“Enquanto houver uma classe inferior, faço parte dela. Enquanto houver um elemento criminoso estarei com ele. Enquanto houver uma alma na prisão, não serei livre.”[2]
(Eugene Debs)
Introdução
10 milhões: esse é o número aproximado de pessoas adultas privadas de liberdade no mundo. Hoje, em números absolutos, os quatro países que mais encarceram no mundo são Estados Unidos (2,2 milhões de pessoas presas), China (1,6 milhões), Rússia (731 mil), e Brasil (514 mil). Tais números estão implicados em uma política de encarceramento em massa, em regra envolta por contexto de gestão e marginalização da pobreza.
Nesse sentido, o sociólogo Loïc Wacquant, em seu célebre “As Prisões da Miséria” [3], afirma que o modelo de encarceramento em massa que se grassou globalmente é originário dos Estados Unidos e está inserto no processo de aprofundamento das desigualdades geradas pelo sistema capitalista neoliberal.
Para Wacquant, o sistema prisional se torna tanto mais extenso e povoado quanto mais restrito é o acesso a direitos sociais básicos. Dedutível, portanto, que as pessoas escolhidas para habitar o sistema prisional são justamente aquelas mais vulneráveis à relativização de direitos sociais.
Nas profundezas dessa lógica perversa, divisa-se aparelho penal extremamente seletivo e operado para permitir a dominação de uma classe sobre outra sob a indumentária do pretenso “combate à criminalidade”.
No presente artigo, procurar-se-á delinear, sinteticamente, os principais aspectos estruturais e estruturantes dessa política de encarceramento em massa a fim de submetê-los à crítica e de analisar os caminhos e os limites de possíveis alternativas.
- 1. Sobre o surgimento da prisão como principal meio punitivo
Em Vigiar e Punir [4], Foucault problematiza o movimento iluminista-reformador do século XIX, que, a despeito da desenvoltura de seus precursores (entre eles, Beccaria e Benthan), teve seus ideários de humanização da pena elididos pela primazia da pena de prisão como forma geral de punição.
Foucault assinala que a preponderância da pena de prisão como forma geral de punição deriva da conjugação de dois fatores em especial: de um lado, o surgimento, na época clássica, de alguns grandes modelos de encarceramento punitivo na Europa; de outro lado, a consolidação do Estado burguês, com a conseqüente conformação do Direito às necessidades da nova classe dominante.
Os modelos apontados por Foucault (entre eles, Raphius de Amsterdã, do século XVI, e as prisões estadunidenses Walnut Street, do final do século XVIII, e Auburn, da primeira metade do século XIX) configuravam, segundo ele, instrumento disciplinar para imposição e manutenção do poder, que “deve requalificar o criminoso como indivíduo social: ele o treina para uma ‘atividade útil e resignada’; devolve-lhe ‘hábitos de sociabilidade’” [5].
No âmbito do processo de revolução industrial europeu, a prisão se torna peça fundamental de domesticação e adestramento para o trabalho e de gestão diferencial das ilegalidades, pela qual os ilícitos praticados pelas classes dominantes são tolerados, ao passo que as ilegalidades praticadas pelas classes populares são severa e amplamente punidas com a pena de prisão.
Conclusão inevitável, portanto, é a de que a pena de prisão foi historicamente consubstanciada como principal meio punitivo não com o objetivo de suprimir da criminalidade, mas sim para servir de tática de dominação e, mais especificamente, de instrumento de controle seletivo (diferencial) da criminalidade.
- 2. Neoliberalismo e encarceramento em massa no mundo
O advento da prisão expresso por Foucault está incrustado no processo de consolidação do sistema capitalista, momento histórico em que claramente a prisão funcionou, ao menos no continente europeu, como instrumento disciplinar de controle e adestramento das massas potencialmente operárias.
O avanço capitalista, no entanto, carreou consigo novas conjunturas políticas que reconfiguraram o papel histórico da prisão.
Após a vigência do Estado de bem-estar social, acompanhado por correlato sistema penal de encarceramento moderado (na mesma medida em que direitos sociais eram minimamente promovidos), sobrevém, no início dos anos 60, profunda crise econômica, à qual se remedia com o advento do neoliberalismo e da sua correlata política de encarceramento em massa.
