Por Lu Sudré,
Do Brasil de Fato
A superlotação do sistema carcerário brasileiro se agravará caso Jair Bolsonaro coloque em prática declarações feitas antes de ocupar o Palácio do Planalto. Em novembro, o político do PSL afirmou que, caso o Estado não tenha recursos para ampliar as cadeias, seria necessário “amontoar” os presos.
Em 26 anos, a população carcerária do país multiplicou oito vezes e chegou a mais de 726 mil pessoas, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), organizado pelo Ministério da Justiça e divulgado em 2017.
Os números mostram que o país tem uma taxa de superlotação nas cadeias de 197,4%. Ou seja, o Brasil aprisiona quase duas vezes mais detentos do que o sistema poderia suportar.
Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro chegou a defender o fim das audiências de custódia, que são uma das formas de evitar o aprisionamento e identificar a prática de abuso policial. O político também sugeriu que a superlotação do sistema não deve ser uma preocupação do presidente da República.
Luisa Cytrynowicz, do setor jurídico da Pastoral Carcerária (PCr), critica o descaso do presidente eleito com os presos.
“Estamos bastante preocupados com as declarações do novo governo, declarações como ‘vamos amontoar os presídios’. Como se as pessoas já não estivessem amontoadas, e como se isso não significasse violações brutais de direitos. Não podemos aceitar. Nos preocupa muito um governo que fale abertamente de violações de direitos tão graves”, afirma Cytrynowicz.
De forma contundente, a advogada defende que a prisão é um espaço de tortura estrutural. Para além da tortura física, que também ocorre dentro do cárcere, ambientes insalubres são outra forma de violação.
“Dormir em 45, uma sala em que caberiam 10, é tortura”, exemplifica. “Não tem visita que façamos enquanto Pastoral Carcerária em que não haja situações degradantes. A superlotação está presente em todos os estados, mas também a falta de assistência básica, falta de medicação, falta de profissionais responsáveis que possam cuidar, como médicos, por exemplo. Muitas pessoas amontoadas, presença de ratos e baratas. O quadro geral é muito grave, está insustentável”, conclui.
A falta de água potável e a utilização de armamento não letal, como balas de borracha, também são problemas recorrentes.
Na mira da privatização
Em transmissão ao vivo em sua página do Facebook, Paulo Guedes, “guru econômico” de Bolsonaro e ministro da pasta de economia do novo governo, declarou ser favorável à privatização de todos os presídios. O economista fez doutorado na Escola de Chicago (EUA), conhecida por adotar uma linha política ultraliberal, que favorece o capital privado.
Na interpretação de Cytrynowicz, o que move esse interesse é a busca pelo lucro. Ela explica que em muitos presídios já existem setores de serviços privatizados, como por exemplo, a alimentação produzida por uma empresa terceirizada.
“O que observamos é que isso não necessariamente significa a prestação de um serviço melhor, mas significa que tem gente ganhando em cima daquilo. Presídios privatizados tendem a ter ‘garantia de público’. Ao ceder o presídio para uma empresa privada, é garantido que haverá 300 pessoas encarceradas naquele espaço. A polícia vai procurar e a polícia vai mandar prender para garantir que tenham pessoas para preencher as vagas prometidas a essa empresa privada”, explica a integrante da PCr.
“Trancados como bichos”
Maria Aparecida*, da Associação de Familiares e Amigos de Presos (Amparar), conta que o sistema prisional brasileiro viola seus direitos enquanto mãe e mulher. “Quando nossos filhos ou companheiros vão para esses lugares, nos deparamos com vários tipos de violações de direitos humanos. Quando se tira uma pessoa da rua e tranca como um bicho, isso é uma violência”, ressalta Aparecida.
Para ela, a revista vexatória, a que as mulheres são submetidas quando vão visitar seus familiares, é outra grave e recorrente violência nas prisões brasileiras. “Eu tinha que me despir, ficar pelada, isso era uma violação com meu corpo. Eu tinha que tirar minha roupa em frente a uma pessoa que eu nunca vi. Agachar duas vezes de frente e de costas para a funcionária”, diz a integrante da Amparar.
