascimento confessa a prática de tortura.

Nesse período, o Ministério Público, na figura do Promotor Fernando Krebs, disse que a Nota apresentava “uma distorção grande sobre o que que está havendo e acho que tem interesses escusos por trás disso”. A Pastoral ingressou com Representação na Corregedoria do órgão contra o promotor, que foi arquivada por “inexistente justa causa que possa dar ensejo à instauração de procedimento disciplinar”. 

Em janeiro deste ano, enviamos ofício à Defensoria Pública, Tribunal de Justiça, Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, Ministério Público, OAB-GO e para o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Conselho Nacional de Justiça, denunciando a fome na Unidade Prisional Especial de Planaltina. A denúncia diz que as pessoas presas estavam recebendo uma única refeição por dia. O processo investigatório foi arquivado pelo Tribunal de Justiça. O Ministério Público informou a abertura de Inquérito Policial, até o momento sem atualizações.

Depois do dia 02 de junho de 2023, data da publicação do Relatório Preliminar do CNJ, dos 10 casos registrados no banco de dados da Pastoral Carcerária Nacional até a data de publicação deste texto, 3 são do estado de Goiás. 

Isto é, mesmo após a visita do órgão e após todas as constatações feitas no relatório, os policiais penais, os diretores, a administração penitenciária e os poderes Judiciário e Executivo continuam a agir para violar os direitos da população privada de liberdade. Em 11 de junho recebemos a denúncia de uma pessoa presa, que é idosa, e foi internada no Hospital com 3 balas de borracha em seu corpo, após 9 dias sangrando na cela sem qualquer prestação de socorro.

Enviamos o Ofício para o Conselho Nacional de Justiça e para a Defensoria Pública, esta última acusou recebimento e informou que estava providenciando defensores para visitar a comarca, que não possui Defensoria Pública.

Entendemos que o relatório preliminar do CNJ trouxe denúncias que familiares de pessoas presas, sobreviventes do sistema prisional e organizações de defesa dos Direitos Humanos fazem há anos, e há um resultado positivo nestas denúncias: diretores de unidades prisionais e servidores têm sido afastados do cargo, por conta de denúncias de torturas,  como ocorreu recentemente na unidade de Caldas Novas.

Foi uma luta desses agentes também que levou o CNJ ao estado, mas o Conselho não pode deixar que estas pessoas continuem a pagar por denunciar: é preciso continuar fiscalizando para que as pessoas presas não sofram represálias. 

 

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