Continuo tendo a impressão que como comunidades e como indivíduos não conseguimos ainda alcançar como Papa Francisco entende este Ano da Misericórdia. Mas essa dificuldade parece não ser das pessoas simples, daquelas que materialmente ou simplesmente passarão as “portas da misericórdia”, mas dos teólogos, estudiosos da Bíblia, dos bispos, padres e até do mundo da vida consagrada, ainda embebidos do dualismo alma-corpo e preocupados mais do invólucro exterior que da medula da misericórdia, mais da quantidade do que da essência, quase que a misericórdia precisasse ter algo em troca para ser merecida.
Poderíamos afirmar, sem dúvida, que a misericórdia se resume num “olhar”. Deus enxerga o ser humano de uma maneira que ele O possa compreender, comunica-se a ele de forma tal que O possa ver, e o que o homem vê, também Deus vê e o ser humano começa a enxergar como Deus enxerga. Essa é a divina humanidade de Cristo. Nisso podemos afirmar que Cristo, misericórdia do Pai, assumiu em si a humanidade toda, afirma o Padre Mark Ivan Rupnik autor do logo do Jubileu.
Mas existe outra provocação, e aqui está talvez a nossa dificuldade em seguir o Papa Francisco e o que ele representa: o fim da época renascentista e moderna e o começo da pós-modernidade, que deixadas de lado a centralidade do mundo acadêmico e intelectualista, volta para a organicidade e a vida, tempo em que vida e conhecimento não eram separadas. Francisco é expressão desse novo universo onde as palavras encontram eco nos seus gestos profundamente humanos do Bom Pastor, do Pai misericordioso do Evangelho, para quem o centro é a pessoa e não mais as estruturas e as instituições. Consequência disso, a misericórdia não é mais uma teoria, um enunciado teológico, um tema para ser tratado nas academias e universidades, mas expressão concreta da vida, onde o mundo divino e o mundo humano se exprimem um no outro, ao ponto que quando Cristo expirou na cruz, nós colhemos seu respiro e começamos a respirar.
Eis o passo fundamental no conceito da misericórdia: colocar no centro de nosso coração, de nossas vísceras, “os miseráveis”, estarmos atentos aos seus sofrimentos, às suas feridas, às suas necessidades, irmos aonde eles se encontram, termos olhos abertos, não ficarmos indiferentes e não fazermos parte desta globalização da indiferença, como tem afirmado várias vezes o Papa Francisco, que escolheu as periferias existenciais como centro de seu serviço pastoral.
Mas é preciso avançar e ousar mais para que a misericórdia seja realmente um diferencial em nossa vida. Ela deve ser uma atitude, uma virtude ativa, que combate as causas das desigualdades, do encarceramento, que, embora não descartando a justiça, vai além dela porque a pessoa é o bem maior. Poderíamos afirmar a este ponto que a Pastoral Carcerária deve ser por excelência a Pastoral da Misericórdia, mas uma misericórdia libertadora, extraordinária, cuja linguagem é o do amor até o extremo, e que tem no “mundo sem prisões” a via mestra pela qual caminhar.
Padre Gianfranco Graziola,
Vice-coordenador nacional da Pastoral Carcerária