Relatos de Pe. Chico Reardon sobre o Massacre do Carandiru

 Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

Padre Chico Reardon, um dos primeiros coordenadores da Pastoral Carcerária Nacional, foi, dentre vários agentes da PCr, alguém que presenciou o Massacre do Carandiru, antiga Casa de Detenção de São Paulo, no dia 02 de outubro de 1992. Hoje, completando 30 anos após o ocorrido, trouxemos alguns dos seus registros para lembrarmos deste fato e dizer que o massacre não acabou.

Após este fatídico acontecimento, ele relatou suas cenas e opiniões em relação ao massacre e seus efeitos em um diário publicado no livro “Testemunho de um Oblato no Extinto Carandiru”.

Confira algumas de suas reflexões:

“No início da confusão, dois diretores tentaram conversar com os presos, mas eles fizeram muito barulho e os vaiaram. (…) Alguns dos PMs puxaram e empurraram os diretores para o lado com o cano da metralhadora no peito deles dizendo que quem mandava lá era o oficial da PM. Instantes depois foi dada a ordem para invadir e os PMs entraram no Pavilhão já atirando em tudo e em todos, resultando no que conhecemos”.

“Tudo indica que os PMs não permitiram que os diretores da Casa de Detenção adentrassem no Pavilhão 09 para tentar um diálogo com os presos rebelados”

“Os relatos nos perturbam porque por tudo que ouvimos de funcionários e diretores, o poder de decisão sobre o que fazer lhes foi arrancado das mãos pela PM”

“Testemunhas oculares dizem que os policiais militares entraram nos dois corredores, um à esquerda e o outro à direita, já enfiando as metralhadoras nos guichês das portas, atirando em presos já nus que tinham se rendido. Na cela 284C, dois presos foram chacinados assim. No lado esquerdo, os soldados viraram para a esquerda e entraram na cela 252E onde os presos já estavam rendidos. Os relatos de todos os presos são concordes e unânimes em dizer que foi desta maneira que os PMs foram passando pela galeria toda, atirando pelos guichês de algumas celas e entrando em outras”

“Alguns presos se salvaram pelo fato de se jogar junto aos corpos de seus colegas já mortos e fingir que estavam mortos também. Eles tinham que segurar a respiração e não podiam gritar quando os PMs passavam baionetando cada corpo no pé ou pisando na cabeça de cada preso caído para ver se alguém ainda dava um grito ou gemido”

“Outros tantos presos foram mortos por uma bala na cabeça/nuca ou pelos cães. (…) Muitos presos ouviram o comandante no 2º andar berrar ordens para parar de matar, pois já haviam matado bastante”

“Todos os presos sobreviventes foram mandados se despir e descer em fila indiana para o pátio interior do Pavilhão, passando por um “corredor polanês”, tanto nas galerias quanto nas escadas, momento este em que todos os presos levaram chutes, socos, golpes de baioneta nas costas, nuca e cabeça, deferidos pela PM enfileirada nos dois lados da galeria e da escada”

“Já no pátio interno do Pavilhão, onde os presos foram mandados se sentarem ou se deitarem nus na chuva, das 17h30 à 01h00, os PMs perguntaram aos presos quem estava ferido para que estes se apresentassem, pois lhe dariam um curativo.

Alguns presos feridos se apresentaram, infelizmente. Uns foram executados com tiro na cabeça/nuca dentro da chefia e outros foram estraçalhados e mortos pelos cães da PM”

“Não podiam tossir e nem se mexer. Os presos que involuntariamente mexiam a perna ou o braço, devido câimbras que sentiam por estarem sentados ou deitados por horas e horas sob a chuva, eram executados no mesmo instante”

“No mínimo foram 111 mortos e 150/200 presos machucados. Provavelmente havia muito mais mortos. Os presos estavam conferindo cela por cela, andar por andar e esperavam ter uma nova listagem dos falecidos, desaparecidos ou feridos dentro de alguns dias”

“A PM diz que também sofreu baixas, mas são pouquíssimos os que acreditam na versão deles, sendo que faltaram com a transparência e rapidez necessárias, ao apresentarem quantos teriam sido os seus feridos, somente 6 ou 7 dias depois do massacre. No início eram 13 PMs feridos, depois 8 e finalmente 22 ou 23, segundo os jornais. Quem realmente sabe? Quem realmente acredita?”