“Eles não conseguem detectar o que é corpo estranho, fezes e gases. Tivemos há algum tempo atrás uma cadeia em que várias mulheres foram obrigadas a fazer o ‘número 1’ e o ‘número 2’. Isso é uma violação de direitos humanos”, acrescenta, em tom de acusação.
“Você só tem uma visão do que é o cárcere quando se tem algum parente lá dentro. O meu filho praticamente perdeu sua identidade. O Estado nada fez por mim e nem pelo meu filho. Se ele está bem hoje é porque eu sempre corri atrás, sempre procurei dar direitos pra ele. Até então, a única política pública que nossos filhos acessam é o Judiciário. Política pública, de verdade, não tem”, finaliza Aparecida.
Gênero feminino no cárcere
As penitenciárias brasileiras mantêm presas 42.355 mulheres, em um sistema prisional com cerca de 27 mil vagas femininas. As informações são do relatório Infopen Mulheres 2018.
O documento aponta que a média nacional é de 40,6 presas para cada grupo de 10 mil mulheres. Com isso, o Brasil ocupa a quarta posição no ranking mundial de aprisionamento feminino. Entre 2000 e 2016, o número de mulheres presas subiu de 5.601 para 42.355, um crescimento de 656%, enquanto a média mundial foi de 110%.
Segundo informações da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), 70% das mulheres privadas de liberdade foram condenadas pelo crime de tráfico de drogas. Rosilda Ribeiro, coordenadora da Pastoral Carcerária para a questão da mulher presa, explica que 45% do total de presas são provisórias – ou seja, elas ainda não foram julgadas.
Ribeiro acrescenta que, na maioria dos casos, as mulheres são “mulas” – como são conhecidas as responsáveis pelo transporte de drogas – e se sujeitam a ocupar os postos mais vulneráveis do tráfico por falta de opção.
As mulheres são vítimas de um isolamento ainda maior do que os homens presos. “Percebemos que no presídio masculino, no dia da visita, a fila é enorme. Já as mulheres são abandonadas pelos companheiros, que muitas vezes as usam até que elas caiam no sistema. E, quando elas caem lá, eles arrumam outra vítima. Infelizmente, é dessa forma que a mulher é tratada. Ela é usada e acaba ali, naquela solidão”, lamenta a coordenadora da Pastoral.
Relatos do cárcere
Carla Regina*, egressa do sistema prisional, afirma que as violações de direitos eram constantes dentro da penitenciária. “Para falar de direitos humanos, nada como falar do inverso, que é a tortura. A tortura no cárcere começa desde o momento em que se é preso porque já há uma tortura psicológica, por tudo que pode acontecer”, afirma Regina.
A falta de informação sobre as ações policiais no presídio, a pressão psicológica, as condições insalubres e a falta de alimentação adequada são alguns dos principais aspectos de violência e degradação, segundo a egressa. “É pouca comida. Meia caneca de arroz e de feijão. Na janta, a mesma coisa. A salsicha é verde. Eles desligam a geladeira para economizar energia e acabam estragando os alimentos”, denuncia.
“Eles dão quatro rolos de papel higiênico mensal, de quinta categoria. O papel higiênico dissolve. É horroroso. Seria um por semana, mas não dura. Os absorventes também são poucos, quando tem, e da pior qualidade”, detalha Carla. “A pasta de dente era tão forte que nós lavávamos tapetes de barbante com um pouco dessa pastar porque não tinha sabão em pó. Fica estalando de branco, e destruía o tapete. O sabonete também, deixa a pele coçando”, acrescenta.
Carla Regina também relata que, em liberdade, enfrentou muitas dificuldades para conseguir emprego. Esse preconceito a motivou a ajudar outras mulheres que passam pela mesma situação. Hoje, ela acompanha a saída de outras presas da Penitenciária Feminina no Butantã e desenvolve um projeto para ajudá-las a retornar ao mercado de trabalho.
*Nomes fictícios utilizados para preservar as identidades da entrevistadas
Edição: Daniel Giovanaz