No âmbito do neoliberalismo, norteado pelo modelo do Estado Social mínimo, prevalece, à guisa do postulado de Wacquant, o correspondente Estado Penal máximo, agravado por cenário de desemprego estrutural e de recrudescimento do número de marginalizados.
Não é mera casualidade que, exatamente nesse período, tenha se notado o início da hercúlea expansão da população prisional estadunidense (berço do neoliberalismo), que, em 1970, correspondia a aproximadamente 300.000 e chegou, em 2010, a 2,5 milhões de pessoas presas: mais do que 700% de crescimento da população prisional em quarenta anos!
A taxa de encarceramento dos Estados Unidos em 1992 era de 501 pessoas presas para cada grupo de 100.000 habitantes. Em 2007, essa taxa chegou a 758, com ligeira queda para 730 em 2010.
Outros países seguiram a mesma lógica, com notado crescimento da taxa de encarceramento entre os anos de 1992 e 2010: Inglaterra (de 90 para 153), Itália (de 83 para 112), Portugal (de 97 para 109), Espanha (de 105 para 160), Grécia (de 63 para 111), Japão (de 36 para 57), Rússia (de 487 para 609), África do Sul (de 285 para 331), México (de 98 para 197), entre outros [6].
Mesmo Noruega (58 para 72) e Suécia (60 para 74), países que mantiveram, ainda que parcialmente, o modelo do Estado de Bem-Estar Social, perceberam aumento da taxa de encarceramento nesse período.
A partir dos anos 90, o Brasil, a reboque do modelo estadunidense, promoveu assustador processo de expansão de sua população carcerária.
Entre 1995 e 2010, a população carcerária brasileira saltou de aproximadamente 148 mil para cerca de 496 mil pessoas presas: recrudescimento de 235%. No mesmo intervalo de tempo, a população brasileira cresceu 21%. A taxa de encarceramento, nesse ínterim, vai de 92 para 253 pessoas presas a cada 100.000 habitantes.
Nada há de coincidência no fato de que, exatamente na década de 90, com a adesão ao Consenso de Washington, robustece-se no Brasil a implementação de políticas neoliberais (já encetada timidamente nos anos de chumbo) que, nos anos subseqüentes, são reafirmadas e aprofundadas.
Também em outros países da América do Sul, o processo de crescimento exponencial da população carcerária foi alarmante nesse mesmo período histórico: a Argentina, por exemplo, praticamente triplica a sua população prisional entre 1992 e 2010 (de 21.016 para 59.227), com aumento na taxa de encarceramento de 62 para 145 pessoas presas a cada 100.000 habitantes. De modo bem similar, o Chile verifica aumento da população prisional de 20.989 (em 92) para 53.410 (em 2010), com a diferença de que lá a taxa de encarceramento se alçou do já relevante patamar de 154 para o de 313 pessoas presas a cada 100.000 habitantes.
É notável que, em geral, houve sensível aumento nas taxas de encarceramento ao redor do mundo, configurando o que se pode denominar de tendência global de encarceramento em massa.
Não menos notável é o fato de que a política de encarceramento em massa cumpre papel histórico indissociável do neoliberalismo, o qual, por sua vez, é voltado ao contorno da crise estrutural do capital vivenciada nos anos 60 e 70.
Todavia, para além dessas percepções, interessa especificar e atualizar, no próprio contexto do neoliberalismo e do encarceramento em massa, que função política cumpre a prisão nos dias atuais. A esse escopo, necessário aferir não apenas quem são as pessoas selecionadas pelo sistema penal, mas também em que contexto (e discurso) carcerário elas são insertas.
- 3. A cor, a origem e o bolso das pessoas selecionadas
A julgar apenas por Estados Unidos e Brasil, países que detêm a primeira e a quarta maiores populações prisionais do mundo, é possível demonstrar cabalmente a seletividade que funda o sistema penal, desmistifica as suas funções declaradas (prevenção e retribuição) e descortina as suas funções reais de neutralização e controle das camadas mais vulneráveis da sociedade.
