A prisão em massa de mulheres e as violações de seus direitos

 Em Mulher Encarcerada

Por Luisa M. Cytrynowicz
Integrante da equipe jurídica da Pastoral Carcerária Nacional
Texto publicado na edição de março da Revista Ave Maria

“Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas” – Audre Lorde.
O ano de 2017 se iniciou com os olhos da sociedade voltados ao sistema prisional. Só nas duas primeiras semanas de janeiro, o número de mortos nas chacinas do norte do país passou de 130. Mas será que toda essa atenção cuida de olhar para a estrutura que levou a essas mortes? Ou o sumiço desse assunto das manchetes dos jornais levará as mais de 620 mil pessoas presas novamente ao esquecimento?
Neste dia 8 de março, é das mulheres presas no Brasil que trataremos de falar: das 40 mil mulheres invisíveis que estão confinadas nos já abandonados porões do mundo do encarceramento. Para que não tenhamos que esperar uma centena de mortes no cárcere feminino para que nos atentemos às violações cotidianas a que elas são submetidas.
Os últimos dados lançados pelo governo federal a respeito das mulheres presas apontam que entre 2000 e 2014 o aumento da população feminina foi de 567,4%. Se no ano 2000 havia menos de 6 mil mulheres atrás das grades, em 2014 essa população passou dos 37 mil. A média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%. (1)
Isso significa que, por mais que as mulheres ainda sejam a minoria do sistema carcerário, representando aproximadamente 7% da população total, a taxa de crescimento do número de mulheres presas no Brasil superou, e muito, a já exorbitante taxa para o aprisionamento masculino, vindo a compor a onda de encarceramento em massa como falsa solução aos conflitos sociais.
Crimes acontecem todos os dias e nos diversos estratos sociais, mas quem cai na teia do sistema de justiça criminal é uma parcela muito específica. É a população pobre, preta e periférica, a quem o Estado rotula de criminosa. E no contexto de um sistema penitenciário construído por e para homens, entender as condições do aprisionamento feminino passa por se debruçar sobre o espaço que a mulher ocupa na sociedade e as expectativas sociais que lhe são atribuídas.
O crescente aprisionamento de mulheres, a maioria mães, pobres, negras, de baixa escolaridade e únicas responsáveis pelo sustento do lar, mostra-se como umas das faces perversas e atuais da criminalização da pobreza e da desestruturação de famílias periféricas; como um processo de aprisionamento social e moral das mulheres que romperam com a expectativa social e o estereótipo do “ser mulher”, da docilidade e do cuidado.
Se a sociedade se acostumou com a ideia de que homens podem “deslizar” e cometer crimes, no caso das mulheres isso parece um desvio mais grave, da “natureza da condição feminina”. Desse modo, àquelas que ocuparam pequenos cargos dentro do tráfico de droga para complemento de renda, que compõem a grande maioria das mulheres encarceradas hoje, o rótulo de criminosa afasta o acolhimento e a compreensão da família e da comunidade: basta comparar as filas de visitas de prisões masculinas e femininas e ver que, se no caso dos homens as famílias empregam grandes esforços para estar junto e visitar seus filhos, irmãos e maridos encarcerados, no caso das mulheres o abandono das famílias é o cenário mais recorrente.
Chama atenção que quase 70% das mulheres presas no Brasil foram detidas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Nesse sentido, impossível pensar sobre o encarceramento de mulheres sem problematizar a política de guerra às drogas. A proibição do comércio e do uso de entorpecentes impede a formulação e implementação de políticas públicas para lidar com a questão das drogas e leva ao aprisionamento milhares de pessoas que ocupam os postos mais vulneráveis no tráfico – assim como ocorre com as mulheres no mercado de trabalho como um todo – e são presas por crimes sem violência.
E uma vez encarceradas, além das violações cotidianas que acontecem também nas ruas, dentro da prisão a situação de violência contra a mulher é levada ao extremo. No entrelaçamento entre questões de gênero, raça, sexualidade, de criminalização da pobreza, o cárcere se mostra enquanto espaço estruturalmente violador de direitos, de condições degradantes, superlotação, ausência de assistência médica, material, jurídica; o cárcere é local de tortura. A autonomia da mulher presa é arrancada: é despida de seu nome, de suas roupas, de seus gostos e desejos, de sua liberdade sexual, de sua vida e suas escolhas enquanto mulher, de seus vínculos familiares.
Pelo fato de serem uma minoria dentro do sistema prisional, as mulheres são encarceradas nos chamados presídios regionais, que aglomeram em uma unidade mulheres vindas de diversas localidades. E as relações familiares, já fragilizadas com o momento da prisão, tornam-se inviáveis, uma vez que os parentes, em geral muito pobres, não têm condições de atravessar o Estado para realizar visitas. Isso também dificulta a sobrevivência na prisão, uma vez que as mulheres e também os homens presos dependem de alimentos e produtos de higiene levados por familiares, já que o poder público é omisso em seu dever de assistência material.
