Por Luisa Cytrynowicz*, da Pastoral Carcerária
Para a Ponte Jornalismo
Naquele sábado, desde antes do sol nascer, a entrada do complexo prisional de Itaitinga era marcada por um pálido ambiente branco e cinza formado por familiares – em sua maioria mulheres – que viajaram de todos os cantos do estado do Ceará para visitar seus entes queridos que estão encarcerados. Desde a chegada do novo Secretário de Administração Penitenciária, a exigência de uniformização dos presos foi estendida às famílias: só se pode visitar vestindo calça cinza, blusa branca e chinelo branco.
Ninguém sabe dizer onde consta essa obrigação, mas o fato é que quem não estiver vestido assim não entra. Se tiver bolso na calça ou detalhe na blusa, é dar meia volta. As crianças, correndo por ali, também usam as mesmas cores que as mães. “Eles dizem que pra criança não precisa, mas qualquer roupa que eu coloco nele inventam um motivo pra mandar voltar. Pra não ter que passar esse sufoco toda vez, prefiro trazer ‘fardado’ também”, comenta uma mãe.
Antes de seguir às unidades, as famílias passam por algumas barracas de venda montadas à beira da BR. Para quem tiver condições de arcar com mais esse gasto, lá existem as “guardadeiras”, com quem se pode deixar a bolsa até o término da visita, pois nos presídios não tem armário. Para quem não tiver esse dinheiro, é tentar a sorte, escondendo os pertences no mato.
Na bolsa, a importância de levar uma troca de roupa: quem fizer o trajeto para casa de branco e cinza é reconhecido nas ruas e no transporte como “família de bandido”. Com sorte, são só olhares tortos e humilhações. O medo mesmo são as retaliações e cobranças entre as facções que tomam conta de um ou outro território, e para quem o rótulo de “familiar de preso” criado pelas exigências do Estado é um prato cheio.
As “guardadeiras” também vendem produtos de higiene e uniforme. Diante da falta de fornecimento de itens básicos por parte do Estado, são as famílias que garantem, por meio da entrega do malote, que os presos recebam roupas e materiais para limpeza. O uniforme dos presos é um calção laranja e as mesmas blusas e chinelos brancos. Desodorante, só se for rolon transparente, e ainda tem que jogar fora a bolinha que se usa para passar. “É que a bolinha abre cadeado”, brincou uma mãe, já esgotada com as restrições sem propósito. A pasta de dente tem que ser espremida inteira em um saquinho transparente. Se estiver com embalagem, não entra.
Por fim, são vendidas comidas. Para as famílias, chegadas de viagem, e para levar na visita. Aos presos, é permitido aos familiares levar somente quatro sanduíches do tipo misto (com exatas uma fatia de presunto e uma de queijo, sem manteiga ou maionese no meio), uma maçã, um refrigerante – que não seja escuro – e uma garrafa de água. Essa se mostra de grande valia, pois é a possibilidade de ao menos uns goles de água potável em um cotidiano em que toda a água disponível – para banho, descarga e para beber – vem do mesmo tanque.
E após todo esse trabalho preparando os itens para a entrega, muitas familiares ainda não conseguem entrar, pois a entrega do malote é possível apenas em dias específicos, detalhados em um calendário que muitas das famílias não têm acesso. E quando a data muda, elas não são avisadas, ou acabam não vendo, sendo obrigadas a retornar para a casa, com o malote em mão.
Antes, havia uma quantidade maior de alimentos permitidos. Ainda que as famílias tivessem sérias dificuldades financeiras na compra dos materiais, o corte bruto das comidas e itens permitidos no malote é motivo de grande aborrecimento nas filas – são muitas as mães que sinalizam que deixariam de comprar o próprio alimento para dar de comer ao filho lá dentro. E a comida não só não melhorou, contam, como tem vindo em menor quantidade. “Por que então não deixam que a gente traga?”, questiona uma mãe.
Depois que a onda de branco e cinza seguiu a caminhada rumo aos presídios, uma senhora ficou, o olhar perdido na estrada. “Não vai visitar?”, indaguei. Ela contou que mora a uns 400 km de distância dali. Sem dinheiro para a passagem, conseguiu uma carona de quinta para sexta-feira de sua cidade pra lá. A visita de seu filho era só no domingo, mas o importante era chegar.
Agradeceu a Deus o transporte e mandou-se para Itaitinga, uma mão na frente e outra atrás. Sem um centavo para comida, muito menos hospedagem. Disse ao marido que tinha uma amiga por lá, onde poderia dormir. Ela não conhecia ninguém, mas era o jeito de ir. Perguntei se ela estava dormindo ali mesmo, na porta do complexo. “Não é bem dormir, que pegar no sono eu não pego. Mas tô passando o dia – e a noite – por aqui”. Apesar da fome, não se cabia de ansiedade para encontrar o filho. Fazia meses já que não o via. Antes, o filho estava preso na cidade em que vive a família e a mãe lhe fazia visitas regulares. Com o fechamento da cadeia em que ele estava, no entanto, à distância das grades se somaram centenas de quilômetros.
Assim como seu filho, milhares de outros presos foram transferidos para longe depois que a Secretaria de Administração Penitenciária fechou quase 100 cadeias públicas espalhadas por todo o estado no início deste ano, colocando ainda mais gente nos já superlotados presídios concentrados na região metropolitana de Fortaleza e nos polos do Cariri e de Sobral. Alguns presídios tiveram a população mais do que duplicada em um intervalo de poucos dias. E se nem juízes, promotores e defensores foram avisados das transferências, o que dirá as famílias. A senhora que repousava na porta do complexo suou para descobrir onde haviam levado seu filho. Seu único filho.
Para chegar à entrada de qualquer um dos presídios da região metropolitana de Fortaleza é preciso estar fardado e a pé, já que a van que subia aos presídios mais distantes foi proibida de passar do primeiro portão. Sob chuva ou sol, de bengala ou com crianças de colo, as familiares caminham até a unidade que vão visitar. As visitas ocorrem entre 8h e 13h. Naquele sábado em Itaitinga, sob o sol a pino, a fila andava a passos lentíssimos. “Problema no sistema”, alguém comentou. A maior parte das pessoas ainda aguardava entrada, horas depois, quando o relógio bateu 11h45 e nós deixamos o local.
Nesse intervalo de tempo, conversamos com algumas mulheres que percorriam o caminho de volta. “Disseram que meu marido mudou de vivência”, comentou uma senhora, quando lhe perguntamos o motivo do retorno. “Castigo”, disse outra. O relato de que vez ou outra se dá com a cara na porta é geral: sempre que o preso muda de “vivência” (pavilhão) ou de cela, por qualquer motivo que seja, ou quando a “vivência” ou a cela estiverem de castigo (o tal do castigo coletivo proibido pela legislação), a visita é barrada.
E avisar a família – para que esta não tenha que se deslocar, por vezes de outras cidades, colocar uniforme, preparar os quatro mistos com exatas uma fatia de presunto e outra de queijo, gastar o dinheiro que não tem, se revirar na cama com o nervoso da visita na noite de véspera, caminhar a pé da entrada do complexo, aguardar uma manhã inteira de fila no sol para ouvir que “ele mudou de cela” – não faz parte do protocolo das unidades prisionais. E como ocorre agora em todo o estado, a próxima tentativa é só dali a 15 dias.
*Luisa Cytrynowicz é assessora jurídica da Pastoral Carcerária Nacional e visitou o sistema prisional do Ceará no início do mês de agosto.