Nos Estados Unidos, apesar de corresponderem a 13% da população estadunidense, as pessoas negras compõem 40% da população prisional do país. A taxa de encarceramento de pessoas negras é cerca de dez vezes maior do que a taxa de encarceramento de brancas; uma em cada nove pessoas negras entre 20 e 34 anos se encontra atrás das grades. Ademais, 20% da população prisional carcerária estadunidense é formada por latinos e 1% por indígenas.
De acordo com Margaret Kimberley, “o encarceramento em massa [nos Estados Unidos] não é acaso, mas reação coordenada e aperfeiçoada contra o sucesso do movimento pelos direitos civis. As leis de segregação racial foram tornadas ilegais. E imediatamente criaram-se novos meios legais para segregar e destruir a comunidade negra nos EUA” [7].
Media-se a política de encarceramento em massa nos Estados Unidos pelos discursos do “Lei e Ordem” e do “Tolerância Zero”, os quais, a partir do horizonte de que nem o mínimo delito pode passar incólume, fomentam, na realidade, o endurecimento da repressão nas regiões mais periféricas, com a seleção dos mais pobres, geralmente os negros.
Wacquant, por sua vez, em seu artigo “Da escravidão ao encarceramento em massa” [8], afirma: “a proporção astronômica de negros em casas de confinamento penal e o entrelaçamento cada vez mais íntimo entre o hipergueto e o sistema carcerário indicam que, por causa da adoção do encarceramento em massa como estranha política social norte-americana destinada a disciplinar os pobres e conter os desonrados, os afro-americanos de classe mais baixa vivem hoje não numa sociedade com prisões, como seus compatriotas brancos, mas na primeira sociedade prisional genuína da história”.
O Brasil segue caminho homólogo: em continuidade ao papel histórico do Estado brasileiro de massacre às populações mais vulneráveis, são, ainda hoje, os jovens negros e pobres que povoam o sistema carcerário.
Cerca de 80% da população carcerária brasileira está presa por crime contra o patrimônio ou por crime de tráfico de entorpecentes; 55% tem menos do que 29 anos; mais de 60% é negra; aproximadamente 90% sequer concluiu o ensino médio.
Esses números apontam para um sistema profundamente seletivo, no qual as condutas ilegais cometidas pelas camadas sociais mais abastadas são toleradas ou abrandadas, ao passo que aquelas mais diretamente ligadas às necessidades das camadas menos abastadas são perseguidas com máximo rigor.
Se analisarmos as leis aprovadas no Brasil do início dos anos 90 para cá, não teremos dificuldade em inferir que elas são norteadas pelos mesmos discursos estadunidenses do “Lei e Ordem” e do “Tolerância Zero”, diluídos nas plataformas mais estruturais do encarceramento em massa e do neoliberalismo. Entre elas, destaca-se: a Lei de Crimes Hediondos (1990); a criação do regime disciplinar diferenciado (2003); a nova Lei de Drogas (2006), a tipificação da posse de aparelho celular como falta grave (2007); o aumento do prazo mínimo de prescrição (2010), etc.
Em análise mais universal, Alessandro De Giorgi afirma que “objeto desta impetuosa onda repressiva foi (e ainda é) a nova marginalidade social: as minorias étnicas na América, os imigrantes na Europa, os novos pobres, os desocupados e os tóxico-dependentes em ambos os contextos. Trata-se de um processo de “criminalização de massa”, voltado contra categorias inteiras de sujeitos selecionados segundo características de gênero, étnicas, raciais e econômicas” [9].
O encarceramento seletivo e em massa funciona, é bom iterar, não à supressão da criminalidade, mas sim à contenção punitiva das camadas mais vulneráveis da sociedade e à manutenção e aprofundamento das desigualdades geradas pelo capitalismo neoliberal. Funciona também como aparelho eminentemente disciplinar, mas ora com viés de imposição e conformação ideológica das políticas neoliberais de negação de direitos básicos à maioria da população, à qual, acuada, restam dois caminhos bem difíceis: procurar um ofício miserável dentro da legalidade ou se socorrer de caminhos ilegais e ficar ainda mais vulnerável ao aparato repressor.
- 4. A simbiose entre a política de encarceramento em massa e a tendência privatista: cárcere e mercadoria
Desafortunadamente, o Brasil tem seguido à risca a trilha do encarceramento em massa descampada pelos Estados Unidos e, ao que parece, tende a seguir outras perversidades que dela derivam.
