Artigo: Livrai-nos do cárcere e da fome! Amém!

 Em Igreja em Saída, Notícias

Por Lucas Duarte

Certa vez, numa dessas unidades prisionais Brasil a fora, onde quase 1 milhão de irmãos e irmãs vivem um verdadeiro inferno na terra, enfrentando as piores condições, as quais o ser humano pode ser submetido. Muito calor no verão, muito frio no inverno. Alimentação de má qualidade. Sem trabalho ou lazer. Tendo que dividir sua intimidade com 10, 15 até 30 outras pessoas desconhecidas. Médico, dentista, advogado e juiz lá não vão. O único fiapo de esperança a que se agarram é a visita de um parente. Uma mãe, uma vó, uma esposa, raras vezes um pai, um irmão, um esposo, que fazem estes irmãos e irmãs acreditarem ainda no amor, a crerem que este mundo pode ser outro.

Foi ali no pátio, cuja capacidade ultrapassava os limites do inimaginável, entre uma partida improvisada de futebol, corte de cabelo e exercícios físicos, que cerca de uns 12 desses homens se reuniram ao redor de duas senhoras que lá foram em busca de Jesus de Nazaré. A pele branca delas contrastava com a negrura dos rapazes, vestidos religiosamente camisetas brancas e calças caquis, o idioma parecia algo próximo ao português com sotaque arrastado, mas que eles compreendiam com dificuldade, dado a diversidade de ruídos. Era o palavrão do futebol, a bola contra parede, a máquina no pente n° 2 que fazia um degradê na lateral, a contagem no supino improvisado com garrafas pet cheia d’água.

Aquela reunião de irmãos começou com um canto mau cantado, mas cheio de fervor. Os homens soltaram a voz, clamando pela luz do céu. Na parede lia-se meio apagado: Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo do Raio 05. A conversa era sobre a fome. As senhoras contaram a história de um homem que esteve preso por seis anos. Na rua, não conseguia emprego, fazia alguns bicos. Com três filhos, a mulher e a mãe doente pegava cesta básica na segunda com os Vicentinos, na quarta com na Assembleia de Deus e no domingo com o Terreiro.

O pouco que ele e a esposa conseguiam arrumavam mistura, mas não era sempre. Na dificuldade, mandavam as crianças para comer na escola, ou privavam os adultos de uma refeição completa. Não demorou muito para um amigo convidá-lo para uma fila que traria dinheiro rápido e tiraria a barriga da miséria. Poderiam pagar os aluguéis atrasados, fazer um festa para as crianças, dar consolo para a mãe e até reformar o barraco, quem sabe mudar para rua principal.

A proposta era irrecusável, mas ele recusou. Entre bicos e dificuldades, voltando para casa, em uma abordagem da Polícia, depois de levar algumas bofetadas e pontas pés, os homens da lei forjaram esse homem. A vida que estava ruim, ficou pior. O homem voltou para cadeia acusado de tráfico de drogas e a família no sufoco, como era “reincidente” corria o risco de tirar dez anos de ponta a ponta. Com certeza quando saísse os filhos já estariam crescidos. Não deu nem tempo de avisar a mulher. O dinheiro daquela diária foi repartido entre o Cabo e o Soldado.

Ao final da narrativa, as senhoras perguntavam aos homens se alguém ali conhecia uma história parecida. Eles meio tímidos, meio com curiosidade para saber o que vinha depois, aos poucos, levantavam as mãos pedindo a palavra. “Vixeeeeeeee dona, metade dos ladrão aqui tão nessa situação”. “O cara tá suave na rua, quer correr pelo certo, sustenta o pessoal dele, mas o demônio arrasta”. “Senhora, licença pra falar, ali no meu barraco, tem um menino que chegou ontem nessa situação. Ele foi forjado. Se puder dar uma atenção para nós do barroco três. Nós agradece”.

