Entre 2005 e 2013, a população carcerária dos delitos relacionados às drogas aumentou 345%, saltando de 32.880 para 146.276.
A explosão do encarceramento por drogas e o dispositivo são ativados pela discricionariedade policial. Soma-se a isto a falta de critérios objetivos e de uma quantidade que permita o consumo de todas as drogas. Estenderam assim a dinâmica complexa do comércio e uso de drogas nas ruas para o fluxo das prisões. No caso abaixo, a pessoa incriminada pelos policiais e condenada pelo juiz na cidade de São Paulo em 2008, na região central da cidade, não tinha antecedentes criminais e portava no interior de sua boca 17 pedras de crack (exatamente 4,25 gramas). Alegando ser “camelô” o juiz atribuiu a pena de 3 anos e 4 meses de prisão porque, segundo o juiz, o “individuo” não poderia provar a posse de R$73,00 encontrados com os policiais conforme a ocorrência registrada abaixo.
Comparecem nesta distrital os policiais militares informando que estavam efetuando patrulhamento de rotina pela região dos fatos quando avistaram o indiciado, sendo que esse levantou suspeitas. Quando se aproximaram para efetuar abordagem esse se evadiu, sendo detido nas proximidades da praça, porém, esse não falava direito; Verificaram que havia algo em sua boca, encontrando um saquinho plástico onde estavam 17 (dezessete) pedras de CRACK, bem como localizaram com ele a quantia de R$ 73,00 (setenta e três) reais e um telefone celular. Ao ser inquirido sobre a droga, afirmou que a vendia. Face os fatos foi dada voz de prisão ao mesmo e conduzido a este plantão policial, onde esta Autoridade Policial cientificada dos fatos ratificou a voz de prisão e determinou a elaboração do auto de prisão em flagrante. Nada mais.
O caso é revelador dos significados de um fenômeno aqui brevemente descrito. Revela que o hiperencarceramento da pobreza nos remete ao papel protagonista que, sobretudo, a polícia tem no Brasil devido à sua tradição inquisitorial, mas também e não menos importante, pelo fato de que boa parte dos operadores do sistema de justiça criminal e parlamentares reafirmam a centralidade da prisão nas interações com usuários e pequenos comerciantes de drogas. Reativam o dispositivo ao operacionalizar uma espécie de disjunção entre o lugar e o não lugar dos usuários-pequenos comerciantes de drogas nas cidades fazendo-os transitar entre as ruas e as prisões superlotando os Centros de Detenção Provisória da capital paulista.
Assim, após a nova lei de drogas, a criminalização por tráfico e uso de drogas repõe a seletividade do desemprego, do subemprego e da abordagem policial, já que, as chances de emprego e de alternativas formais à comercialização e ao uso de drogas estão desigualmente distribuídas entre os diferentes grupos sociais no Brasil contemporâneo sob a lógica do tratar desigualmente os desiguais2. Aqueles sujeitos invisibilizados, tomados por sentimentos morais de injustiça e inseridos nas descontinuidades entre o mercado informal e o formal de trabalho encontram os acusadores que, em contato com eles, agenciam o dispositivo em sua dupla face (vazia de médico e cheia de prisão) num personagem urbano descontínuo nas dobras entre formal-informal, legal-ilegal, lícito-ilícito3, prevenção-repressão.
Tal personagem, quando encontra a discricionariedade policial aliada a nenhum critério objetivo que defina se a quantidade de drogas em posse era para uso ou comércio de drogas, faz com que atual política de drogas brasileira posso ser representada pela metade cheia do copo. Vidas desperdiçadas em algumas linhas em registros policiais, mas que gritam por suas existências em nossas cidades. Vidas desperdiçadas nas condenações que decretam as mortes simbólicas e a estigmatização social dos indivíduos. Vidas que clamam pelo direito privado do consumo de drogas. Já passou da hora de esvaziarmos esse copo.
Marcelo da Silveira Campos
Doutor em Sociologia (USP). Foi pesquisador visitante no Departamento de Criminologia da Universidade de Ottawa. Atualmente é Professor Adjunto de Sociologia da UFGD.
2 Alvarez, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais. Dados, Rio de Janeiro, 2002, vol.45, no.4, p.677-704.
3 Muitas destas questões estão sendo colocados em uma perspectiva transversal no Projeto Temático FAPESP “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência Paulista” coordenado pela Profa. Dra. Vera da Silva Telles. Ver, por exemplo, TELLES, V. da S. Ilegalismos Urbanos e a Cidade. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n., p. 153-173, 2009.