Triste recordar, também, que apesar de ser proibido pela lei, a maior parte das mulheres presas hoje está em unidades mistas, onde são recolhidos homens e mulheres. Dados do Infopen Mulheres, de junho de 2014, apontavam que apenas 7% dos estabelecimentos prisionais são femininos, sendo 75% masculinos e 17% mistos, em geral unidades originalmente masculinas que passam a ter um prédio, ala ou até uma cela reservada especificamente para mulheres.
Nesses locais, apesar de uma suposta divisão entre alas ou celas, diversos são os relatos feitos por mulheres de violências sexuais e trabalhos domésticos por parte de agentes penitenciários masculinos – que pela lei não poderiam trabalhar junto às mulheres presas – e por parte da população prisional masculina, sendo a manutenção dessas unidades a opção do poder público pela perpetuidade de tais violações.
Ademais, a maior parte das mulheres em situação de prisão são mães e o seu encarceramento poderia ser evitado com a aplicação de prisão domiciliar (2). Entretanto, poucos são os juízes que concedem esse direito, o que faz com que muitas crianças tenham que ir a abrigos se não houver um familiar que possa acolhê-las, e muitas mulheres sejam forçadas a dar à luz, por vezes até algemadas, e cuidar dos primeiros meses de vida de seus filhos no ambiente degradante que é o prisional.
E uma vez mães, essas mulheres são obrigadas a parar de estudar ou trabalhar (se tiveram a sorte de conseguir vagas) e suas vidas passam a girar integralmente em torno da criança. É a situação caracterizada por Ana Gabriela Mendes Braga e Bruna Angotti, na pesquisa “Dar à luz na sombra”, de hipermaternidade, em que essas mulheres passam a viver apenas em função do bebê, ao mesmo tempo em que não possuem qualquer autonomia para decidir sobre como cuidar dele. No momento seguinte, entretanto, essa criança é abruptamente retirada dos braços da mãe e o rompimento do vínculo, sem qualquer transição, a coloca em uma situação de hipomaternidade (3).
Em uma tentativa de observar as especificidades do encarceramento feminino, em 2010 foram elaboradas as Regras de Bangkok (4), traduzidas ao português apenas no ano passado precisamente em comemoração ao 8 de março. Porém, para que nos atentemos de fato à garantia dos direitos das mulheres encarceradas, é urgente trabalhar não só com melhorias nas condições ou mesmo com medidas alternativas, mas essencialmente com perspectivas de desencarceramento.
Nesse sentido, é indispensável cumprir os requisitos legais para que a prisão preventiva seja exceção e não regra (3 em cada 10 mulheres estão presas sem condenação, ou seja, sequer tiveram direito a um julgamento), investir em alternativas à proibição irrestrita de drogas com vistas a evitar o encarceramento em massa de mulheres, realizar um decreto de indulto que garanta a abrangência desse direito às condutas tipicamente praticadas por mulheres, entre outros.
A história contada no Antigo e no Novo Testamento é a história da libertação dos povos; é o ensinamento e a confirmação, como nos lembra o Papa Francisco, de “que cada ser humano é criado por amor, feito à imagem e semelhança de Deus, [mostrando-nos] a imensa dignidade de cada pessoa humana” (5). O mundo livre de cárceres está no centro da mensagem de amor fraterno e compaixão defendida pela Pastoral Carcerária. Para caminhar em direção ao sonho de Deus, e garantir a essas 40 mil mulheres brasileiras condições dignas e a possibilidade de exercício de sua autonomia, uma política criminal que invista no desencarceramento e na descriminalização de condutas é a única pauta possível. Por um mundo sem prisões! (6)
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[1]https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf
2 Inovações trazidas ao Código de Processo Penal no ano de 2016 alargaram a possibilidade da substituição da prisão preventiva pela domiciliar nos casos de mulheres gestantes ou com filhos de até 12 anos de idade incompletos, bem como aos homens, caso sejam os únicos responsáveis pelos cuidados de filho de até 12 anos. Vide art. 318.
3https://www.justica.gov.br/noticias/201clugar-de-crianca-nao-e-na-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-na-sombra-1.pdf
4Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras – http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/27fa43cd9998bf5b43aa2cb3e0f53c44.pdf
5 Papa Francisco, Carta Encíclica Laudato Si’, 65.
6 Cf. Carta da Assembleia Nacional 2016 da Pastoral Carcerária (https://carceraria.org.br/carta-da-assembleia-2016-o-sonho-de-deus-um-mundo-sem-carceres.html).

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