A partir daí o papo se desenvolveu. Novas perguntas e novos relatos de violências. Lá pelas tantas, elas perguntaram pela alimentação da casa, recordando que na história o homem e a mulher passavam fome. “Fala a real pras senhoras, fome fome eu nunca passei, mas a comida daqui é lavagem. Nem cachorro come as blindada que a casa paga. Se não fosse o meu pessoal, não dar não.”

Um dos homens meio de canto meio calado, só observando, resolveu falar. “Eu já passei fome, ou melhor, eu passo fome aqui. Não só eu. A maioria aqui passa fome. Vários tipo de fome. Cada um tem sua fome. Eu já passei fome de comida e ainda tô passando.”

Esse homem começou a explicar suas ideias, enquanto todos tentavam ouvi-lo com atenção, entre os ruídos da máquina de cortar cabelo, a contagem dos exercícios físicos e a partida de futebol. Tudo ao mesmo tempo. Ele dizia que em todas as unidades que ele passou, aquela era a pior. Os agentes eram muito violentos e o regime muito rigoroso e arbitrário. Ao que todos concordaram, balançando a cabeça. Outros com os olhos cheios d’água tentavam dissimular o sentimento.

O homem prosseguia. O assunto da fome voltou pela sua explicação dos horários das refeições na cadeia. O café frio e com pouca manteiga vinha umas 7h. Um pão pra cada do barraco. O almoço que chegava da empresa terceirizada às 10h, só vinha pro raio às 12h30, depois de ficar exposta ao sol. Uma lembrança de proteína, arroz cru, feijão seco e azedo. O jantar servido às 17h, logo após à tranca. Depois só no outro dia. “Se isso não é passar fome, eu não sei o que é.” Até aquele que dizia não ter passado fome concordou. O assunto ficou tenso e pesado, mas o homem não parou. “Além dessa fome, eu tenho fome de liberdade, tenho fome de grama verde, de pipa no ar, de criança brincando, tenho fome de abraço…”

Ele seguiu enumerando diversas atividades prazerosas que o concreto e as grades daquele lugar o privaram de desfrutar. Tudo o que poderia favorecer a resolução da situação-problema em que ele estava envolvido, ali naquele espaço era proibido pelo sistema. Tudo que importava para o seu processo era ignorado pelos doutores. Todas as suas fomes foram agravadas com a sua passagem pela cadeia.

O discurso se encerrou com o aviso de que já se aproximava a hora da tranca. As senhoras nem perceberam a hora passar. Uma delas quis acelerar o final com as partes programadas daquela celebração, com a leitura do texto de Mateuspartilha, preces cânticos, a bênção. A colega indicou que seria melhor encerrar ali, pois ainda tinham que ir ao X3. Elas agradeceram todos que participaram, falaram da importância desses encontros, prometeram voltar na próxima semana e tentaram ensinar um cântico desafinado desconhecido pelos homens. Rapidamente eles criaram uma melodia que achavam apropriada e a plenos pulmões cantavam: “Eu vim para que todos tenham Vida, que todos tenham Vida plenamente”.

Foi assim que aconteceu. Ali no pátio. Entre irmãos que sobrevivem ao inferno. Na galeria, deu pra ouvir uma reclamando que não deu pra ler o Evangelho, ao que a outra completou: “Por hoje nos basta o Evangelho da vida desses homens, agora é hora de agir. Você viu que eles ficam mais de 12h sem comida? E a qualidade dessa comida? Vamos conversar com a coordenação”. Antes do último tchau.

Depois de passar por tanta grade e seus barulhos estridentes, que dificulta o simples estender a mão aos policiais com suas caras fechadas, sorrisos cínicos e poucos afetos sinceros. Um desses, daqueles que não é muito amigo das senhoras, que não compreende porque duas velhas perdem tempo com a bandidagem com tanta criança precisando, sempre tem um comentário inoportuno. Ele, dessa vez, resolveu perguntar como estavam os anjinhos. Recebeu como resposta unívoca: “Com fome!”

Lucas Duarte é coordenador da Pastoral Carcerária de Curitiba

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