Dentre elas, a privatização do sistema prisional, já plenamente estabelecida nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Austrália e em outros países, mas ainda incipiente no Brasil.
Da perspectiva da tendência de privatização do sistema carcerário, pode-se afirmar que às pessoas “eleitas” para habitar o sistema carcerário, as pobres, miseráveis, exclusas do mercado de trabalho e de consumo, passa a ser atribuída a lúgubre função econômica de insumo em negócio derivado da parceria indecorosa entre empresariado e sistema penal.
De acordo com matéria da Caros Amigos publicada em 28 de abril de 2011 [10], no sistema prisional estadunidense, “hoje em dia, as indústrias nas prisões geram lucros de 30 bilhões de dólares por ano, enquanto os presos ganham entre 21 centavos e 1 dólar por hora para fabricar equipamentos eletrônicos, rádios, equipamento militar, roupa ou suas próprias jaulas”.
Como se percebe, o “negócio carcerário”, muito próximo ao regime escravocrata, rende altos dividendos. Por óbvia dedução, exploradores desse “filão”, como a Correction Corporation of America (empresa estimada em mais de 4 bilhões de dólares na Bolsa de Nova Iorque), dentro de uma lógica de capitalismo global, procurará “bons” parques prisionais para explorar.
O Brasil tem tudo para ser um deles. Com a mais elevada taxa do mundo de crescimento da população prisional, as autoridades brasileiras, de forma cada vez menos despudorada, defendem o modelo privado e acenam com propostas de expansão do número de unidades prisionais.
Nesse sentido, o Governo Federal lançou, no final de 2011, o “Plano Nacional de Apoio ao Sistema Prisional” (melhor seria denominá-lo “Plano Nacional de Apoio ao Encarceramento em Massa”), com o aporte de 1 bilhão e 100 milhões de reais para a construção de novas unidades prisionais em todo o país (a meta do plano é a construção de 42,5 mil novas vagas).
Como não é de causar surpresa, a adesão tem sido maciça: “77 contratos já estão em andamento para a construção e reforma de unidades prisionais” e “outros 20 convênios foram assinados com 15 Estados, totalizando mais R$ 270 milhões”. “Um dos projetos mais caros é o da construção da Penitenciária Compacta Dupla de Presidente Alves, a 382 quilômetros de São Paulo, que deve custar R$ 57,9 milhões” [11].
Em São Paulo, estado cuja população corresponde a um terço da população prisional do Brasil, a tendência de privatização do sistema prisional tem contornos ainda mais claros.
Conforme matéria publicada em março de 2012 no Estado de São Paulo, “a ‘PPP dos presídios’ prevê construção de três unidades na Grande São Paulo, para 10,5 mil detentos. A proposta preliminar foi aprovada no início do mês e prevê investimentos de R$ 750 milhões ao longo de 27 anos”[12].
Apesar de São Paulo ter Centros de Detenção Provisória mais superlotados do que suas penitenciárias, verifica-se em seu “plano de expansão do sistema penitenciário” que, de 37 unidades nele contidas, apenas 11 são Centros de Detenção Provisória. 21 são penitenciárias e 5 unidades de semiaberto [13].
Bem se sabe que, em unidades de presos provisórios, não há espaço para a exploração do trabalho. Coincidência ou não, a existência de mais unidades de regime fechado (ou semiaberto) no referido plano de expansão torna muito mais atraente a possibilidade de exploração do sistema prisional paulista pela iniciativa privada, na medida em que apenas nessas unidades a exploração do trabalho da população prisional é viável.
É visível, assim, que o expansivo sistema prisional não apenas é instrumento do neoliberalismo: a ele também é atribuída a forma mercadoria por meio da privatização do sistema prisional, com a exploração das atividades de construção e de administração de presídios e, principalmente, da mão-de-obra disciplinada e pauperizada provinda da (mais do que vulnerável) população carcerária.
- 5. Caminhos possíveis para lutar por um Mundo sem cárceres
A luta contra a prisão e, por via oblíqua, contra o encarceramento em massa, é, para além de uma luta humanista, uma luta claramente anticapitalista e antineoliberalismo. Por essa razão, seria ingênuo imaginar que é possível conter o encarceramento em massa e “humanizar” o sistema carcerário sem superar, ou ao menos desestabilizar, o neoliberalismo.
