Os direitos humanos e a missão da Igreja

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2810_Padre_XavierCerta vez, fui convidado a um debate sobre direitos humanos. A plateia era constituída, em sua maioria, por pessoas que trabalhavam no sistema penitenciário e socioeducativo. Sabia que não iria ser fácil. O clima era tenso, pois havia muitas reclamações por parte desses trabalhadores em relação à atuação dos militantes dos direitos humanos.
Confesso que, em parte, tinham razão. Mesmo tendo que manter uma posição firme contra qualquer intervenção que resultasse em aviltamento da dignidade humana, houve pouco cuidado para com os profissionais dessa área. Não é fácil trabalhar nas unidades socioeducativas e penitenciárias. Os problemas do sistema não afetam somente os internos, mas também os trabalhadores. Olhar para eles e suas necessidades deve se tornar uma pauta do movimento. A humanização do sistema não passa somente pela melhoria das estruturas, mas, sobretudo pela qualificação dos profissionais e pela melhoria de suas condições de trabalho.
Foi justamente para superar essa desconfiança, esclarecer as dúvidas e inaugurar uma nova parceria que aceitei o convite. Comigo na mesa deveria ter outros convidados, mas ninguém apareceu. Mesmo sozinho encarei o desafio.
Acabara de começar minha fala, quando fui logo interrompido por uma pergunta. A partir daquele momento, larguei de lado o texto que preparara e fui respondendo aos questionamentos da plateia. Fui submetido a uma sabatina. As perguntas, em sua maioria, eram duras. Os funcionários externavam seus sentimentos e seus rancores em relação à atuação dos defensores de direitos humanos. Após três horas de debate, a avaliação final foi boa. Senti que aquele encontro inaugurara um caminho envolvendo toda a comunidade socioeducativa e penitenciária no processo de humanização dos respectivos sistemas.
Entre as perguntas houve uma que me atingiu diretamente: “O que têm a ver a Igreja e os padres com essa questão dos direitos humanos?” – disparou uma mulher sentada na primeira fila. No entender dela, lugar da Igreja é na igreja. Para ela, padre se meter nessas coisas é “desvio de função”. Achei ótimo. A pergunta me dava a oportunidade de explicar um assunto que não está claro nem na cabeça do povo que frequenta as comunidades eclesiais.
A Igreja, apesar de seus altos e baixos e de suas contradições ao longo da história, sempre prezou pelo reconhecimento da dignidade humana. Baseada na visão de ser humano que aparece na Sagrada Escritura, reconhece que toda pessoa, criada a imagem e semelhança de Deus, merece respeito. Em virtude de sua intrínseca dignidade, “ela possui em si mesma direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza” (Pacem in Terris, 9).
O homem e a mulher, pelo simples fato de sua condição humana, são titulares de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado em qualquer circunstância. Os direitos humanos são inerentes à própria natureza humana. Constituem um direito adquirido que ninguém pode sonegar. Estão gravados no patrimônio genético. “Baseiam-se na Lei Natural inscrita no coração do homem… Estão fundamentados em Deus Criador, o qual deu a cada um a inteligência e a liberdade. Prescindindo dessa sólida base ética, os direitos humanos são frágeis, porque carecem de fundamento sólido” (Bento XVI).
Eles entram em cena desde o momento da concepção da vida e seu reconhecimento concreto é determinante para o desenvolvimento integral do ser humano. Portanto, são universais, invioláveis, inalienáveis, indivisíveis, imprescritíveis e exigíveis. Entre os direitos principais, listados pela Pacem in Terris, se encontram, em primeiro lugar, o “direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida(idem, 11).
Defender e promover o acesso aos direitos humanos, portanto, faz parte da missão evangelizadora da Igreja. É sinal de fidelidade aos ensinamentos de Jesus. É a prova de autenticidade de sua ação no mundo. Ao defender e promover a vida com dignidade, a Igreja segue o projeto missionário de Jesus que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Para a Igreja, qualquer afronta à dignidade humana é um ato inaceitável. A transgressão dos direitos humanos “deve ser superada e eliminada, por ser contrária ao plano de Deus” (G.S. 29). Cabe às instituições humanas, particulares ou públicas, esforçar-se por servir à dignidade e ao fim da pessoa. Ao mesmo tempo, devem lutar contra qualquer espécie de servidão tanto social quanto política e respeitar os direitos fundamentais do ser humano sob qualquer regime político. (Idem 29)
A efetivação dos direitos, de fato, não depende do favor dos políticos, da magnanimidade dos benfeitores da humanidade ou da boa vontade dos administradores públicos, mas é um dever de justiça que o Estado é obrigado a garantir, tendo em vista a dignidade da pessoa humana e o seu direito à vida.
“A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladrões, como disse Agostinho… A justiça é o objetivo e, conseqüentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética.” (Deus Caritas Est 28).
Para o Papa Bento XVI, sem respeito à justiça não pode existir uma ordem social ou estatal justa, e não se alcança a justiça sem um prévio respeito aos direitos humanos e à dignidade natural de cada pessoa humana, independentemente da fase da vida na qual ela se encontre.
É evidente que não compete à Igreja apresentar modelos econômicos, políticos e sociais que garantam uma convivência justa e solidária, mas ela dá sua contribuição para a  mudança daquelas estruturas que inviabilizam os direitos humanos e compartilha suas orientações para a construção de projetos alternativos que garantam o acesso universal aos direitos humanos.
Através de seus pronunciamentos, das escolas de fé e política e de outras iniciativas de formação, orienta e capacita os leigos e as leigas para que atuem na política, nos movimentos sociais e nos conselhos deliberativos das políticas públicas visando o bem comum, a efetivação dos direitos humanos e o respeito pela vida.
Mas a sua maior contribuição é a atuação de padres, religiosos/as e leigos/as que, de maneira absolutamente desinteressada, saem das estruturas paroquiais tradicionais e enfrentam as “periferias sociológicas” para marcar sua presença solidária no mundo daqueles e daquelas cujos direitos são desrespeitados. Seu testemunho de despojamento e de serviço torna concreto o cuidado de Deus para com os mais pobres e abandonados. Sua atuação é fortemente evangelizadora seja para os empobrecidos seja para aqueles que são responsáveis de garantir-lhes o que lhes pertence de direito. Com o espírito de caridade que emana do Evangelho procuram reduzir o abismo que separa “Lazaro” do “rico esbanjador” (Lc 16,19-31) com a esperança de chegar um dia a uma única mesa onde todo mundo possa sentar em pé de igualdade. O compromisso destes homens e mulheres que aceitam de compartilhar a dor das pessoas violadas em seus direitos estimula as comunidades eclesiais a vestir o avental do serviço e assumir o jeito de ser e de agir do samaritano.
Padre Xavier (padre Saverio Paolillo)
Missionário Comboniano
Integrante da Pastoral do Menor e da Pastoral Carcerária

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