Por que não sabemos quantos presos há no Brasil

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Por Renata Mendonça
Da BBC Brasil
O Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo – e, atualmente, essa é um dos poucos dados conhecidos sobre o sistema penitenciário brasileiro, segundo especialistas. Isso porque, desde 2014, o Ministério da Justiça não divulga informações sobre a população dos presídios no país.
O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen, que trazia dados quantitativos (e alguns qualitativos) sobre o sistema foi criado em 2004 e era divulgado semestralmente. No entanto, desde dezembro de 2014, não houve qualquer atualização de dados.
A falta de informações vem à tona em situações como a violenta rebelião no presídio de Alcaçuz (região metropolitana de Natal). Mesmo seis meses após o massacre, o número de mortos ainda é incerto, porque as contas não fecham. O número oficial é de 26 vítimas, mas há 11 presos, segundo o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que estavam no presídio, mas não constam nem na lista de fugitivos, nem na de mortos e nem na de transferidos para outras penitenciárias.
“No Rio Grande do Norte foi um diz-que-diz sobre quantidade de pessoas que morreram. Até hoje, a gente não sabe nem isso. Me lembrou uma coisa grave da época do massacre do Carandiru, que se fala em 111 pessoas mortas, mas pessoas que costumavam frequentar o presídio com regularidade falam que tinha muito mais. E a gente não sabe. Uma conta simples de quantas pessoas tinham, quantas ficaram”, disse à BBC Isabel Figueiredo, ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública de 2011 a 2014 e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Questionado pela reportagem, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) afirmou que “as informações solicitadas não estão disponíveis no momento, pois as mesmas dependem da conclusão do levantamento estatístico correspondentes aos anos de 2015 e 2016, que ainda se encontra em andamento”.
A BBC Brasil apurou, porém, que os dados dos últimos dois anos já teriam sido compilados e entregues ao Depen – o órgão, no entanto, ainda não divulgou as informações atualizadas. O departamento alega que um novo sistema está em implementação para o acesso aos dados.
“Está em vias de implantação uma ferramenta denominada SISDEPEN, Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional, na qual será possível o acesso às informações do Sistema Prisional tanto na sua forma quantitativa, conforme apresentada nos relatórios estatísticos atuais, como qualitativa, permitindo o cadastro das informações dos custodiados em caráter individual.”
‘Tiro no escuro’
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, os dados do Infopen são necessários para a criação de políticas públicas para o sistema penitenciário, e a ausência deles faz com que ações pensadas neste contexto sejam “um tiro no escuro”.
“A gente tem dados muito ruins da segurança pública no Brasil, tanto do Judiciário, quanto da parte penitenciária. Mas chama a atenção o retrocesso, porque a gente tinha regularidade na divulgação desses dados e ela se perdeu”, afirmou Figueiredo.
“E o problema disso é que a gente navega no escuro, sem saber para onde está indo e com quem está lidando. O Depen estava numa mudança de método de coleta, mas o sistema estava praticamente pronto no ano passado já. Houve uma troca de equipe com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, mas essa equipe já está há mais de um ano aí. Já era para ter mostrado essas informações.”
Segundo dados revelados há três anos, o Brasil tinha a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 622 mil pessoas em regime de prisão – sendo que 41% delas ainda aguardavam julgamento. O deficit de vagas do sistema à época já ultrapassava as 250,3 mil.
Para Valdirene Daufemback, que foi diretora de políticas penitenciárias do Depen até novembro do ano passado, “é fundamental ter informações para direcionar políticas públicas”.
“Sem dados, a gestão pública, vai sempre atuar de maneira reativa, improvisada. As políticas não estão sendo planejadas a partir de informações fidedignas. Elas estão sendo ordenadas muito mais por providências que dão uma resposta imediatista, mas que não traz soluções a médio e longo prazo”, afirmou.