Acreditar cegamente na via reformista seria legitimar o que Foucault denominou como “Isomorfismo Reformista”, explicado por ele como o repetido discurso de “fracasso” e de necessidade de “reforma” do sistema prisional, que funciona para a manutenção da crença de que a prisão, apesar de reclamar mudanças, é necessária.
Seria, porém, desconstrutivo e conservador deixar de reivindicar alterações que, conquanto sejam eminentemente reformistas, têm o condão de aplacar a seletividade penal, enfraquecer o discurso predominante e, por conseguinte, acumular importantes avanços para mudança mais radical nas estruturas que sustentam a ordem violenta e desigual em que estamos.
Nesse processo, abrem-se alguns importantes caminhos táticos, sobre os quais passamos a falar.
5.1 Minimalismo Penal
Para Ferrajoli, Direito Penal mínimo é aquele “condicionado e limitado ao máximo” e correspondente “não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza” [14].
Adotar o Direito Penal mínimo, portanto, implica em estabelecer um caminho bastante estreito para o sistema penal, de maneira tal que ele não ultrapasse as limitações constitucionais e legais cuja observância poderia lhe emprestar alguma legitimidade (ainda que relativa).
Em afronta à política neoliberal de encarceramento (seletivo) em massa, o minimalismo penal se torna importante instrumento tático contra os discursos do “tolerância zero” e do “lei e ordem”.
Assim, cumpre pautar mudanças legislativas que reduzam o Direito Penal (em consonância com o princípio da intervenção mínima) e o conforme à Constituição da República, como, por exemplo, a restrição das prisões provisórias (sem condenação definitiva), com critérios menos arbitrários e com prazo máximo de duração, a abolição dos crimes de menor potencial ofensivo (sobretudo os desprovidos de violência ou grave ameaça), a abolição de tipos penais tendentes a criminalizar movimentos sociais (como, por exemplo, o esbulho possessório – ocupação de terras – e o aventado crime de terrorismo), a ampliação das hipóteses de aplicação de penas restritivas de direitos (“penas alternativas”) e a redução dos limites máximos das penas de prisão.
Outra importante medida seria a revisão da atual política de combate às drogas (belicista e encarceradora), pautando-se o cada vez mais candente debate sobre a descriminalização.
No modelo atual, inaugurado justamente pelos Estados Unidos com sua declaração de “Guerra às Drogas” (pelo governo de Richard Nixon, em 1972), não apenas se malogra no pretenso objetivo de combater a utilização dos entorpecentes, como também se agrava o problema, eis que as pessoas presas sob acusação de tráfico são, em regra, aquelas que estão na base da hierarquia do comércio de entorpecentes: os pobres, residentes na periferia, que não raras vezes traficam para sustentar o próprio vício ou, apesar de usuários, são presos como se traficantes fossem.
Também os direitos da população presa têm que ser mais bem delineados e fortalecidos, sobretudo nas relações de trabalho. Nada justifica que uma pessoa presa tenha menos direitos trabalhistas do que uma pessoa livre, senão o intento inconfessável de escravizar a mão-de-obra oriunda dos cárceres.
5.2 Em busca de novos meios de resolução de conflitos: a Justiça Restaurativa como horizonte
Não é demais repetir que o sistema penal é, em essência, seletivo, entornado à gestão das pessoas mais vulneráveis (e não à supressão da criminalidade), e, portanto, a sua superação depende da superação das contradições de classes implícitas ao sistema capitalista. Não obstante, em qualquer sociedade, capitalista ou não, haverá conflitos e, conseqüentemente, a necessidade de engendrar meios para equacioná-los.
A partir dessa perspectiva, importa pensar novos meios de resolução de conflitos, não em substituição ao sistema penal, que, em verdade, é um meio de perpetuação de conflitos (e não de solução), mas sim como horizonte de uma sociedade mais justa e igual.
Segundo Paulo Queiroz, o Direito Penal, “longe de resolver conflitos, atuando de modo contraproducente, acaba por agravá-los e criar outros novos, pois disponibiliza uma resposta que não interessa a ninguém: vítima, sociedade e réu” [15]. A premissa para superar os caminhos do Direito Penal (e do cárcere) é justamente a superação da sua hegemonia, que encerra, segundo o próprio Queiroz, “uma resposta maquinal a um problema demasiado humano” [16].