CONCLUSÕES DA PCR:

“Membros da Pastoral Carcerária viram os corpos de presos crivados de balas e facadas, conversaram com os sobreviventes, quase todos machucados de uma ou outra maneira pela tropa da PM na invasão, e com funcionários e diretores da Casa de Detenção. Conversamos muitos dias com todos, oferecendo solidariedade e esperança”

“Não havia plano de fuga em massa, nem dos 2069 presos do Pavilhão 09, e muito menos por parte dos outros presos da Casa, conforme afirmou gratuitamente o então Secretário de Segurança Pública naquela entrevista de que ele deu quando faltavam quinze ou cinte minutos para o encerramento das urnas em 03/10/92”

“Não havia reféns, embora os presos tivessem oportunidades de se ter um monte, os próprios funcionários e diretores da Casa afirmam isto”

“Os presos não tinham armas de fogo em seu poder, tinham pequenas armas brancas costumeiras em presídio, isto é, estiletes, canos, porretes, tudo fabricado artesanalmente. Estas armas de fogo supostamente encontradas pelos PMs, são “cabrito”, armas estranhas, de terceiros, introduzidas na prisão pela própria PM que, após derrubar os presos, com rajadas de metralhadoras, jogaram estas armas no chão, para logo pegá-las afirmando que eram dos presos, para se safar e eximir a responsabilidade da chacina”

“Os presos em sua maioria, quando souberam que a tropa de choque estava entrando, jogaram as suas armas brancas fora da galeria, pelas ventanas, entraram nas suas celas e ficaram aguardando a passagem da PM com medo de trepidação”

“Conversei com tantos que sei que a maioria lembrou-se de se despir e ficar com as mãos na cabeça ou atrás da nuca enquanto outros me disseram que ficaram tão apavorados que se esqueceram de tirar as suas roupas, mas que ficaram sentados ou deitados nas suas celas com as mãos para cima ou em frente de suas cabeças. (…) Os presos já sabiam que estavam vencidos. Não iriam enfrentar metralhadoras e cães só com pedaços de faca e paus”

“Membros da PCr (Pe. Chico, Pe. Guilherme e Irmão Assunção) viram 13 cadáveres no banheiro do andar térreo do Pavilhão 04, cujos corpos tinham sido deixados para trás pelos PMs na remoção rápida durante a madrugada. Corpos estes com muitas perfurações de bala, do tórax para cima e para trás, inclusive na cabeça, pescoço e nuca, o que representa sinal universal de rendição. Outros corpos foram desfigurados pela PM, com baionetas e facas, para disfarçar e fazer parecer morte por esfaqueamento na versão oficial de guerra generalizada de quadrilha”

“Há quem pense que os PMs se auto feriram, como em outras oportunidades, para justamente disfarçar e justificar a carnificina que tinham acabado de cometer, ou suas balas chicotearam várias vezes até atingi-los”

“Membros da PCr estavam na Casa na 6ª feira à noite, mas não foram permitidos de adentrar no Pavilhão 09, sendo comunicados que o número de mortos era apenas oito, quando no mesmo instante o Governador do Estado sabia que já haviam ao menos 90 mortos”

“A linha de comando foi quebrada ou alterada: nunca poderia ser dada a ordem de entrada da tropa, sem antes esgotar todas as possibilidades de diálogos. Os diretores afirmam que tentaram dialogar, os juízes dizem que chegaram tarde, presos afirmam que não houve tentativa de diálogo. Parece que a PM sabia que se demorassem muito mais, o juiz corregedor mandaria parar a invasão, parece que queriam de todo jeito entrar, matar e dominar os presos”

“Possivelmente houve interferência do Poder Executivo na área do Poder Judiciário, no episódio todo, o que seria a ponta do iceberg de uma crise institucional estadual”

“Isto tudo aponta, mais uma vez, a urgente necessidade de bolar um novo procedimento para emergências em cadeias e presídios, com a participação da sociedade civil, não se permitindo mais que apenas as autoridades policiais e prisionais elaborem tais procedimentos de emergência. A Pastoral Carcerária vem insistindo nisto junto às autoridades desde 1987. (…) As autoridades maiores do sistema e as autoridades policiais não sabem dialogar com o preso nervoso, tem que haver outros interlocutores de fora do sistema. Além do mais, se o próprio sistema bolar os novos procedimentos sozinho junto com a PM, estes procedimentos de emergência vão ficar escondidos e inacessíveis à sociedade em geral e às entidades que militam na área, efetivamente impedindo outra vez qualquer possibilidade de fiscalização democrática”

Trecho do livro “Testemunho de um Oblato no Extinto Carandiru” de Pe. Chico Reardon

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