Para especialistas, a falta de dados sobre as penitenciárias do país põe em questionamento, a eficácia do novo Plano Nacional de Segurança, lançado pelo governo após a sequência de massacres no início do ano no Norte e Nordeste, e de uma das principais medidas propostas pelo Ministério da Justiça à época: a construção de mais presídios.
“Sem ter os dados, você acaba percebendo o problema só quando está no meio da crise”, observou Guaracy Mingardi, pesquisador em segurança pública, ex-subsecretário Nacional de segurança pública e ex-secretário de segurança de Guarulhos.
“E aí falam em construir mais presídio: é disso que gente precisa? Tudo bem, você parte do princípio que precisa mais, mas de que tipo? Onde? Qual é o estado mais problemático? Você precisa saber que tipo de preso você tem para poder alocar melhor o dinheiro, se não, você estará indo pelo impressionismo.”
A ex-diretora do Depen ressalta ainda que, sem dados atualizados, é difícil avaliar se as políticas e soluções implementadas têm gerado resultado.
“Nossa resposta às crises têm sido o encarceramento em massa. Mas o encarceramento em massa tem tido efeito contrário, não está resolvendo. Só que sem dados, a gente não consegue ter resposta sobre qual seria a solução para o problema ou sobre o que já não está mais dando certo”, afirmou Daufemback.
Procurado, o Ministério da Justiça afirmou que a ferramenta SISDEPEN já estava pronta no final de 2015, mas “não havia instrumento contratual para colocar o módulo de coletas de dados em ambiente de produção, ou seja, disponibilizado na internet”.
“O Departamento sempre trabalhou com a expectativa de que o contrato seria assinado ainda no primeiro semestre de 2016, fato que não aconteceu devido à complexidade de se negociar um contrato robusto diante da realidade orçamentária do ano de 2016.”
“Diante da incerteza, no segundo semestre de 2016, o Departamento decidiu contratar uma consultoria para que a coleta de dados fosse realizada, utilizando novamente a plataforma disponibilizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Desta forma, as coletas de dados de dezembro de 2015 e junho de 2016 foram iniciadas em outubro de 2016. Essas coletas foram realizadas, mas ainda estão em fase de processamento e análise. De forma concomitante, também estão sendo feitos relatórios com as análises de dados”, disse a pasta.
Custos e implementação do plano nacional
No fim do ano passado, o governo do presidente Michel Temer anunciou um repasse de R$ 1,2 bilhão para o sistema penitenciário. Depois, na primeira semana do ano, diante das rebeliões ocorridas em Manaus, Natal e Roraima, o então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, confirmou o repasse de outro R$ 1,8 bilhão do Fundo Penitenciário para os Estados ainda no primeiro semestre de 2017.
No entanto, os dados oficiais sobre o custo de cada preso no Brasil ainda são desconhecidos. Há estimativas do próprio Depen que falam em R$ 2,4 mil por detento, mas segundo os especialistas, não são todos os Estados que fornecem essas informações e os critérios para o cálculo também não são padronizados.
A ex-diretora do Depen ressalta que, muitas vezes, quando o cálculo é feito, ele acontece de maneira genérica, pegando o valor repassado à penitenciária e dividindo isso pelo número de presos. “Não existe um padrão nacional para se fazer essa conta”.
“Pensar numa política pública sem pensar num planejamento orçamentário é muito preocupante”, afirmou Valdirene Daufemback.
Os dados de 2014 mostravam um sistema penitenciário já em crise, abrigando 622.202 mil pessoas, quando as vagas disponíveis nas cadeias brasileiras não ultrapassavam 371.884. Os especialistas veem que o número de presos estava em tendência de alta e deve ter aumentado nos últimos anos.
Ainda assim, para Isabel Figueiredo, o problema do sistema não está na falta de vagas. “No meu entendimento, eu acho que a gente tem vaga demais. E preso demais. Essas vagas que seriam mais do que suficientes, mas a gente prende mais do que seria necessário ou razoável”, afirma, ressaltando que os índices de violência seguem altos, apesar do aumento de encarcerados.
Para ela, mais do que recursos, é preciso entender melhor os problemas do sistema para definir uma melhor estratégia do uso deles. “Como vou pensar na alocação de recursos se eu não souber a quantidade de pessoas do sistema, qual é o regime de cumprimento delas, quantas pessoas entram no sistema e quantas saem por ano, qual é a taxa de reincidência? Porque se a pessoa sai e volta, é porque o sistema não está sendo efetivo”, avaliou.
“Não dá pra fazer política pública sem conhecer o que ela quer modificar. E mais grave do que isso é essa lógica de tudo que se responde com pena de prisão. Não é que se investe pouco no sistema penitenciário, mas se investe mal. Nos Estados Unidos, hoje se investe em sistema penitenciário quase 5 vezes mais do que no sistema de educação. E não deveria ser essa a resposta para o problema.”
Segundo o Ministério da Justiça, em 2017 foi realizado um único repasse para o sistema penitenciário, de mesmo valor a todos os Estados, mas não esclareceu o critério usado até o momento.
“A Medida Provisória 781 estabelecerá os critérios para distribuição de recursos aos estados, via Fundo Penitenciário Nacional para o Fundos Penitenciários estaduais. A referida MP foi encaminhada para votação pelo Congresso Nacional”, disse o órgão.

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