Modelo que aos poucos vem sendo difundido é o da Justiça Restaurativa, que consiste, basicamente, em superar a ideologia do castigo e trabalhar na perspectiva de humanização dos conflitos no lugar de reificá-los.
Inspirada na filosofia de populações autóctones que priorizam o interesse coletivo e a coesão social, a Justiça Restaurativa se assenta na ideia de “reapropriação dos conflitos em favor das partes envolvidas” (expressão de Nils Christie) e tem, segundo Joffily [17], quatro características básicas:
1) alto grau de inclusão dos interessados na resolução do conflito;
2) expansão das metas “para além da simples reparação do dano específico, buscando também a reintegração dos infratores de volta à comunidade, abordando problemas estruturais e desigualdades sociais que causam exemplos de dominação e a eclosão de conflitos, ou visando restituir o poder à própria comunidade, para aumentar sua capacidade de gerenciamento do conflito e construção da paz”;
3) práticas restaurativas baseadas nas comunidades, em que a responsabilidade, os recursos e o controle dos serviços são investidos na comunidade local e em seus cidadãos;
4) práticas restaurativas norteadas pelas noções de “diálogo respeitoso” e de “não-dominação”.
Parte-se do pressuposto de que não há resposta pré-concebida para todos os conflitos. A equalização de cada um deles deve ser construída por seus efetivos protagonistas, sem institucionalização e em busca da restauração do convívio comunitário justo e pacífico.
O modelo da Justiça Restaurativa é ainda bastante incipiente e requer diversas mudanças políticas, sociais e culturais para vingar. No entanto, já serve de importante parâmetro contra a cultura punitiva e encarceradora que ainda campeia mundo afora.
5.3 Abertura do Sistema de Justiça
Os caminhos sugeridos serão pouco relevantes se não forem ladeados por instrumentos de abertura das agências oficiais, com possibilidade de ampla participação popular na gestão de suas políticas.
A tal fim, indispensável promover radical democratização do encastelado sistema de justiça, considerado, aqui, como o composto de instituições como o Judiciário, a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Administração da Justiça, da Segurança Pública e do Sistema Prisional (por vezes unificada em apenas uma secretaria de governo, por vezes não).
Nesse norte, é essencial a instituição de ouvidorias capitaneadas por pessoas externas aos quadros institucionais e escolhidas pela sociedade civil. As ouvidorias externas têm a vantagem de, legitimadas institucionalmente como órgão de controle social, intermediar e promover a participação popular no monitoramento e na formulação de políticas públicas.
Outro importante caminho para a democratização das instituições componentes do sistema de justiça é o fortalecimento dos conselhos populares com atribuições deliberativas. Tais conselhos, se bem estabelecidos, podem ser importantes arenas de debates e de elaboração de políticas públicas com participação popular.
Há ainda outros expedientes que necessitam ser garantidos: a realização de conferências ou de audiências públicas para a definição das diretrizes gerais ou de políticas específicas de atuação das instituições são instrumentos importantíssimos ao protagonismo social na gestão do sistema de justiça.
A garantia desses espaços, se não tem o condão de promover mudanças sociais profundas, tem ao menos a vantagem de cravar cunhas no sistema de justiça aptas a, pela efetivação da participação popular na gestão de políticas publicas, aumentar o nível de consciência relativa às contradições de classes que o permeiam.
Conclusão
Versar sobre prisões no mundo é versar, também, sobre as injustiças reproduzidas cotidianamente pelas políticas neoliberais, para as quais o sistema carcerário tem servido de mecanismo de gestão daquelas pessoas exclusas do mercado de trabalho e de consumo.
Há uma tendência global de encarceramento em massa que está associada, diretamente, ao sistema capitalista neoliberal, o qual, na mesma medida em que retira das pessoas que não acessam os processos de produção e de consumo o mínimo de dignidade, a elas impõe saídas muito estreitas: trabalho precário ou o risco eminente do degradante cárcere.
