Luiz Romulo F. Saloto*
Jesus, com autoridade de Filho divino, ensinou a rezar assim: “Pai Nosso… perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos que nos devem…”(Mateus 6,12; Lucas 11,4) Com isto, Ele nos revela e ensina que o perdão, dado e recebido, a atitude de perdoar, é a base fundamental de um relacionamento justo, transparente e correto, não só entre o ser humano e a divindade, mas também entre humanos. As ciências humanas estão demonstrando, com fatos e evidências, que uma pessoa só consegue se manter sadia mentalmente se for capaz de “perdoar” e isto vale, consequentemente, para o contexto social. O incentivo à vingança e ao ódio só faz adoecer um tecido social tão diversificado onde a intolerância faz das diferenças uma ameaça ao invés de uma riqueza.
Nas quase três décadas de exercício do sacramento da reconciliação escutei inúmeras vezes a frase que, mais que uma desculpa, soava como uma lamentação: “Padre, não posso perdoar porque não consigo esquecer”.
Uma resposta, mais imediata, leva a considerar que, de fato, o que se consegue esquecer com facilidade não precisa ser perdoado, pois o esquecimento apaga o evento e suas consequências. Mas quando esquecer se torna impossível e o relembrar uma constante, o perdoar se faz necessário. Eis a questão, eis o drama, sobretudo, numa cultura masculinizada que enaltece a força física e rebaixa o emotivo como fraqueza.
Perdoar soa como atitude sentimental de baixo valor, como manifestação de fraqueza e medo por parte dos fracos. É neste contexto que alguns textos bíblicos me intrigam, provocam e trazem alguma luz. Um deles encontramos no capitulo onze dos escritos do profeta Oséias. Ele foi um profeta, alguém convocado pelo próprio Deus a falar em nome d’Ele, que viveu sua missão no reino do norte num período de prosperidade econômica mas de falhas graves na vivência das cláusulas da Aliança divina.
Ele usou algumas metáforas para realizar sua missão de alertar sobre o que estava acontecendo: falou de infidelidade matrimonial, falou da vinha plantada com cuidado e por fim do relacionamento “paternal”, que pelas imagens usadas por ele poderíamos dizer “maternal” (não fosse o contexto machista do povo da Bíblia e do nosso!). Descrevendo, muito resumidamente a relação paternal/maternal do povo com seu Deus, e não era boa, a um certo ponto ele diz assim: “ O meu coração salta no meu peito, as minhas entranhas se comovem dentro de mim. Não me deixarei levar pelo ardor da minha ira, não vou destruir Efraim. Eu sou Deus, e não um homem. Eu sou o Santo em meio de vós, e não um inimigo devastador!” (Oséias 11,8c-9).
O texto não fala em “perdoar/perdão”, diretamente, mas deixa a entender pois “deixar-se levar pelo ardor da ira” significa castigar e não desculpar/perdoar, apesar de uma forte comoção diante dos fatos cometidos. O motivo para este perdão é bem relevante: “Eu sou Deus e não um ser humano”.
Em outras palavras, o texto nos diz que o perdão não significa desculpar, passar panos quentes ou esquecer e que perdoar não é atitude de gente fraca, medrosa e emotiva, mas sim uma ação digna de um deus, uma atitude de quem tem poder e é livre para agir como deseja. Deus perdoa por ser Deus e como Deus não pode não perdoar, o porquê a gente vai ficar sabendo mais adiante na história.
Pra quem acha que o perdão é gesto de fraqueza e coisa de “mulherzinha”, deveria meditar este texto e outros mais que falam do perdão divino. Também escutei, inúmeras vezes, nas festinhas de comunidade, onde a gente encontrava as pessoas um pouco mais animadas, em função da graduação alcoólica, a seguinte frase: “Olha padre, eu não tenho mais jeito, já pequei até contra o décimo primeiro mandamento!”
Tirando o desconto pela situação do indivíduo, esta sentença carrega consigo a insensatez de quem pensa, acredita, acha que o seu “pecado/culpa/transgressão” seja maior em força e importância que a misericórdia divina. Isto acaba afetando o relacionamento consigo mesmo e, se não mereço o perdão divino, também não encontro motivos para me perdoar, serei um “eterno” acusador de mim mesmo, um círculo vicioso de ressentimentos que gera baixa autoestima e negatividade.
Aqui também me lembro de alguns textos bíblicos como este: “Se tiverdes em conta nossos pecados, Senhor, Senhor, quem poderá subsistir diante de vós? Mas em vós se encontra o perdão dos pecados, para que, reverentes, vos sirvamos.” – Salmo 130(129).
Em todos as manifestações religiosas, em todas as religiões, existe sempre, por parte do ser humano, um pé atrás em relação à sua divindade, existe sempre um “senso de culpa” no ar. Daí os diversos e variados rituais de “purificação”. O texto deste Salmo se refere justamente a isto, ao afirmar que diante de Deus ninguém pode ficar de cabeça erguida, ninguém fica “de boa” como a criança que fez uma arte e é chamada pela mãe, já vai com receio!
Mas a certeza do “perdão” divino faz o crente ter confiança e, com temor/reverência seguir no serviço/comunhão divina. Não é, portanto, a certeza de uma consciência limpa/imaculada que faz o crente se aproximar de Deus, mas sim a certeza de que encontrará perdão/misericórdia. Assim como Deus perdoa sem esquecer e o faz por que é Deus e tem poder, do mesmo modo a gente não tem que buscar no esquecimento ou na suposta inocência o motivo para se auto perdoar.
O conhecimento, e aceitação, da misericórdia divina nos capacita a receber o perdão divino, a perdoar o próximo e auto perdoar-se. Sozinho e isolado ninguém é capaz de perdoar e auto perdoar-se. Será por isto que o Papa Francisco tem insistido tanto, que como Igreja, devemos anunciar Deus como infinitamente misericordioso?
*: Luiz Romulo F. Saloto é agente da Pastoral Carcerária do RJ