Povoam o sistema prisional justamente aquelas pessoas historicamente enfraquecidas pelos poucos donos das propriedades de produção: no Brasil, os negros, pobres e jovens; nos Estados Unidos, os negros, os latinos e os índios; na Europa, os imigrantes, os novos pobres. Cada região tem o público-alvo de seu sistema penal/prisional.
Nesse contexto, o sistema penal não serve ao combate de toda a criminalidade, mas sim à criminalidade supostamente cometida pelas classes mais vulneráveis e exploradas, ao passo que a fartura ilegal e imoral de poucos segue impune.
Essas classes exploradas, já alijadas do exercício dos direitos mais básicos, são submetidas a um sem-número de violações no sistema prisional. De fato, a história das prisões produziu muito mais violências e horrores do que a história da (selecionada) criminalidade. Nas sombras das quatro paredes, torturas, maus-tratos e mortes ocorrem regularmente e compõem mecanismo próprio de isolamento e extermínio das classes exclusas.
Em adição a essa lógica atroz, sobrevém ainda a tendência de privatização dos presídios. As pessoas presas, antes nessa condição por representarem uma disfunção mercadológica, agora são imbuídas da forma mercadoria, seja pelos lucros advindos da construção e administração de unidades prisionais, seja, principalmente, pela exploração de sua mão-de-obra disciplinada, barata e desprotegida.
Diante de tamanho cinismo, cumpre responder, se não se quer parte dele, quem deve ser lançado ao banco dos réus: as pessoas marginalizadas que povoam o sistema prisional ou essa, a quem generosa ou ingenuamente denominamos “Justiça”, que, a serviço do capital, mantém e reproduz um extenso terreno de aprisionar e moer pobres?
A luta contra a prisão e o enceramento em massa não se cinge a uma pauta meramente humanista. Trata-se de luta, em última análise, anticapitalista e antineoliberalismo, inserindo-se, portanto, em contexto mais amplo e complexo de transformações sociais.
Ainda assim, é possível vislumbrar mudanças pontuais que, se não extirparão de vez o problema, ao menos podem servir de importante tática de desconstrução do discurso punitivista, possibilitando a elevação de consciência acerca dos antagonismos de classes que sustentam o mundo encarcerado que divisamos.
O mundo encarcerado é o mundo dos desvalidos, dos injustiçados. A mudança desse quadro depende da organização política daquelas e daqueles que sofrem com as inúmeras injustiças reproduzidas pela ordem capitalista.
Infelizmente, enquanto não vencermos o neoliberalismo, a política de encarceramento em massa tende a continuar, restando-nos a difícil tarefa de procurar sempre golpeá-la na esperança de que algum fôlego lhe falte.
[1] Assessor Jurídico da Pastoral Carcerária.
[2] No original (em inglês): “(…) while there is a lower class, I am in it, and while there is a criminal element I am of it, and while there is a soul in prison, I am not free”.
Fonte: http://www.marxists.org/archive/debs/works/1918/court.htm
[3] WACQUANT, Löic, editora Jorge Zahar, 2001.
[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2006
[5] Idem, p. 200.
[6] Fonte: International Centre of Prision Studies – ICPS. http://www.prisonstudies.org/
[7] Colunista da Black Agenda Report. Acesso no sítio: http://www.brasildefato.com.br/node/9734
[8] WACQUANT, Loïc. “Da escravidão ao encarceramento em massa: repensando a ‘questão racial’ nos Estados Unidos”. In:Contragolpes — seleção de artigos da New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006.
[9] “Neoliberalismo e Controle Penal na Europa e nos Estados Unidos: A Caminho de uma Democracia Punitiva?”. Em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/128
[11] Trechos retirados da matéria “Prefeitos aceitam presídios por verba de 1,1 bilhão”, publicada no Estado de São Paulo, em 1º de abril de 2012.
[13] http://www.sap.sp.gov.br/Img/Plano_de_Expansao.jpg
[14] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, RT, 3ª edição, 2010.
[15] QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal. RT. 3ª edição, 2008.
[16] Idem.
[17] JOFFILY, Tiago. Direito e Compaixão, Discursos de (des)legitimação do poder punitivo estatal. Ed. Revan, 2011.
OBS: artigo originariamente publicado no volume 41 da Revista Crítica do Direito, em outubro de 2012 (www.criticadodireito.com.br ).